sábado, 27 de abril de 2024

a nave e as "insignificâncias" do poeta

 

A nave Voyager , enviada ao espaço há mais de 30 anos, ultrapassou as fronteiras  do sistema solar:  ela agora navega  no oceano desconhecido do cosmos. As últimas coisas que a nave  viu foram os berçários cósmicos  com  sóis e estrelas recém-nascidos, como crianças .

A nave é feito uma carta que  tem apenas o endereço do remetente :  o planeta terra. E seu destino lembra   o  daquelas mensagens  lançadas ao mar no interior de uma garrafa.

O astrônomo e escritor  Carl Sagan  teve a ideia de  colocar  um  cd feito de ouro nessa nave. Há sons gravados no cd :  são mensagens com as quais desejamos expressar quem somos  ao cosmos.

O ouro foi escolhido pela sua durabilidade,  não pelo seu valor monetário. Ideia assim jamais teria o cúmplice do m-i-l-i-c-i-a-n-a-t-o Elon Musk, cujo projeto espacial é ver se tem ouro em marte para surrupiá-lo....

Esse disco-cd pode durar até um milhão de anos, tempo superior ao que os cientistas supõem que a humanidade ainda durará.

Daqui a um milhão de anos  talvez sejamos apenas o relato de certo ser estranho já extinto , um mistério a decifrar gravado num disco de ouro.

Estão gravados  no disco , como poéticos testemunhos do que somos e sentimos: sons   de grilo e sapo; uma baleia cantando; as batidas do coração de um recém-nascido, e as primeiras palavras de sua mãe quando ele abre os olhos; o som das ondas cerebrais de uma jovem que acabou de se apaixonar; um cão  latindo feliz com o retorno à casa de seu amigo-humano; o estalar  de um beijo; sons de chuva e vento; o ribombar de um trovão ; risos de crianças brincando; o som suave de uma página de livro sendo folheada; e um “bom dia” dito em  diferentes línguas e dialetos, como uma  multitudo sonora.

Daqui a um milhão de anos   talvez já  tenha virado pó tudo o que o dinheiro hoje compra; e apenas pó também sejam  o Paraiso e o Inferno  que o fanatismo teológico-político vocifera  e em nome dos quais nos ameaça com  suas fogueiras ( literais e simbólicas).  Mas  para que  durem ainda muito nossas vidas, que não tarde o dia em que  vire  pó o obscurantismo e sua n-e-c-r-o-p-o-l-í-t-i-c-a.

O poeta Manoel de Barros dizia :“ poderoso não é quem descobre ouro, poderoso  é quem descobre as insignificâncias”. As “insignificâncias” são pequenos acontecimentos vitais cuja grandeza é ignorada pelos homens e suas “importâncias”. Naquele disco da nave estão gravadas “insignificâncias”  endereçadas a  olhos e ouvidos cósmicos .

Talvez sejam esses mesmos olhos e ouvidos que, no aqui e agora, abrem-se no  poeta :  alguém que vê essas “insignificâncias” e as  eterniza como palavra poética que faz pensar, sentir e educa.

São essas insignificâncias sentidas , vividas  e partilhadas a verdadeira riqueza daquele disco de ouro que enviamos à eternidade.

 

 

 


(imagem :  “Reflexões sobre a estrela Ursa Maior”, pintura expressionista de Pollock, unida  a uma foto do universo,  obra de arte igualmente expressionista)

 

 

 

"Insignificâncias manoelinas" = "as coisas favoritas" que Coltrane musicou:






 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de abril: a Revolução dos Cravos

Hoje, 25 de abril: dia em que o povo português derrubou a d-i-t-a-d-u-r-a de Salazar . A "Revolução dos Cravos" é comemorada não apenas pelo povo português, mas por todos aqueles que combatem toda forma de a-u-t-o-r-i-t-a-r-i-s-m-o , lá e aqui ( meu avô português veio para o Brasil para não servir a Salazar).







quarta-feira, 24 de abril de 2024

domingo, 21 de abril de 2024

sociedades fechadas e sociedade aberta

 

Segundo o filósofo Bergson, existem dois tipos de sociedade: a fechada e a aberta. A sociedade fechada é representada sobretudo pela ideia de “pátria”, extensão simbólica da família patriarcal ,  uma microssociedade igualmente  fechada .

 Muito se fala em “amor à pátria”, porém  inúmeras vezes esse amor se alimenta  do ódio às outras pátrias: incontáveis guerras foram deflagradas em nome do “amor à pátria”. E há ainda  os que se acham “donos da pátria”, paranoicamente  sempre  perseguindo  aqueles  que eles consideram  “inimigos internos da pátria”.  Os pretensos “donos da pátria” consideram “inimigos internos da pátria”   aqueles  que agem por  uma sociedade mais igualitária e plural, uma Mátria não patriarcal.

  a sociedade aberta, segundo Bergson,  não é nenhuma pátria, por maior que uma pátria seja. A diferença entre a sociedade fechada e a sociedade aberta é a mesma que há entre o finito e o infinito, ou entre a  cerca que limita e o horizonte que amplia.

Existem muitas sociedades fechadas, porém a sociedade aberta é uma só, ao mesmo tempo una e múltipla. A sociedade aberta é a humanidade. O inimigo de uma pátria  pode ser outra pátria, mas o inimigo da humanidade é quem governa com insanidade uma pátria pondo em risco não só os que moram nela,  mas toda a humanidade .

Toda pátria é um recorte feito sobre a humanidade, de tal modo que todo habitante de uma pátria também o é, primeiro , da humanidade. Quando uma pátria se acha superior ao restante da humanidade, surge  então a pátria n-a-z-i-f-a-s-c-i-s-t-a cujo poder se alimenta  da  desumanidade.

O amor à pátria se torna excludente e negacionista  se não for inserido no amor à humanidade enquanto prática ética e política de proteção da humanidade de cada um.

Os defensores da pátria  excludente em geral idolatram o  militarismo   e imitam , com as mãos, armas; mas os defensores da humanidade seguram  com as mãos livros, pincéis, lápis... sem largar a mão daqueles que os “donos da pátria” perseguem ou deixam sem teto, sem terra, sem justiça, sem dignidade, com fome.

 Pertencer a uma sociedade fechada é falar uma língua determinada e ocupar determinado território. Mas pertencer à humanidade é se reconhecer em toda fala que , fazendo-se ação, potencializa  a  vida e a  dignidade,  não importando a nacionalidade.

Nenhuma pátria pode ser realmente livre e independente se o culto do “amor à  pátria” encobre crimes contra a humanidade.


 



sexta-feira, 19 de abril de 2024

empoemamentos originários

 

A palavra “mitologia” tem dois sentidos: 1- conjunto dos mitos produzidos por um povo ( e não apenas pelo povo grego); 2- estudo dos mitos. Infelizmente, nenhum desses dois sentidos traduz a experiência originária dos povos que viveram e criaram os mitos, pois são sentidos  teóricos nascidos bem depois daquela experiência originária.

Devido ao desconhecimento dessa experiência originária com o sentido da vida e da existência  , muitos hoje desdenham da mitologia, e consideram que é mais “útil” ensinar aos jovens “cartilhas técnicas” e “tabuadas”  que adestrem para  o mercado.

Assim, “mitologia” ou “mito” não são  bons  nomes para designar a experiência originária que vários povos fizeram, e fazem, para darem sentido à existência pessoal e coletiva. Em vez de “mitologia” ou “mito”, prefiro empregar o termo “empoemamento originário”.

É Manoel de Barros quem ensina que poesia não é só escrever rimas e versos, pois poesia é, antes de tudo, experiência de empoemamento.

Empoemar-se não é apenas ler versos, empoemar-se tampouco é somente contemplar o que é “belo”, romanticamente.

“Poesia” vem de um verbo grego que significa “produção”. Assim, empoemar-se é produzir a si mesmo agenciado com o outro, com o mundo, com o cosmos. Empoemar-se é o contrário de anular-se .

Empoemar é um verbo que se conjuga em todos os tempos, em plurais modos e em todas as pessoas do singular e do plural. Empoemar-se também é ação clínica, política , ética e pedagógica.

Sob essa perspectiva , a experiência originária que gerou os mitos não está apenas no passado . O sentido de se ler os mitos hoje  é para fazer reviver em nós, aqui e agora, aquela experiência. Não para que repitamos o que disseram os antigos, mas para que possamos (re)aprender a produzir sentidos que repotencializem  a vida com força regeneradora e criativa.

Não apenas os gregos fizeram essa experiência com a poesia originária, nossos povos indígenas  também o fizeram e perseverantemente ainda o fazem para se manterem vivos.

Segundo Krenak, o poeta da tribo tem o seguinte nome: “pessoa coletiva”. O poeta da tribo trava batalhas diferentes daquelas que os guerreiros travam; ele exerce um tipo de poder mais poderoso do que o do cacique;  e promove curas ainda mais necessárias à vida da tribo do que as curas do pajé.

Com suas narrativas  originárias, o poeta da tribo empoema a coletividade e evoca a força dos ancestrais para que as florestas de Pindorama  resistam de pé plenas de vida . Com sua palavra geradora , o poeta da tribo  age para  adiar o fim do mundo...

Até f-a-s-c-i-s-t-a-s às vezes são chamados de “mito”... Porém é sempre antiautoritária  a experiência originária que empoema a existência e a fortalece ante tudo aquilo que , ontem e hoje, a põe sob risco.

Como ensina Deleuze:  “A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos  que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.”


Hoje, 19 de abril, dia da luta dos povos originários.





“Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras (...). Essa fascinação me levou a conhecer melhor os indígenas.” (Manoel de Barros)

 

Esta música do vídeo é cantada nos ritos de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá alimento e proteção; e que não há futuro digno sem  manter viva a memória coletiva  dos  Ancestrais:




sábado, 13 de abril de 2024

Os hiperbóreos...

 

Segundo Nietzsche, há filosofias do “sol nascente” : nestas filosofias,  o pensamento  é como o sol que nasce e ilumina a natureza que a noite obscura ocultava. As filosofias do sol nascente coincidem com a própria origem da filosofia:  assim foi a filosofia  dos pré-socráticos, como um sol nascente a revelar a natureza, a “physis”.

 Mas  existem também filosofias do “sol poente”, filosofias do ocaso: elas coincidem com a filosofia europeia, na qual este mundo em que vivemos hoje foi , em grande medida, gestado. Essas filosofias substituíram a luz nascente da physis poética , tal como existia em Tales ou Heráclito,  pela luz poente da razão tecnocrática  , sendo o niilismo reativo  a sombra que acompanha essa luz fria , utilitária e despoetizada.

Porém  há ainda , segundo Nietzsche, a “filosofia dos hiperbóreos”. Entre os gregos , “bóreo” era o nome do vento mitológico conhecido como “vento do norte”. Esse vento por vezes também era chamado de “vento da morte” ( nos vários sentidos que a morte tem). Assim, o hiperbóreo era um lugar que ficava  além do que podia alcançar o vento bóreo, o vento da morte ( em grego, o prefixo “hiper” também significa: “o que está em lugar superior”).

Os gregos diziam que para as  regiões hiperbóreas iam alguns deuses, como Apolo, quando queriam recuperar  e renovar as forças. A região hiperbórea não é exatamente o norte da Europa,  e sim o limiar  desta .

Diferente do que se imagina,  não é para o norte que as bússolas apontam ; as bússolas apontam para o hiperbóreo , sobretudo as bússolas que indicam necessárias direções novas para revitalizarmos nossas forças.

O que mais caracteriza a região hiperbórea da terra é que nela o sol  jamais morre : ele está sempre no horizonte e corre sobre as montanhas,  horizontalmente,  mantendo sempre translúcido um  céu de imortal azul.  Na região hiperbórea é sempre  aurora, alvorada, amanhecer...  

“Hiperbóreos”,  assim deveriam ser  os pensadores  do futuro, acreditava Nietzsche,    para assim vencerem o vento da pulsão de morte e suas formas negacionistas, necropolíticas e niilistas,    que sempre tentam subordinar o valor da vida    ao dinheiro  e ao  mercado , incluindo o mercado da fé .

Como reconhecer um hiperbóreo? Um hiperbóreo é aquele em cujo horizonte aberto o sol da Arte , como um farol, sempre brilha intensamente  e nunca morre.

 

( imagem: capa do livro “O fazedor de amanhecer”, do poeta-hiperbóreo  Manoel de Barros; a capa e as ilustrações do livro foram feitas por Ziraldo, a quem deixamos esta pequena homenagem)




Bethânia lendo o hiperbóreo-Manoel ( trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna):




O hiperbóreo-Cartola:



sábado, 6 de abril de 2024

o monturo

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual  ele descreve o que aconteceu  num monturo que  ele encontrou  no meio de um  caminho ermo.

Monturo não é exatamente um monte de lixo. No  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo, mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; os retalhos desbotados  do que antes foi uma fantasia colorida; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis , farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a perseverante  semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um reluzente  lírio.

 

 

 “Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.”(Manoel de Barros)

 

 

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”(Manoel de Barros)

 

“Fornecer aos pensamentos fechados uma corrente de ar fresco.” (Bob Dylan)

 

 “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia,

 e pela dor eu descobri o poder da alegria.”

(Belchior, trecho da música “Fotografia 3x4”)








sexta-feira, 5 de abril de 2024

a origem do sentido

 

                                    A ORIGEM DO SENTIDO[1]

 

 

A palavra “semântica” vem do grego “sema”, que também costuma ser traduzido por “signo” ou “sinal”. Signo ou sinal é tudo aquilo cuja presença aponta ou sinaliza para outra coisa . Por exemplo, a palavra “casa” é o signo que “representa” ( re-apresenta) a casa concreta.

Na Grécia antiga quando alguém morria o corpo era cremado. Mas o fogo não consumia tudo. E antes que ele se extinguisse totalmente, as últimas chamas eram apagadas com água e vinho. A água para apagar o fogo, e o vinho para co-memorar, criar memória, daquela vida. Morte não é apenas despedida, também é celebrar que houve aquela vida.

Ao fim do rito, restavam apenas os fragmentos dos ossos alvos se destacando sobre o fundo das cinzas. Esses fragmentos eram recolhidos e guardados numa pequena urna, que então era plantada no seio da terra. Para os Gregos , colocar a urna no seio da terra era um processo semelhante ao plantar a semente , para que dela brote outra vida. Para os Gregos, só a vida é absoluta, nunca a morte. “Ab-soluto”: o que não é soluto, o que não se dissolve. Por mais que o fogo dissolva os ossos, algo daquele que viveu permanece ainda vivo.

Depois , era confeccionada uma pequena tabuleta com o nome da pessoa ali plantada e um epíteto , isto é, uma pequena frase semelhante a um verso que expressasse e traduzisse a vida daquele cujo nome estava escrito na tabuleta, que então era afixada sobre a  terra onde a urna foi plantada.

A tabuleta “sinalizava” e dava a conhecer uma vida, agora ausente. A tabuleta era uma presença que sinalizava uma ausência. Os gregos chamavam essa tabuleta de “sema”, pois ela era um signo que representava uma vida ausente.

Isso talvez ajude a compreender a enigmática frase  de Platão na Carta Sete, na qual o filósofo afirma que a filosofia  não pode ser escrita, a não ser secundariamente. Pois a filosofia nasce de uma experiência originária do filósofo com  a Ideia que o torna filósofo, sem a mediação de signos. O texto escrito é o relato dessa experiência ou experimentação transcendental. A filosofia é expressão da alma e corpo vivos expressos sobretudo pela palavra viva , e não pela palavra escrita como sinal que aponta para uma ausência, para uma morte.

A palavra “sema” é prima da “palavra “soma”, que em grego significa “corpo” ( como em “psicossomático”).Assim o sema é o corpo da palavra ( ou significante) , ao passo que a alma da palavra é seu sentido, que  aponta ou sinaliza para o ser ausente que a palavra re-apresenta.

Mas acontece algo diferente com a palavra do poeta, pois a palavra poética potencializa ainda mais o sentido. A palavra poética não re-apresenta algo ausente , ela faz com que se torne presente nela uma existência que se torna absoluta.

“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que a  seja”, explica-se o poeta Manoel de Barros. A palavra poética abre-se para o poeta amorosamente, para que a poesia que o poeta escreve não seja apenas re-apresentação do mundo, mas criação de outros mundos cujo sentido não se esgota apenas na palavra. É por isso que o poeta também diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, pois poesia não é representação do mundo dado , mas criação de outros mundos possíveis.  O poeta também diz que “escreve com o corpo”. O corpo expressivo[2] do poeta   não é apenas carne e osso, mas também espírito tangível que igualmente  é fogo. Não como aquele fogo que destroi e consome, como o fogo do ritual funerário, e sim fogo que aquece e ilumina, chama que é da vida. Fogo assim é o Princípio ou Arqué de tudo, ensina Heráclito.

 




[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Esse corpo expressivo é o que Deleuze, inspirando-se em Artaud, chama de “Corpo sem órgãos”. Tal corpo expressivo não pode ser explicado apenas pela ideia de função, isto é, mediante um sentido utilitário ou “orgânico”. Quando Espinosa afirma que “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele também está se referindo a ações que não se explicam pelo aspecto orgânico e funcional do corpo. Quando a bailarina dança, por exemplo, ela põe em ação seu Corpo sem órgãos; quando a cantora canta, igualmente é seu Corpo sem órgãos que se expressa por ela. Quando o poeta escreve seus versos, o corpo da palavra não se explica mais pela funcionalidade da gramática, uma vez que a palavra , ela também, se torna um Corpo sem órgãos, um corpo expressivo.  

segunda-feira, 1 de abril de 2024

ditadura nunca mais

 

Eu tinha cerca de 12 anos e fazia o antigo ginásio. Era uma época difícil, sufocante...A  ditadura militar censurava, perseguia ,  prendia e torturava quem pensasse diferente do poder autoritário dominante.

Quem não passou por isso não faz ideia da violência, violência física e simbólica, da ditadura . Somente quem nela foi carrasco, cúmplice ou capitão do mato tem saudade daquela triste época.

Quando cresci e estudei história , aprendi que esses perseguidos pelo terror eram pessoas que sentiam que o mundo precisava ser mudado , e agiam para isso. Ainda criança, eu também sentia que o mundo dos homens estava errado , mas não encontrava nos livros lições que dissessem isso, pois pensar estava proibido.

Àquela época, a escola não era um espaço de descobertas : a ditadura controlava tudo, e usava as cartilhas e   tabuadas como meios de adestramento.

Poesia e literatura? Só eram aceitos os parnasianos, como aquele poeta elitista autor do Hino Nacional que a gente não entendia  nada da letra , porém nos obrigavam  a cantar em posição  militar, rigidamente, batendo continência para a bandeira, como se ela fosse um general sisudo sobre o Monte Parnaso.

Até que chegou à escola uma professora nova de língua e literatura. Tudo nela era diferente: a roupa,  o jeito , o olhar , enfim, a pessoa. Foi a primeira vez que entendi de verdade o que era uma educadora e tudo o que a arte pode em termos de (auto)descoberta .

Em vez de adotar livros parnasianos para a gente ler decorando datas e palavras que a gente não entendia, palavras mortas que nada nos diziam a não ser: “obedeçam!”, ela adotou um livro diferente cujas palavras  a serem interpretadas eram letras de música  dos Festivais da Canção acontecidos recentemente.

Assim , foi como poesia que li , pela primeira vez, Chico Buarque, Caetano , Paulinho da Viola e Gilberto Gil. Antes de conhecer a música deles , eu me empoemei , ainda criança, com a poesia  sob a forma de letra. Algo em mim se horizontou e veio para fora: era eu mesmo,  ainda de mim desconhecido.

Foi a primeira vez que  experimentei  o que é ler, pois ler é ler-se. Eu não entendia todas as palavras , mas sentia que eram palavras vivas que me ensinavam  um sentido que eu sabia ser o mesmo que os milicos não queriam que a gente aprendesse, um sentido libertário da plural e popular poesia.

A querida professora transformava  a sala de aula  numa lúdica academia , uma academia livre de adestradoras cartilhas, onde  a gente era alfabetizado  no  pensar lendo a poesia de  Chico, Caetano, Gilberto Gil , Geraldo Vandré e Paulinho da Viola.

 

Ditadura nunca mais! Democracia sempre!