quinta-feira, 31 de março de 2011

evento na SPCRJ

"Mesa Redonda: O Tempo do Por Vir e a Poesia de Manoel de Barros"

09/04/2011, às 09:00
Convidados: Auterives Maciel e Elton Luiz Leite de Souza
Coordenação: Anna Elisa Penalber

link:http://www.spcrj.org.br/agenda/eventos_agenda/


segunda-feira, 28 de março de 2011

o escudo

Embora eu desconfie muito daqueles que colocam a razão em um altar, e diante dela se põem de joelhos, não obstante isso devo minha vida, em parte, ao progresso tecnológico e científico, que é a maior expressão da racionalidade ocidental. Explico-me:não nasci de parto normal, mas sim de cesariana. Foi um parto difícil, extremamente arriscado. Ele só foi possível graças a todo um aparato técnico-científico. Portanto, se minha família vivesse em um lugar bucólico e parnasiano, perto da natureza intocada e imaculada, cujos únicos vizinhos fossem o gado, a grama e as estrelas, certamente ali eu não sobreviveria. Aliás, nem mesmo nasceria.
E isto pelo seguinte fato: perto da hora do parto, os médicos perceberam que eu me encontrava em uma posição fora do comum e diferente. Pois ao invés de a minha cabeça estar na direção da “saída” do útero, minha cabeça se encontrava, ao contrário, como que encostada no coração de minha mãe. Na verdade, eu fazia desse coração uma espécie de travesseiro bom, e era com a cabeça apoiada aí que eu sonhava o eterno sonho que comecei a sonhar quando ainda era um simples anjo brincando na eternidade. O som do palpitar do coração de minha mãe era uma espécie de hino sagrado que não me deixava esquecer que o mais sagrado de tudo é a inocência de não saber e não saber-se, pois somente assim podemos nos ligar a algo sem interesse algum, e com tudo o que existe nos fazermos Um.
Porém, quando os médicos enfim abriram o corpo dentro do qual eu estava, para assim me fazer nascer, lá de dentro ainda despertei daquele sonho, e ouvi o ruído rabugento de homens se digladiando pelo poder. Soube depois que aquelas vozes ameaçadoras eram as vozes dos generais que, àquela época, dominavam com terror o meu país.
Então, tentei fugir para o coração de minha mãe... Mas descobri que o coração não tem porta e nem poderia ter, pois as pessoas que nos amam de verdade já nos carregam dentro de seus corações , desde a eternidade.
Quando os médicos enfim me puxaram para fora, agarrei-me de tal modo ao coração de minha mãe que acabei trazendo ele comigo. Agarrei-me, claro, não ao coração físico, mas sim ao coração do seu espírito, e fiz desse coração, desde que nasci, o doce escudo que sempre trago comigo: atrás dele não temo nenhum inimigo, e atrás dele também cabe quem quiser se juntar a mim e lutar comigo.

o estilingue

Quando tinha 8 anos,mirei com meu estilingue o Céu das Idéias de Platão.Municiei o estilingue não com críticas ou conceitos teóricos, pois meu estilingue não era uma metáfora e nem uma abstração.Era sim, para o meu espírito-menino, a lúdica e desejada filosófica arma : insubmissa e arteira, talhada na madeira do meu inquieto coração.
Armei o estilingue com uma bolinha de gude, dessas que trazem dentro pequenas bolhinhas de ar rodeadas por alvas massas em relevo, semelhantes a nuvens, como se um céu de verão lhes vivesse dentro - e desse mesmo dentro quisesse escapar.
Quando então atirei com o estilingue, acertei em cheio a principal Idéia, o motor daquele inacessível Céu pairando acima de tudo: atingi a testa da Idéia de Verdade. Um brilho acendeu no céu, como se o infinito risse: era o céu de verão que se libertava do seu pequenino casulo de vidro.
A Idéia de Verdade tombou aos meus pés. Então vi, com meus olhos de menino que vê o mundo como poesia, que tal Idéia era apenas como um pardal empalhado: sem sangue, sem vida - rígida, oca, estéril. Para minha felicidade de garoto que se arma apenas com a inocência , mirei também em outros pássaros empalhados daquele Mundo Fictício: quedaram então, um após o outro, o Dogma, a Lei, o Inferno , o Juízo Final, o Bem, o Mal... Até cair, por fim, o ninho de todos esses pássaros sinistros: a Morte.
Esse estilingue tinha a forma da letra “V”, de “Vida”. Para os pardais que voam livres eu o oferecia como um poleiro amigo. E se hoje tento talhar aquele estilingue nos escritos do adulto, é no desejo de ainda estar vivo em mim aquele mesmo livre menino.