sábado, 25 de janeiro de 2014

carpe diem





O excesso de ciência, 
tanto quanto o de ignorância,
desemboca em negação.

Balzac

Na ciência, a experiência é considerada como um pequeno momento de “abertura” à realidade, realidade esta que se quer conhecer e determinar. Nessa abertura, nesse “encontro”,  a razão procura confirmar suas hipóteses,hipóteses estas que ela cerziu e matutou em seus silolóquios consigo mesma, ávida por desfazer suas dúvidas : ela tem  a pretensão, a racional pretensão,  de erigir  certezas, regularidades , evidências, leis,isto é, um mundo controlável,previsível,dominável,enfim, “desencantado”.
Na filosofia e nas artes,não se procede por “experiência”, e sim por experimentação. A experimentação  é o acontecimento que abre o pensamento  àquilo que não pode ser circunscrito, limitado, cercado.A experimentação descobre uma forma muito singular de encantamento.
A experimentação  é abertura radical ao encontro. A experimentação cura o pensamento de sua loucura por  hipóteses e interpretações a priori . A vida não é uma hipótese,ela é uma matéria a experimentar e inventar. A experimentação não é apenas um momento de abertura; diferentemente,ela é abertura  que não pode ser medida por momentos,por mais longos que sejam do ponto de vista do relógio: a experimentação dura intensamente como afeto pelo incomensurável,posto que infinito. Ela é visão intuitiva  da paisagem absoluta.
A experiência científica  pode ser produzida e reproduzida em laboratórios,sempre ao redor de um objeto; ela pode ser suscitada em um ambiente artificial , ou acadêmico, passível de controle,visando minorar os riscos, as decepções,os insucessos, as perdas. Já a experimentação poética,tal como o terceiro gênero de conhecimento de Espinosa, prescinde de objeto, faz-nos agentes. Tudo pode ser laboratório para ela: a perda,o insucesso, a dor, o cotidiano, o risco...mas também a alegria,o amor, a coragem...A experimentação poética não existe para confirmar fórmulas,mas para dar sempre nova forma ao informulável,ao impensável,ao sublime.
Na filosofia se  diz “anipotético” o que existe para além de toda hipótese ou dúvida. Não se atinge o anipotético  fazendo proliferar as hipóteses sobre ele.Como ensina Bergson, as hipóteses se acercam do objeto, circundam-no,medem-no, mas nunca entram, de um salto, em seu interior,ao passo que o anipotético constitui o íntimo do ser do qual o objeto é só um invólucro. As hipóteses,ou as dúvidas,não são escadas para se atingir o anipotético, assim como não é subindo incontáveis degraus de uma escada que,chegando lá encima , se aprenderá a voar .Aliás,os degraus da dúvida são sempre de descida ou  subida, vez que conduzem ao  cético pragmatismo ou ao ascético idealismo; mas o voar,sobretudo o “voar fora da asa”,  começa sempre no chão,assim como a experimentação se inicia no horizontal  desejo, e não na vertical razão.
O anipotético não existe para desfazer  as hipóteses, assim como a luz não existe para negar a escuridão,mas para afirmar a ela mesma: é afirmando a si mesma que  a luz  já desfaz a escuridão . Não é negando esta última que a luz  afirma o que ela já é,pois se assim fosse, teríamos que supor que a escuridão existe tal como existe a luz.Mas a escuridão é tão somente a ausência da luz; logo, a luz não existe para negar sua ausência,mas para afirmar sua presença. Nesses assuntos, diz Espinosa,não há debate ou persuasão: basta abrir os olhos para ver,sobretudo os olhos do espírito.O que vale para a luz, vale para o conhecimento: este não é um negar a ignorância,mas o afirmar a si mesmo como aquilo que desfaz toda  ignorância,sobretudo a ignorância de um conhecimento apenas hipotético.
O anipotético não vem depois de esgotarmos as hipóteses,ele vem antes, assim como o dia vem antes da noite,pois a noite , a noite poeticamente experimentada, pode ser  o momento no qual  ligamos a Terra à luz dos infindáveis dias   que se irradiam de cada distante estrela que vemos no céu, pois cada uma delas é um sol que só conhece dia, o dia que ela mesmo produz. Sol e estrela são dois nomes pelo qual atende o mesmo acontecimento ao mesmo tempo físico e espiritual, corpo e idéia.
Dessa maneira, o dia assim polifonicamente  experimentado ,dia este do qual o do nosso sol é uma expressão finita ,  este Dia infinito e multifacetado  não é aquele que passa junto com as  horas e se opõe à noite, como Apolo a Dioniso; diferentemente, este Dia poeticamente multiplicado por sóis inumeráveis é o  do carpe diem : dia ilimitado ,  agenciamento de Dioniso-Apolo. Este Dia pode ser experimentado em cada dia , fendendo os limites deste, e nos deixando ver   sua  potência e  forma sem limites,sem contornos,posto que em processo,”fontanamente”, como diria Manoel de Barros.Assim experimentado, cada parte desse Dia é sempre  uma Aurora, como dizia Nietzsche.
O Cristo de Espinosa é expressão amorosa desse Dia, desses infinitos dias que  mesmo sob a noite se pode ver , desde que não faça noite na alma que olha, pois é desta última noite que se vale Mefistófeles em seus   serviços  sempre noturnos,mesmo que oferecidos em pleno  meio-dia.Só há noite na alma que odeia.
 É o anipotético que é primeiro, não o hipotético. A verdade que a ciência hipotética alcança sempre vem depois da dúvida, depois da crítica. A “verdade” anipotética é idêntica à experimentação , ela é inseparável do sentido que a expressa e afirma ( que, além de crítico, é também clínico). 
Há sempre uma angústia que acompanha os seres que creem nas hipóteses e na precedência da dúvida em relação à verdade, da  escuridão em relação à luz. Mas nem sempre esta verdade alcançada pelo racionalista  se torna apta para curar suas angústias: não raro, as aumenta, para o deleite e préstimos de Mefistófeles. 
O conhecimento do anipotético é inseparável de uma experimentação poética da qual nasce um afeto de alegria  que não duvida de si mesma,por mais simples,discreta  e modesta que seja. 










quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O deslimite ( como um solo de Coltrane )






Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.

Manoel de Barros


Trata-se de captar um "devir mundial" tal como ele surgiu entre os gregos ,
como ausência de origem, e tal como ele surge para nós agora,
deviando-se de todas as finalidades.

Gilles Deleuze


(trecho do livro)

A poética é grega. Ela se vincula não apenas à Grécia histórica a Grécia de Homero, Hesíodo, Ésquilo, Mênon, Heráclito, Protágoras, Diógenes,Demóstenes..., mas também à Grécia enquanto Terra que serve de imanência a todos os territórios, inclusive o Pantanal. Enquanto imanência do pensamento e da sensibilidade, a Grécia é a Terra de Lucrécio, Hume, Godard, Marx, Visconti, Artaud,Lima Barreto, Gláuber, Clarice Lispector, James Joyce, Proust, John Coltrane, Nietszche, Van Gogh, Rimbaud...Este é seu povo, ao mesmo tempo aristocrático e popular, em permanentes rebeldias contra o clichê e contra as mais variadas formas de opressão e banalização da vida. Quando evocada pelo pensamento e pela arte, esta Grécia torna-se um nome que é, ao mesmo tempo, a conjugação de dois verbos: Pensar e Sentir. Uma Grécia onde não existem mais “rei nem regências” de poder, mas potências criativas que, em seus deslimites, nos deixam ver a Vida.




segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

manoel de barros: agenciamento, intercessor , "outsider" ( trecho do livro)






Encontra-se em Gilles Deleuze as coordenadas de uma filosofia do agenciamento, uma filosofia do aprender a andar ao lado de nossos intercessores.
Curiosamente, a expressão “intercessor” remonta à Bíblia, e designa aquele que “abre as portas do céu”. Um céu que não é apenas exterior, mas também interior. Em Deleuze, o Céu é uma das imagens da Terra. E o intercessor que nos leva a ela pode ser inúmeras coisas: não apenas um livro de filosofia, uma música, um poema, enfim, uma obra de arte também podem sê-lo com a condição de aprendermos a andar ao lado desses intercessores, com as pernas de nosso pensamento e de nossa sensibilidade.
                                                                                                                               
[Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões idênticas ou semelhantes, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer um "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando.Um nós não nasce da intercessão de conjuntos com contornos delimitados, pois o intercessor é um "outsider", um "lado de fora" que incorporamos lá onde deveria estar um contorno, para assim inventarmos limiares.O "lado de fora" não é um fora que se opõe a um dentro, mas abertura para o fora que se faz de dentro, encontrando um intercessor . Um intercessor é "aquele que intercede a nosso favor". Mas intercede em relação a quais assuntos e diante de quem?Os assuntos que pedem intercessores são sempre aqueles verdadeiramente essenciais para que nós possamos , como dizia Nietzsche, "nos tornar nós mesmos".O intercessor intercede por nós diante da vida, diante do cosmos, diante daquilo que não podemos conhecer; ele é mão estendida que sempre puxa para cima: não exatamente para cima de um palco ou de um pódio, mas para um ponto onde nos distanciamos de nós mesmos, para assim aumentar nosso horizonte e perspectiva. Ele intercede sobretudo diante de nós mesmos, tornando-se a ponte entre nós e aquilo que verdadeiramente somos. Contudo, um intercessor não existe com uma etiqueta nos avisando:"Eu sou seu intercessor". Não raro, o intercessor está imperceptível aos olhos daqueles que olham mais para os outros do que para si : embora o intercessor possa estar maduro para eles, são eles que ainda não estão maduros para encontrar o intercessor. De certa maneira, somos nós mesmos que produzimos nossos intercessores quando,ativa e singularmente, desejamos produzir a nós mesmos, fato este que expressa não apenas discernimento e virtude, mas também arte ]









domingo, 12 de janeiro de 2014

espinosa: o corpo e o espírito








O andarilho alimenta de pernas as distâncias.
Manoel de Barros


A água pode apagar o fogo. Mas a água não existe com a finalidade de apagar o fogo. Basta ela existir como água, basta ela ser o que é, para o encontro dela com o fogo destruir este último.Esta destruição de uma outra existência, que nasce da simples afirmação de si próprio,  nada tem a ver,contudo,com um ódio: o teria se imaginássemos que ela o destrói por alguma finalidade, o que resultaria em considerar a água como boa e o fogo como mau. A água é: é sendo água que dela resultam certos efeitos, como o matar a sede, o apagar o fogo, etc. Estes efeitos se explicam pela essência da água, pela sua maneira de ser.A água não escolheu ser água: ela simplesmente o é e se esforça  para continuar sendo.Disto procede sua alegria e júbilo.Alegria e júbilo de água que ama ser o que é, e que ,portanto,não sente a menor falta ou carência de ser outra coisa,mesmo o ouro.Sendo água, sendo o que já é, a água já é livre, e seria um absurdo supô-la querer ser outra coisa; ou já sendo água,querer no entanto ainda  sê-lo. A água não existe como um todo à parte, ela existe como parte de um todo que não é  apenas água, pois é também fogo.
O que vale para água vale igualmente para tudo o que existe,incluindo o homem. O homem não pode escolher ser um homem, pois ele já o é antes de toda escolha.Ele pode, sim, escolher ser um lobo, ou uma hiena,ou uma cascavel, e imitar o comportamento destes seres, sendo ainda um homem. Mas a escolha por ser tais coisas não o torna tais seres, e sim o diminui enquanto homem, embora ele imagine que o aumente.O homem livre não escolhe ser homem, ele simplesmente afirma o ser que já é:ele se afirma como maneira ou modo do ser que não é apenas homem, pois também é a cascavel,o lobo , a hiena, mas não como tais seres são quando os quer imitar um homem que ignora o que é ser homem.
O "querer" é uma atividade da vontade, e esta faculdade se move no âmbito das escolhas. A questão da escolha introduz o tema da "finalidade", na qual a liberdade é precedida, imaginariamente,  por um ato de escolha. Mas assim como a água não pode escolher não ser água, já o sendo, o homem também não pode escolher ser um homem, já o sendo, já o sabendo. Este é o ponto: para escolhermos entre uma coisa ou outra, é necessário que saibamos o que uma coisa ou outra são. É necessário, antes de toda escolha,o pensar. Se já sei,pelo pensar, o que é um homem, também existirei como um, pois não existe pensar autêntico separado de um modo de vida.
A ontologia, o plano do que já se é, antecede o da moral, que é o da escolha finalística, imaginária.E o que já se é , o plano da ontologia, envolve sempre um grau de potência.Quando imaginamos que o que somos,ou o que seremos, depende de um ato da vontade, isto ocorre porque ainda não compreendemos, e experimentamos, a potência libertária do desejo, que é sempre mais próxima ao corpo e à vida do que a vontade.Esta é instrumento apenas da  alma, ao passo que o desejo o é do espírito e do corpo.
Quando escolhemos um caminho, podemos depois constatar que erramos na escolha, se orgulhosos não formos.  Muita teimosia  pode preceder ao reconhecimento do erro. E quanto mais poder se tem, mais o erro pode ser sustentado como se fosse acerto. Porém, pode vir o momento, cedo ou tarde, em que as palavras, ou o dinheiro,  não mais podem criar cenários que escondam o vazio que rodeia o outrora decidido.Pode-se ter a vontade de ser muitas coisas, mas se deseja sempre o que já se é.Ter a vontade  de ser algo não requer nenhum esforço: basta  inteligência e imaginação; mas afirmar o desejo não se faz sem esforço ( o conatus), tal como toda obra singular que é precedida pelo esforço do treino, do exercício ( e não há menos alegria e júbilo no esforço do rascunho do que na obra pronta, pois esta é também rascunho, no infinitivo).
Quando passamos ao desejo, à potência,já nos achamos no caminho. O caminho não precede os passos.Não se afirma o caminho sem afirmar também os passos, sobretudo aqueles que devemos dar com nossas próprias pernas.É um caminho, no entanto, que não se percorre sem riscos,pois nele não existem placas de sinalização dizendo para onde devemos ir, nem “parapeito ou baliza”, como diz Deleuze.
Os passos  que o percorrem não são apenas os dados com as pernas, pois também o pensar é um passo que também se liga aos de nossas pernas, e pensa o rumo de ambos.Esse caminho se rascunha sem que lhe pré-existam modelos prévios de verdade,embora ele já possua sua verdade que nunca é prévia ao percurso, ao processo, já que  é uma verdade imanente ao pensar e agir que a engendram como aquilo que os põe de acordo consigo mesmos, e de resto com toda a natureza.