domingo, 24 de novembro de 2013

Espinosa: o geógrafo das paisagens da alma



Muitas traduções da obra de Espinosa perdem em clareza quando não atentam para a distinção entre dois termos : afeto e afecção. Algumas traduções, as mais danosas para a compreensão do pensamento de Espinosa, traduzem ambas por uma única palavra: "paixão". Outras ainda as traduzem por "sentimento". E há aquelas que mantêm apenas o termo afeto,reduzindo o sentido de afecção à mesma coisa que afeto.Todos esses procedimentos lançam confusão não apenas sobre o que Espinosa quer dizer, como também sobre o próprio sentido desses termos em nossas vidas diárias. Sem dúvida, a dificuldade maior para os tradutores reside no sentido do termo "afecção" ( affectio, em latim).Isso porque há um certo materialismo no sentido original deste termo, fato que os tradutores mais idealistas ou espiritualistas reputam indigno de colocar de forma essencial na compreensão de todas as coisas, inclusive o homem. Mas é um erro conceber o termo afecção apenas em sua acepção materialista.
Etimologicamente, afecção pode ser traduzido por "tocar", no sentido de que o artesão toca o barro, o pintor toca a tinta, o sol toca o nosso rosto, etc. A afecção é uma ação de um agente ( nos exemplos dados, o artesão, o pintor e o sol).Ao tocar aquilo que ele toca, o agente produz uma modificação naquilo que ele toca. Essa modificação é sempre instantânea, e modifica o corpo tocado.Nos exemplos que demos, a afecção é a modificação que um corpo sofre ( a tinta, o barro, nosso rosto) devido à ação de um outro corpo que lhe permanece externo. Esse primeiro sentido de afecção envolve a relação de determinação de um ser finito sobre o outro ( mesmo o sol, embora imenso, é um ser finito tanto quanto o nosso rosto que ele toca).Ora, toda ação engendra um resultado, um efeito. O efeito ou resultado de "tocar" é "ser tocado". O "ser tocado" é um índice ou sinal de que houve um "tocar". O ser tocado não é uma ação, como o tocar, mas um resultado, um padecer. O fato de ser tocado torna um ser paciente, no sentido de ele ser aquele que sofreu a ação.Enquanto o tocar é imediato, o ser tocado é sempre mediato: ele expressa uma ação que se fizera. O tocar envolve sempre uma percepção, ao passo que o ser tocado permanece existindo apenas na memória ou na imaginação, como uma imagem presente de uma ação ausente. Ou melhor, essa imagem se torna presente pelo esforço que nossa alma faz para recordar ou imaginar o tocar que se fizera em seu corpo, e do qual a imagem é o resultado, o indício ou signo. Na verdade, o ser tocado é a continuação do tocar persistindo na memória ou imaginação daquele que sofreu a ação. O "ser tocado" é exatamente o sentido de afeto ( em latim, affectus).
Vista da perspectiva do corpo que age, a afecção é um agir, um tocar. Entretanto, como ela nasce de um encontro de um corpo com outro, a afecção produz, no corpo que sofre a ação, uma marca, um indício, um vestígio. Esse vestígio ou marca não é um ser, ele é uma ausência do ser que agiu e produziu a marca. Então, no corpo passivo a afecção é esta marca da qual nasce a idéia que lhe é correspondente. Ora, uma ideia não nasce no corpo, ela nasce na alma. A ideia nascida dessa marca, dessa ausência, será exatamente o afeto.Tal idéia, por isso mesmo, será dita confusa, uma vez que uma idéia adequada expressa sempre a existência de um ser, e não a ausência dele. A idéia confusa também é chamada de “imagem” por Espinosa.É por isso que o afeto nascido da afecção é uma paixão.A paixão revela mais o estado do corpo que sofreu a ação do que a essência do corpo que agiu. Mas o corpo que sofreu a ação imagina que a idéia que nasce da ausência do corpo que agiu pode nos fazer conhecer o corpo agente. Essa idéia confusa se alimenta da ignorância de como ela nasceu, ela pressupõe a ignorância de que a afecção é ação de um corpo também. Quando compreendemos isso, percebemos que a afecção é uma ação inserida em uma Natureza que é Causa da ação de tudo que existe, posto que a Natureza é sempre Agente. As idéias confusas, as paixões, nos deixam reféns das imagens, dos efeitos. Sob as paixões, confundimos o efeito com a causa. Se as paixões nascem de ausências, por que elas têm tanta força sobre a alma?
Para Espinosa, é a alma que extrai de seu próprio ser a força para dar existência ao que é um mero efeito, uma imagem, um fantasma. É por isso que as paixões alienam a alma e impedem que ela se torne ativa. A alma se torna ativa pela compreensão nascida das idéias adequadas, que sempre expressam o que existe, e não a ausência do que existe alimentada pela impotência da alma para existir plenamente. Quando compreendemos que as afecções são sobretudo ações, e não o mero resultado passivo delas, conseguimos nos libertar da condição passional de sermos um mero resultado da ação das coisas sobre nós. Além disso, mesmo quando alguém se comporta movido por uma paixão, sobretudo as tristes, tal reagir também é uma ação: uma ação que pode menos do que poderia aquele que assim padece se ele de fato agisse de forma livre, alegre, potente. Quando compreendemos que tudo é ação, positividade, mudamos nossa perspectiva no entendimento daquilo que comumente chamamos de bem e mal, pois percebemos que nenhuma ação , nenhum existente, é um bem ou mal em si. Quando compreendemos a positividade da afecção, compreendemos que ser é existir, e existir é agir: mesmo na ação a mais pequena do mais ínfimo ser, intuímos a Ação da Natureza que nunca age visando outro fim que não seja sua própria Ação, sua própria Existência,que em nós se expressa como ação da alma, o compreender, e ação do corpo, o agir.Ser ativo não significa exatamente fazer muitas coisas que exigem músculos, movimentos agitados e "adrenalina", pois ouvir é uma ação, olhar também o é, e há uma virtude ativa em saber se calar ( segundo Espinosa, o "falar", o "falar muito" sem saber ouvir, é uma paixão muito comum em quem não tem realmente o que dizer).
De um certo tocar pode nascer o afeto do amor ou da amizade como resultado ou efeito ( as paixões alegres), ao passo que de um outro tocar pode nascer o ódio ou o rancor ( como paixões tristes). E o mais estranho: o afeto não é o tocar, mas o resultado acompanhado da idéia confusa ou imagem deste. É por isso que de um mesmo tocar pode nascer , em uns, o amor, em outros, o ódio . Por exemplo, o funk toca da mesma maneira, fisicamente falando, aqueles que o amam e os que o odeiam, pois o amar e o odiar não são o tocar, mas o resultado dele de acordo com a constituição ou modo de ser de cada um: de acordo com a maneira de ser de cada um, de um mesmo tocar nascerão afetos distintos; se uma pessoa se modificar, ou buscar viver de forma desalienada, o que hoje lhe provoca um amor passivo amanhã talvez não lhe provocará mais.Não podemos negar a existência de uma afecção, porém o vínculo entre a afecção e o afeto que dela nascerá dependerá do quanto somos passivos ou ativos diante daquilo que nos acontece. Não há uma causalidade férrea que determine que de uma determinada afecção nasça um afeto determinado. Quando compreendemos as razões que fazem uma afecção existir, nos tornamos capazes de desfazer os laços entre a ação das coisas e nossas reações em relação a elas, sobretudo se tais laços nos fizerem escravos ou passionais, isto é, incapazes de governarmos a nós mesmos.
Os tradutores mais apressados costumam então referir a afecção às modificações do nosso corpo causadas pela ação de outros corpos, ao passo que o afeto seria uma modificação nascida em nossa alma que espelharia a modificação gerada em nosso corpo. Todavia, essa visão dicotômica se torna incongruente quando nos debruçamos sobre um outro sentido de afecção, dessa vez referida não mais aos seres finitos, mas a Deus ou a Natureza. Tudo o que existe, segundo Espinosa, é uma modificação de Deus. Logo, tudo é uma afecção de Deus. As coisas nascem do tocar de Deus. Mas a quem Deus toca? Ora, por ser único, e tudo, Deus não pode ser tocado por algum outro ser que lhe seja externo. Se isso fosse possível, este ser teria que existir à parte de Deus. Todavia, se Deus ou a Natureza é, em Espinosa, tudo, não pode haver algo distinto dele , pois isso seria limitá-lo, o que é um absurdo. Assim, e isso parece e é poesia ( no sentido original de "poiésis", produção), Deus é um tocar que toca a si mesmo. É Deus que produz em si mesmo tudo aquilo que é uma modificação ativa dele mesmo. Deus é imanente a tudo: o que ele produz permanece nele, pois cada ser é uma maneira dele mesmo, uma modificação singular dele . Cada ser que existe é uma maneira de ser de um mesmo Ser que se expressa de infinitas maneiras. Em Deus, a afecção , o tocar, e o afeto, o tocado, são identificados à Potência divina de Existir.Todas as afecções de Deus existem de forma necessária. Em Deus, portanto, só há um afeto: o Amor. Das afecções de Deus não pode nascer outro afeto que não seja o Amor, e isto por uma necessidade que é idêntica à liberdade, necessidade esta que é imanente a cada ser singular que existe.Ser livre não é fazer o que quiser ou seguir uma inclinação, ser livre é agir de acordo com essa necessidade que produz o Amor. A identidade do tocar e do tocado, da afecção e do afeto, é o Amor que nasce do Amor: e por ele, nele e com ele nascemos nós mesmos como expressão singular de sua autoprodução.É a experiência desse Amor que leva o poeta, como afirma Manoel de Barros, a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”.Esse Amor é uma Ação, não uma paixão ou um padecer. Esse Amor é uma Ação: ele é ação de produzir autoproduzindo-se , ele é Poiésis.
Somos uma modificação de Deus; logo, somos o resultado ou o produto desse Amor em Obra. Deus e o Amor são o mesmo, assim como são o mesmo, nele, o agente e o paciente. Ou melhor, em Deus há apenas o Amor como Agente: o paciente fica por nossa conta, quando desejamos aprender a Amar esse Amor, pois é com paciência que se o pratica. O afeto nascido assim é idêntico à idéia adequada que aprendemos a fazer de nós mesmos e da Natureza.
Deus é Ação, jamais uma paixão. Por não ser paixão, Deus jamais tem raiva ou fúria, tampouco pode modificá-lo o que os homens fazem ou deixem de fazer. Ele não espera devoção ou culto, nem obediência, pois somente os tiranos vaidosos, passionais, a isto querem.Deus não recompensa ou castiga. Ou melhor, a única recompensa é compreendê-lo, e viver de acordo com o Amor que ele é.Somos o produto desta Ação, somos uma parte dessa Ação, e compreender isso não se faz sem a Alegria que é idêntica ao Amor.Se somos um produto da Ação, é nossa essência o agir, e não o padecer ou sofrer.Deus é Perfeito porque ele é Ação de modificar-se: e é por essa razão que o homem mais sábio é aquele que se esforça para aperfeiçoar-se, e isto consiste em modificar-se. Em Espinosa, tudo o que existe é uma modificação ou afecção de Deus. Não apenas os corpos, as ideias também são afecções de Deus. Nesse sentido, há afecções que não são materiais, embora sejam tão reais quanto os corpos. Quando experimentamos e compreendemos nosso corpo e nosso espírito como afecções de Deus, dessa compreensão nasce um afeto que é a expressão de que somos tocados por aquele Amor, e a partir dele tocamos, produzimos, agimos, enfim, existimos.
Não existe o "mal em si", existe o mau em nós, não fora de nós. O mau é tudo aquilo que diminui nossa força, nossa potência.O mau é a tristeza e o ódio.Estes não existem fora de nós, eles não são ações, mas reações, padeceres.A tristeza e o ódio existem em nós como aquilo que diminui nossa existência e nos afasta de nossa saúde ( salut). Não é a partir de outra coisa, uma coisa que lhe seja exterior, que o homem age ou existe, já que toda ação se constitui  de acordo com a relação com a Potência que lhe é imanente. Não é subordinando-se a "fins externos" , teleológicos, que o homem age, pois toda ação nasce da nossa afirmação da Potência que é Ação Pura, Potência esta que não existe exterior a si mesma.É em relação com essa Potência ou Força que a alma conquista sua própria força e potência, sua confiança, sua virtu, sua firmeza, o que a torna apta para tomar posse de si mesma. Só quem dispõe de si pode exercer a generosidade.A Moral exige que a alma tenha força sobre o corpo, para assim dominá-lo e reprimir suas inclinações.A Ética de Espinosa afirma, ao contrário, que a alma só se torna potente quando conquista sua própria força,  agindo a partir desta.



   O geógrafo, de  Vermeer ( segundo alguns, é Espinosa, o próprio, que é retratado por Vermeer como um "geógrafo")

sábado, 16 de novembro de 2013

Cláudio Ulpiano





O PAPEL DA METÁFORA
(manuscritos de Claudio Ulpiano)



- Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade



O estilo é uma questão de visão e não de técnica. A metáfora é a expressão privilegiada de uma visão profunda: que ultrapassa as aparências para atingir a essência das coisas. O repúdio ao realismo, à arte das notações, que se contenta em dar das coisas uma miserável relevância.


- Liberar as coisas da contingência do tempo pela metáfora

A metáfora não é um ornamento, mas um instrumento necessário para o estilo: para a visão das essências (não para que as essências sejam vistas, como em Platão, mas para que elas vejam, como nas mônadas).

Se o verdadeiro eu não pode viver senão fora do tempo, é que a eternidade é o único meio onde ele pode gozar a essência das coisas.

- Aqui neste escrito, a memória involuntária vai ser observada como se fosse pela primeira vez. Então nem é bom perguntar o que é a memória involuntária, mas como [ela] aparece.

"A memória involuntária só intervém em função de uma espécie de signos muito particulares: os signos sensíveis”.

As reminiscências são metáforas da vida.

As metáforas são reminiscências da arte.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

o muito


Mais importante do que o pensamento
é aquilo que faz pensar.
Proust

O Deus de Espinosa, a Natureza,  é um muito, nunca um pouco. Uma parte do muito é sempre muito, desde que se saiba ver o valor do pouco.Deus é muito porque ele precisa de pouco: pois  ser muito  é depender de pouco para se ser o que se é.Deus é muito porque ele depende apenas de si para ser o que é: cada parte dele é muito porque depende apenas de si para ser expressão dele.
Quando o muito é verdadeiramente muito,uma parte dele nunca é pouca,mesmo que seja a mais simples. O muito não é feito do mero somatório de poucos.O muito autêntico não pode ser medido por números ou quantidades. Mas se saber  parte do muito requer muito, sobretudo requer o  muito de coisas que não se pode comprar, ou herdar, ou furtar.É um muito de potência, é um muito de se deixar afetar. Quem vive como parte desse muito é sempre livre, pois inexiste prisão que possa contê-lo, seja a prisão feita de concreto ou aquela mais sutil,mas não menos tolhedora: a cela  das opiniões  e verdades prontas, sejam as verdades seculares ou aquelas mais midiáticas, das quais a cada dia o sistema lança um modelo novo.
O muito da Natureza não é um muito que possa ser diminuído ou aumentado, pois é um muito infinito ( e se o infinito pudesse ainda ser aumentado, não seria infinito, e se pudesse ser diminuído, deixaria de ser infinito). O muito de Deus é o muito da generosidade, da criatividade, da produtividade. O muito não se conquista por acúmulo de coisas poucas. O autêntico muito é ser muitos, é expressar-se de muitas maneiras, e estar inteiro, íntegro, em cada maneira, seja diante do Rei ou do simples mendigo.
Ser muito não é ser muito de uma coisa só, como o oceano que é muito apenas de água, ou o banco que tem muito apenas de moeda. Ser muito é ser composto de coisas heterogêneas, de coisas raras.O muito de Deus é que cada coisa, por menor que seja, é um muito para ele, e ele não a despreza, pois essa coisa também é ele.Deus é único,singular. Se ele fosse dois, não seria Deus. E este é seu muito: ser raro. Cada parte dele só se sabe muito se aprender a ver sua raridade,bem como a raridade das coisas que são tomadas como meramente comuns.
O muito não pode ser cercado, tampouco possui um centro. O muito não tem verso ou reverso, ele não é par ou ímpar, sim ou não. Ele está sempre no meio e é meio que leva a ele mesmo: ele é o caminho, o caminhar e aonde chegar.E quem por ele caminha nunca se perde, tampouco chega a um fim. 
O oposto do muito de Deus não é o nada, pois o muito não tem oposto ou contrário.O nada pode ser um muito de coisa nenhuma, como o castelo imenso no qual morreu o milionário  Cidadão Kane. No mito, o Rei Midas cobiçou um muito de ouro, esquecendo que o valor do ouro está em ele ser raro, como é raro um bom coração, um coração de ouro.
O muito de Deus não é alcançável por um acúmulo de saberes. Pois só há um saber, e este é raro e múltiplo.O muito é múltiplo, heterogêneo, plural , e ao mesmo tempo raro, singular. O muito não é o excesso, pois o excesso é o oposto do pouco, e o muito de Deus não tem oposto.
O muito de Deus não é um conteúdo que somente aprenderíamos aumentando a nossa inteligência ( tal como uma piscina que é aumentada para receber um volume imenso de água).O muito de Deus é um conteúdo que dá consistência, que intensifica, e não algo que  vem preencher um vazio.Vazia pode se tornar a inteligência quando reduz tudo a objetos, quantidades, cálculos,mensurações...
O muito de Deus  consiste na autêntica riqueza que se possui sem precisar acumular, que se usufrui sem ser pelo comprar , gastar e consumir.  Segundo Espinosa, essa riqueza quem mais a teve foi Cristo.Depois a tem as crianças, sobretudo as que acabam de nascer ( não importando se tem 1 dia de vida, 30, 40 ou 70 anos, quando então tal riqueza se vive como um re-nascer, um re-generar).
E pode ganhar essa riqueza quem perde tudo.E mais pobre dela pode ser quem  muitas coisas tem.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

as infâncias do poeta




Em anos recentes, já  com mais de 80 anos, uma idéia foi apresentada a Manoel de Barros: poeticamente, escrever uma memória.Afinal, muito o poeta já havia vivido e escrito. Tanto, que nem seria uma memória, seriam memórias: da infância, da mocidade e da velhice. A primeira memória, a da infância, veio ao mundo. Ela surgiu expressa em um “inauguramento  de falas” ,  ela  nasceu singular e múltipla , pois  o poeta nos fala não apenas de uma, mas de três infâncias: a primeira, a segunda e a terceira. Parece-nos que não se trata de uma ordem baseada em cronologias, a primeira infância não é mais infância do que a segunda e a terceira. Há apenas uma infância, e esta é múltipla, heterogênea, inumerável. Primeira, segunda e terceira são distinções intrínsecas de uma mesma infância. As distinções extrínsecas são aquelas nas quais os termos distintos permanecem exteriores uns aos outros, como as partes de uma pedra que se parte, ao passo que as distinções intrínsecas expressam partes que, embora diferentes, expressam o mesmo todo que em cada uma se expressa diferentemente, como  o tema de uma polifonia. 
Cada parte é uma distinção intrínseca de um mesmo todo, e este não lhes permanece exterior, dado que  lhes é íntimo, tal como a cor verde é íntima a cada grau seu, a cada grau de verde O todo da vida do poeta é tão vário e amplo, que vai muito além de sua vida pessoal, e é por isso que este todo nada tem a ver com as vivências , perceptivas e memorativas, de um “eu”. O todo, do qual cada infância é uma parte, este todo é um nós, do qual fazem parte outros seres que não o poeta, mas que ao o lerem sentem que aquela infância os concerne e vive em seu íntimo, como Afeto não pessoal de um devir-criança:  "Vou até a infância e volto" , explica-se o poeta.
No poema “Achadouros”, Manoel de Barros afirma que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com elas: “há de ser como acontece com o amor”. E é por isso que o poeta é aquele que diz “eu-te-amo a todas as coisas” . Mais do que pela ação de algo externo que nos torna passivos, o contágio é a comunhão de cada coisa com outra pela experiência daquilo que lhes é íntimo, e que “desabre” cada coisa e as torna “pré-coisas”: matéria de poesia. 
Enfim, vieram ao mundo as três infâncias. Como as memórias da mocidade e da velhice não nasciam, o poeta foi indagado a respeito, no que respondeu: “ só tive infância”. Ele diz que em seu lápis, na ponta do seu lápis, “há apenas nascimento” , “só narro meus nascimentos”. A “velhez não tem embrião” . A velhez não é propriamente uma idade, mas a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância”.

sábado, 2 de novembro de 2013

a riqueza da pobreza




A riqueza é uma coisa, já a pobreza é outra. Ninguém as confunde. Sempre desejada, à riqueza  é associada  a felicidade; já a pobreza é temida e rejeitada ,  pois lhe  são  atribuídas incontáveis dificuldades. Parece que ninguém duvida que elas se oponham. Mas é possível algo nascer da união delas?
Segundo narra Platão, que reinventa o mito à sua maneira, o filho da riqueza com a  pobreza  se chama exatamente Eros, o Amor. Foi a pobreza, a mãe do Amor, que tomou a iniciativa, e furtou da riqueza  um rebento.No mito, a riqueza (  o deus Poros) é uma divindade que se basta, ou que crê se bastar e nada lhe faltar; a pobreza ( a deusa Pênia ou Penúria)  está sempre a carecer de algo. Decidida, ela quis ter um filho com  a riqueza , a quem nada falta , de que nada carece. Houve então uma noite, um torpor, uma embriaguez, uma inconsciência, um encontro de ambos e, de repente, ela estava grávida. Desse encontro nasceu Eros, o Amor. Entretanto, o Amor não é uma média entre a riqueza e a pobreza,tampouco uma fusão; diferentemente, ele é um acontecimento que dará à riqueza e à pobreza um novo sentido.
Como o pai ,o Amor é rico, mas de uma riqueza distinta daquela que fazia de Poros o deus da riqueza. Como a mãe, o Amor também é pobreza;todavia,não se trata de uma pobreza por carência,como a da Penúria;a pobreza do Amor é a de  nunca estar completo, se a si mesmo o Amor faltar. E esta também é sua riqueza:  apenas de si mesmo precisar.
O Amor, Eros, é a riqueza de nunca se estar completo, de se ser sempre “forma em rascunho”, como diria o poeta. A pobreza do amor não é exatamente a dependência ou a mera carência, como psicanaliticamente se interpreta, pois atribuir-lhe a mera carência é confundi-lo com sua mãe, esquecendo-se  do que lhe imprimiu o pai, a riqueza.Mas a riqueza que Eros porta e oferece não é a de seu pai ( que é a riqueza que crê nada lhe faltar, a riqueza da auto-suficiência, que pode ensejar insensibilidade pelo outro, bem como arrogância e pretensão acerca de si mesmo).A riqueza do amor é que ele liga tudo a tudo por intermédio dele mesmo.Diante dessa riqueza, mesmo a riqueza do seu pai se torna pobreza. A riqueza do Amor é o próprio desejar, e não o desejado como aquilo que falta. E esta riqueza também é a de uma  pobreza : pobreza enquanto um  não depender de nada que possa causar  servidão ao luxo, ao supérfluo, à ostentação. A pobreza do amor é uma riqueza : riqueza do amor de não lhe faltar.
Assim compreendida, a riqueza do amor não é o desejo da riqueza; a sua pobreza não é a que carece da riqueza ou de meios. Sua riqueza é de ser meio para uma existência que faz do Afeto , e não da mera posse material, o seu maior recurso.
Foi essa essência  híbrida e mestiça  do Amor que fez Plotino atribuir-lhe , séculos depois, uma natureza tripla: Eros é, ao mesmo tempo, um Deus, um Daimon e um movimento da alma (em Platão, o Amor não é uma divindade, ele é apenas um Daimon).
Das três naturezas do Amor, a que mais mistério tem é a sua existência como Daimon.O Daimon é um ser intermediário que liga os homens ao divino: o Daimon  liga o que nasce e morre ao que é eterno. Já o amor enquanto movimento da alma é tido por ser algo volúvel, circunscrito às circunstâncias, como todo movimento. Para Plotino, porém, somente quando a alma não consegue encontrar ou se agenciar ao Daimon, somente nessa situação é que o amor é passageiro,volúvel, circunstancial, e se confunde com o prazer físico despertado pela beleza dos corpos. Quando  essa experiência do amor  também é guiada pelo Daimon, que não é apenas físico, os movimentos da alma se tornam consistentes,intensos,uma vez que aos movimentos que a alma sente é ligada uma experiência de se conectar ao que não depende das circunstâncias, que é a natureza de Eros enquanto divindade ou Ideia.
Assim, para Plotino o Amor, Eros, não é apenas uma divindade, tampouco apenas um Daimon, e também não é apenas um movimento  passageiro da alma ( e do corpo). Eros, o Amor, é essas três realidades ao mesmo tempo, embora Plotino  acentue que é o amor enquanto intermediário, o Daimon,que realmente cumpre o papel de metamorfose, e liga os movimentos da alma ao que só é aprendido pela parte mais imaterial de nossa alma, o pensamento. O Amor é triádico:o Amor é movimento, é caminho e é pensamento. Nesse último aspecto, pensar também é uma atividade que se liga ao Afeto. O amor também é uma forma de tornar vivo o pensamento, uma vez que o Amor, além de movimento e caminho,  também é uma Ideia.O Amor é o caminhar( movimento), o caminho ( Daimon) e o  onde chegar ( a Ideia).E sabemos se chegamos quando o caminhar se faz sem cansaço, como o do livre nômade, e nunca quer parar.Descobrimos então que a Ideia também é movimento, que o movimento também é ideia, e que a Ideia também é caminho: caminho que nos leva ,antes de tudo, a nós mesmos.
 Assim, é o Amor ( Daimon) que liga o amor ( movimentos de nosso corpo e nossa alma) ao Amor ( enquanto realidade divina ou Ideia).É o Amor que liga o amor ao Amor.Somente o Amor tem por intermediário ele mesmo, somente ele é seu próprio meio: se ele pode carecer dele mesmo, também é apenas ele que pode completar-se.
E a lição mais surpreende Plotino deixa para o final. O filósofo Plotino diz ter aprendido essa lição com Orfeu, o poeta. A referida lição, dada sem livros ou ciência, consiste em um mistério que a inteligência não compreende e jamais compreenderá: essas três expressões do Amor são, no entanto, um único ser. Movimentos da alma, Daimon e Amor enquanto Ideia   são três expressões de uma única realidade. Quem a isso descobre, e o vive, experimentará nos movimentos de sua alma a própria eternidade do que é sem fim, pois é sempre meio.


É a essa dimensão do Amor que Espinosa chama de salut ou beatitude. Em latim, não por acaso, beatitude nasce de um termo que significa exatamente “riqueza”.