segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Rizoma Infinito

 

Quando olhamos para uma simples árvore, vemos as raízes, o tronco, os galhos...Mas podemos perceber também cada folha, fruto e flores. Embora una, a árvore é uma multiplicidade de coisas singulares.

Cada realidade singular não existe sozinha, uma vez que ela está conectada à árvore: a seiva atravessa o tronco e chega às folhas.  Sem a  seiva que transporta o alimento retirado da terra pelas raízes da árvore , as folhas secariam. Por outro lado, sem as folhas a árvore não respiraria. As flores abrem-se nos galhos, porém em cada flor que se abre é a própria árvore que também floresce. Os frutos são produto da árvore, mas é a semente do fruto que guarda a  continuidade da árvore .

Nossa percepção consegue captar apenas as realidades que estão conectadas, porém ela não consegue apreender a própria conexão. Pois é isto uma árvore: uma rede de conexões que se retroalimenta a partir do que suga da terra e recebe do céu. Assim, a própria árvore é uma conexão do céu com a terra.

Para que nosso pensar capte não só as singularidades isoladas mas a conexão entre elas, é necessário que ele também se faça conexão  não só entre  ideias isoladas , e sim entre ideias , afetos e sentires: é preciso que ele mesmo se veja como singularidade cuja seiva que o alimenta vem da terra e do céu.

Espinosa faz uma distinção entre Natureza Naturante e Natureza Naturada. Porém ele não está falando de duas naturezas, mas de uma só. A Natureza Naturante é o princípio  de conexão entre todas as coisas, ao passo que a Natureza Naturada é a percepção  desse princípio em cada coisa singular gerada pela própria Natureza como Potência Absolutamente Infinita ou Rizoma Infinito.

Cada realidade singular é a expressão de uma conexão que a liga a tudo o que existe: cada folha da árvore se conecta não só ao galho ,  pois por intermédio do galho cada folha se conecta à árvore inteira para assim permanecer conectada a si mesma. E o galho, por sua vez, se conecta ao tronco, e este às raízes, que alcançam as folhas , flores e frutos por intermédio dos troncos e dos galhos.

A Ética de Espinosa nos mostra que cada realidade singular não pode ser compreendida por si mesma apenas, mas em conexão com a natureza inteira da qual é uma expressão singular em relação com outras realidades singulares.

Uma singularidade nunca é algo isolado ou uma realidade à parte. Delirante seria a   folha que imaginasse poder  existir sem a árvore...

Uma singularidade é sempre a expressão de uma conexão que a  une a uma multiplicidade , sem a qual ela não pode existir e tampouco ser conhecida.







domingo, 26 de fevereiro de 2023

catarses

 

Conversando com uma amiga dia desses revelei que  , apesar do retorno à vida social, ainda não consegui matar a saudade de duas coisas:  lecionar presencialmente (retorno à sala de aula no próximo semestre)  e mergulhar no mar...

Recebi então  um olhar de interrogação acerca desse último ponto. Como nunca perco a oportunidade de filosofar ...rs... , resolvi explicar  porque sinto falta de mergulhar no mar.

Na Grécia  havia um lugar  chamado “Elêusis”. A palavra “elêusis” significa “retorno”. Enquanto os deuses  aristocráticos  moravam no alto do inacessível  Olimpo, “Elêusis” era um lugar no chão, no seio de  Gaia, a Mãe-Terra.

Orfeu ( o Poeta) ,  Perséfone ( o Feminino )  e Dioniso  ( a Arte) eram cultuados em “Elêusis”. Esses “cultos” não eram “religião” , e sim agenciamentos populares nos quais se celebrava  a Vida ( o teatro nasceu desses cultos).

Mas  que tipo de  “retorno” era celebrado em “Elêusis”? Orfeu retornou  do “Reino das Sombras”  após resgatar sua “Eurídice” ( em  Elêusis, “Eurídice” era um dos nomes da alma , assim  como “Psiquê”). Perséfone retornou vitoriosa do cativeiro no qual  Hades , chefe do “Reino dos Mortos”, tentou aprisioná-la . E após ser despedaçado por seus carrascos, Dioniso retornou da quase-morte renascendo do coração ( “Di-oniso”: “aquele que nasceu duas vezes”).

Orfeu, Perséfone e Dioniso venceram a morte e retornaram à  Vida ainda mais vivos. Enquanto a ideia de religião tradicional  implica num morrer nesta vida para “religar-se”   à outra  vida  no “Além”, “elêusis” é um retorno à  vida , esta vida aqui ,  após se ter quase morrido, para assim recriar a Vida  ainda mais potente e forte.

Séculos depois, os estoicos e Nietzsche assim chamaram esse “retornar  à vida para potencializar  a Vida” :  “Eterno Retorno”.

Para quem desejasse  entrar e fazer parte  da comunidade de Elêusis não eram exigidos dogmas  ou dízimo, era pedido apenas  um “ritual de limpeza": era preciso curar-se do veneno que, muitas vezes sem sabermos, envenena nosso corpo e nossa mente, feito uma morte cotidiana que vai nos destruindo  aos poucos.

Esse ritual de limpeza consistia exatamente em “mergulhar no mar”. O sal do mar lava , expurga e  cura.

Esse efeito de limpeza do mar era chamado de “catarse”. Tempos depois , Aristóteles atribuiu à arte essa função clínica e curativa de promover  catarses. Assim como o mar, a arte também limpa ,  sara,  “horizonta”.

Tudo o que realmente ensina,  salva e regenera não pode ser vivido  de longe ou apenas teoricamente , pois requer  que mergulhemos de corpo e alma.

Na falta do mar, sigo aqui mergulhando    em Cartola, em Clarice , em  Espinosa , em Manoel...  e neles buscando  o mesmo  sal.

 

 

( na foto, o poeta Manoel  - que   dizia amar no mar o mesmo que amava no seu Pantanal: os horizontes... )



 



 



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

a hedionda guerra

 

Kant foi um dos principais   Iluministas. O Iluminismo  acreditava que a Razão é uma Luz que destrói as trevas : o Direito, enquanto fruto dessa Luz  , é antídoto contra as trevas da força bruta; a Cultura, também fruto da Razão, é meio para se vencer as trevas da inumanidade; o Conhecimento, fruto maior da Luz da Razão, é arma para se vencer as piores trevas: as da ignorância( em suas formas variadas ) .

Enfim, o Iluminismo acreditava  que a Razão ,  e somente ela, garantiria o progresso do homem e das sociedades. E que a História seria o palco desse “progresso”.

Kant expôs essas ideias no livro “À paz perpétua”, obra que influenciou a criação da ONU após a hedionda Segunda Guerra Mundial.

Contudo,  o grande desafio dos Iluministas era explicar a guerra: como justificar  tal monstruosidade da perspectiva “racional”?

Kant se vale então de uma imagem: não só os “espertos” têm astúcia, a Razão também tem sua própria “astúcia”. A “astúcia da Razão” se revela quando ela se vale de meios aparentemente pouco racionais para realizar  seus objetivos. Até mesmo na guerra a Razão encontra um meio para prevalecer, pensava Kant.

Este é o argumento de Kant: num primeiro momento,  as  guerras dispersam os homens sobre a superfície da terra. Como a terra é finita, chega um momento no qual não é mais possível fugir. Então, para  sobreviverem os homens são obrigados a fazerem pactos e contratos, isto é , serem racionais.

São esses pactos que , além de trazerem a paz, tornam possível depois  o comércio dos povos, incrementando assim o progresso, que é o fim buscado pela própria Razão. Desse modo, a “Razão Astuta”  encontra até mesmo no ódio e na  guerra um meio para realizar seus fins.

Porém, na época de  Kant  as guerras eram travadas  com canhões apenas . E o planeta terra , nossa Mãe Arquetípica, era somente  o palco das guerras.

Kant talvez tenha superestimado a Razão, ou então subestimado o tamanho das trevas que se esconde dentro da alma sombria de certos homens, sobretudo os ávidos por poder e destruição.

Se Kant tivesse dimensionado adequadamente , creio que ele não diria que  guerra e ódio  podem estar a serviço da humanidade. Ao contrário, a guerra dos homens serve exclusivamente à destruição sem a menor “astúcia”, uma destruição bruta mesmo, expressão visível de uma “pulsão de morte”  antivida.

Nas guerras que Kant presenciou, nosso planeta  em sua imensidão oferecia abrigo e proteção aos vitimados pela  bestialidade niilista dos homens.  Porém a treva hoje é tamanha, que a própria Mãe-Terra  corre riscos  diante da treva da ignorância armada com mísseis abomináveis.

Por isso, preferimos Espinosa ao ensinar que o pensamento realmente emancipador  nunca é “astuto” : o que é  libertário se  mostra sobretudo nos meios que emprega para afirmar a si mesmo. É  afirmando a si mesma que a luz fica mais potente e pode vencer  as trevas, e nunca  fazendo das trevas  do ódio um meio.




 



domingo, 19 de fevereiro de 2023

Midas

 

Midas era um homem que alimentava por dentro uma ambição desmedida por posses , dinheiro e  poder.

Querendo aparentar ser o que não era, certa vez Midas  ajudou um homem em dificuldades , e a essa ajuda Midas  deu grande publicidade, querendo dela extrair popularidade.  

Parecia que ele se preocupava com o outro, mas na verdade ele estava usando o outro como meio de obter poder.

Dioniso viu Midas ajudando o homem em dificuldades , pensou que ele agia por  genuína bondade  e quis recompensar Midas dando-lhe o poder de realizar seu mais íntimo desejo. É no que mais se deseja que cada um revela como é por dentro  . 

Midas então revelou em seu pedido o quanto era pobre interiormente: seu desejo era que virasse ouro tudo o que tocasse. Midas imaginava que assim teria a felicidade.

Dioniso compreendeu que Midas não era por dentro como aparentava ser por fora. Mas realizou seu mesquinho desejo, pois sabia que dali viria uma lição, ainda que dolorosa.

Assim, sob o toque ganancioso de Midas viravam ouro  a colher, a mesa, a cadeira, o copo...Mas viravam ouro também , uma estátua de ouro, alguém  que ele abraçava, o cão que ele afagava, o passarinho que vinha pousar na sua  mão...

 Para seu desespero, igualmente  virou estátua seu filho  recém-nascido que ele pegou no colo . Depois, viravam ouro  a água, o arroz, a carne, a maçã, o pão...antes que Midas pudesse matar a fome e saciar a sede.

Midas suplicou  conselhos a um sábio, ajoelhando-se de cabeça baixa e  segurando sua mão. Diante do silêncio do sábio,   Midas levantou a cabeça e viu apenas   uma estátua boquiaberta. Midas  então chorou, e de longe eram ouvidas  suas lágrimas quicando no chão como moedas.

Midas descobria agora que a loucura por acúmulo é a pior  das misérias...Então, ele busca  Dioniso e pede uma  cura para aquela  pobreza de apenas no ouro ver riqueza.

Dioniso o lava no fluxo de um rio perto de uma aldeia pobre. O rio ficou repleto de pepitas de ouro  que Dioniso partilhou com  os necessitados.  Midas enveredou por  uma estrada e sumiu...

Passou o tempo, e todos pensavam que Midas já   estivesse   morto. Até que um dia ele retorna. Vestia-se parecendo um andarilho, tinha a companhia de um  cãozinho  vira-lata e estava pousado em seu ombro um passarinho como se ali fosse um ninho.

Midas se mostrava  simples por fora, mas por dentro parecia enfim rico. Tal  riqueza vinha da cura que lhe fez Dioniso, que escondeu uma das pepitas no peito de Midas  , e de ouro se tornou seu coração renascido solidário.

Midas agora parecia realizar esta lição de ouro de Espinosa: "Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois, proposição 49, escólio)







sábado, 18 de fevereiro de 2023

os estoicos e a "arte de aconselhar"

 

Os estoicos diziam que além de sua parte teórica e de sua parte prática, a filosofia também compreende uma terceira parte ainda, tão fundamental quanto as anteriores. Essa terceira parte é a preceptística[1] : a arte dos conselhos de como agir , sobre si e sobre o mundo.

Enquanto a parte teórica desenvolve  a inteligência, a preceptística auxilia na formação  do caráter. Ou seja, não basta estudar  teoricamente a parte prática ( a ética), é preciso literalmente pô-la em prática.

A preceptística tem dois lados: a fonte na qual são produzidos os conselhos, e os ouvidos aos quais se dirigem esses conselhos. Ouvidos que ouvem como devem ser ouvidos  os conselhos nunca são ouvidos passivos, isto é, nunca são ouvidos habituados a ouvirem apenas ordens. Pois conselhos que visam formar o caráter ( éthos) nunca  são ordens.

É preciso, portanto, um ouvido perseverantemente ativo para apreender  o que ensina o conselho, e uma audição assim    nunca começa e termina  apenas no ouvido, uma vez que essa audição  se liga também às pernas, braços, coração e inteligência, para dessa maneira  agir. É todo o nosso ser que  deve fazer-se ouvido de uma audição que  nos desabre, como ensina o poeta Manoel de Barros.

Mas não basta ouvir   conselhos para tornar alguém filósofo, pois filósofo é quem pode ser fonte de conselhos: não só falando ou escrevendo, mas sobretudo agindo, servindo de exemplo. Os conselhos ouvidos formam, os conselhos emitidos ajudam a formar.

O filósofo é fonte de conselhos porque ele , antes, teve ouvidos para ouvir conselhos que o formaram como filósofo. Essa formação nunca termina, pois o conselho que o filósofo endereça ao outro, antes ele endereça a si mesmo, esforçando-se para  ser o primeiro a seguir aquilo que sua boca fala ou sua mão escreve. Como ensina Plotino: esculpindo a si mesmo, o filósofo nunca termina de fazer sua própria estátua, cujo  modelo não é o próprio ego , mas o universo.

De tal modo que o filósofo sempre mantém atentos e abertos seus olhos e  ouvidos, para assim aprender o que lhe ensinam o  tempo, a vida, a natureza, enfim, o próprio cosmos.

Quando alguém passa de ouvinte de conselhos a fonte dos mesmos, tornando-se assim filósofo? Quando nasce a autoconfiança, ao mesmo tempo potente e modesta, que faz da filosofia não só um estudo, mas antes de tudo um modo de vida.




[1] Sêneca, Cartas a Lucílio, “Carta 94”. Tal como a entendiam os estoicos,  a "física" está implicada na parte corpórea desse aprendizado, já que nosso corpo é parte da natureza.




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

a origem do carnaval

 

Na sua aurora, o carnaval nasceu como festa dedicada   a Dioniso, o deus das artes. Naquela época, Dioniso era o símbolo do “triunfo da vida”. Não o triunfo de uma vida sobre outra vida, como na competição desumana dessa selva capitalista, mas triunfo da vida resistindo àqueles que a querem   morta, nos vários sentidos que a palavra “morte” tem.

Segundo a mitologia, foi Dioniso que ensinou esse triunfo   aos que correm perigo, para neles salvar a vida.  Pois quando era ainda criança, Dioniso foi despedaçado por divindades sombrias, propagadoras  do ódio e da vingança.

Sabia-se que Dioniso tinha uma metade humana e outra metade divina, uma metade mortal e outra que nunca morria. Mas qual era a parte divina dele? Ninguém sabia...Exceto Zeus.

Então, quando Zeus viu Dioniso-criança despedaçado, buscou entre as partes a que era divina, pois somente essa parte  pode resistir aos carrascos da vida.

Era o coração, sede da coragem e do afeto,  a parte onde é mais potente a  vida. Zeus pegou o coração de Dioniso-criança e dele fez nascer novamente Dioniso. Isso explica seu nome: “Di-oniso”, “duas vezes nascido”.

Quando nasceu a primeira vez, Dioniso veio ao mundo chorando, como  todo recém-nascido ; ao renascer , porém, Dioniso  saiu  do coração sorrindo , em festa, na alegria do   triunfo da  vida. 

Esse triunfo não foi fruto de promessas , ele foi  obra da primeira das artes : a  arte de  tornar a vida de novo nascente, nesta vida e não noutra.

Tal triunfo vinha acompanhado de uma potente alegria semelhante a uma embriaguez .  Não a embriaguez por excesso  etílico,    mas   embriaguez  pelo excesso de vida transbordante .  

Manoel de Barros, ébrio de poesia , chama  de “deslimite” a tal excesso que não deixa  morrer a vida: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, diz o poeta de vida embriagado.

Em grego, “embriaguez” se escreve assim:  “bacchus”. Quando os romanos deram o nome  “Baco” a Dioniso, enfatizaram apenas um dos aspectos de Dioniso, não a sua simbologia como um todo: reduziram a embriaguez ( “bacchus”) ao estado provocado pelo vinho , ignorando que a embriaguez dionisíaca tinha originalmente muitos outros  sentidos.

Pois  mesmo antes de descobrir o vinho,  Dioniso já se embriagava com a pura  água que ele  bebia nas fontes de Gaia, a Mãe-Terra.

Dionisiacamente,  o poeta Baudelaire ensina: “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”

 

 

 

( imagem: “A vinha vermelha”/ Van Gogh)












quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Voar fora da asa

 Os canários que nasceram e permanecem  em gaiolas vivem mais a cantar do que os canários que vieram ao mundo  livres e vivem a voar .

Os canários que nasceram  livres exercem sua liberdade em mais ações do que no mero cantar. Eles cantam também, mas igualmente voam, ciscam a terra, bicam os frutos, enamoram-se, constroem ninhos, criam seus entes e lhes ensinam a voar.

 Os canários que nasceram no cativeiro apenas são livres no cantar, um canto do qual se apropria o dono que os mantém no cativeiro. Nesse canto há uma nostalgia do que nunca viveram. Seus cantos não são a expressão sonora de  asas que ousam  voar horizontes, pois são cantos estéreis de asas atrofiadas. São poetas de gabinete, são filósofos apenas de livros.                                                        

Os passarinhos livres seguem a lição que ensinou e viveu Espinosa: "Quanto mais um corpo é capaz, em comparação com outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, tanto mais a sua mente é capaz, em comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas".

 

  

“Poesia é voar fora da asa.”

 (Manoel de Barros)

 

“Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.”

 (Manoel de Barros)

 

 “Nossos cicerones são aves cantando.”

(Cartola)

 

 

 

( o livro de Manoel é apenas uma sugestão de leitura. Manoel se autodefinia como um “sabiá de terreiro” que morre se colocado em gaiolas...) 









 

sábado, 11 de fevereiro de 2023

ChatGPT

 

A nova inteligência artificial  ChatGPT vem sendo tratada por certo setor da mídia como o fim dos filósofos, poetas,  escritores,  professores...

 Porém, como toda inteligência, ela é capaz de produzir apenas dentro do âmbito daquilo que pode uma inteligência. Mas o pensamento não é só inteligência, nele também há intuição, sensibilidade, imaginações, afetos...

O teste de QI, por exemplo, mede apenas a inteligência, pois   não existe teste para medir o caráter...E o pensamento também  é expressão  do caráter em sua dimensão ética: um filósofo não produz um texto só porque alguém lhe pede, isto é, sem saber os usos , intenções ou fins daquele que pediu.

Além disso, a inteligência artificial não veio para substituir poetas, professores  e filósofos. No máximo, ela é mais um poeta , professor e  filósofo; um poeta , professor e  filósofo medianos, para falar a verdade.

Assim como cada escritor tem seu estilo, a inteligência artificial também o tem, um estilo um tanto clicheroso e com  “lugares comuns” previsíveis ( feitos à medida de quem quer apenas lucrar dinheiro com eles).

Quando o professor pede para uma turma de trinta alunos dissertarem sobre  o que significa a “Caverna de Platão”, por exemplo,   provavelmente o professor  receberá trinta respostas diferentes . Mas se a mesma pergunta for feita trinta vezes à inteligência artificial, provavelmente ela dará trinta vezes a mesma resposta.

O problema não é um robô substituir o professor que ensina, grave será o dia em que quem aprende aceitar se comportar como um robô: pois robôs não aprendem, são programados...

Não são os mesmos o “virtual” da inteligência artificial e o virtual do qual nascem os pensamentos e ideias de poetas, criadores e filósofos. O virtual da inteligência artificial  está dado no sistema  , ela apenas retira dele seus textos, ao passo que o virtual do pensamento vivo nunca está dado, nem mesmo na rede material dos neurônios.

 A rede de neurônios  atualiza o virtual do pensamento em cada ideia que temos , mas sem esgotar sua potência virtual não dada. A inteligência artificial é refém de possíveis já dados, enquanto que o pensar filosófico-poético renova a realidade muitas vezes pensando o impossível.

A inteligência artificial é mais uma possibilidade-ferramenta desde que se saiba usá-la,  e não ser usado voluntária e ingenuamente por ela. E aqueles que a empregarem para burlar e fraudar, esses serão   apenas novas versões de  velhas práticas fraudulentas já existentes desde   a época em que o suporte do pensamento era o papiro...

A inteligência artificial, como toda tecnologia, não  existe para pensar “no lugar de”, e sim para possibilidades  “com”: é preciso saber agenciar-se com ela para não se ficar escravo e servo voluntário  dela.

Como ensina o poeta Manoel de Barros: “Não sou da informática, sou da invencionática.”


( este  livro é apenas uma sugestão de leitura)






quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

o paciente da janela

 

No último dia  de um curso de  Introdução à Filosofia que eu ministrava, uma aluna que nunca faltava  me entregou um papel e disse : “Professor, acho que tudo que  você falou no curso tem a ver com esta história”. 

De autoria anônima, o texto estava datilografado: era uma dessas histórias que a própria vida escreve . Segue uma interpretação dela:

Cinco pacientes estavam numa enfermaria que tinha   apenas uma pequena janela como abertura ao mundo. Cabia apenas uma das macas sob a janela. O paciente que se encontrava nela passava o dia narrando  aos demais enfermos  os acontecimentos e paisagens que ele via através  da janela :

“Vejo daqui um mar azul de amplo horizontes,  vocês conseguem sentir  sua brisa?” Três dos quatro pacientes que ouviam o relato conseguiam sentir a brisa, embora não vissem o mar. De imediato, acendia-se neles a memória dos dias em que se banharam no mar. Porém um dos pacientes não conseguia sentir a brisa, por mais que se esforçasse.

No outro dia, o paciente-narrador prosseguia: “Vejo  crianças brincando numa pracinha, vocês conseguem ouvir o riso delas?” Os três que sentiram  a brisa também conseguiam ouvir as crianças. Algumas dessas crianças estavam também dentro deles, de tal modo que eles se lembravam da criança que foram. Parecendo ter  a sensibilidade fechada, o quarto paciente nada ouvia...

E assim se seguiam os dias: como um aedo-poeta, o paciente da janela empregava suas palavras para com elas reavivar mundos, de tal modo que seus relatos  também eram remédio.

Mesmo doente , ele encontrava a oportunidade para, usando simples palavras,  auxiliar a vida do outro, não fazendo de sua posição na janela um privilégio egoico ,  doentio.

Mas houve um dia em que ele estava mudo e de olhos fechados. Chamaram a enfermeira.  Ela constatou, sem surpresa, que ele não mais vivia. Ela disse que o paciente da janela era o mais doente dentre eles  ( embora ele , como um estoico, nunca  se queixasse...).

Havia agora um espaço vazio sob a janela. Combinou-se que o paciente com a sensibilidade embotada poderia ocupar tal lugar, desde que continuasse as narrativas.

Quando ele foi colocado lá, porém, nada disse, ficou mudo. Indagado porque nada narrava, ele respondeu : “Aqui diante da janela não há mar, crianças ou pracinha; há apenas um espesso muro  cinza”. Ele se limitava a repetir: “Há apenas um espesso muro cinza...”

Sua palavra se tornou a mais pobre que há: aquela que , resignadamente, apenas descreve o que está dado.

Já o primeiro paciente usou as palavras para criar  uma linha de fuga  e transver o muro com sua “visão fontana”, como ensina Manoel de Barros.

O muro cinza representa tudo aquilo que rouba nossa visão de horizontes, externos e  internos.

 

Essa história me lembra Sêneca, que dizia  : nenhum de nós é “O” médico, pois somos companheiros de enfermaria. Encontra o remédio  aquele cujas palavras e ações partilham educação, arte  e conhecimento  que fortalecem em nós a vida.


“Todas as ideias salutares devem estar em movimento, em permanente atuação, de modo a serem para nós não só objeto de conhecimento mas também de prática.” ( Sêneca, Cartas a Lucílio, “Carta 94”)

 

(imagem: Magritte)





segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

economia política

 

A palavra “economia”  tem por raiz o termo “oikos” : “espaço privado onde reside uma família”. Assim ,  economia é: “cuidar do patrimônio da família” chefiada pelo homem.

Já “política” vem de “pólis”. Essa palavra costuma ser traduzida por “cidade” : “Petrópolis”, cidade das pedras. Mas pólis também significa “organização”.

 Esse sentido está presente em “própolis”: “ a favor da organização”, pois a colmeia é uma organização. É errado comparar a colmeia a uma monarquia, pois as mesmas larvas da abelha podem se transformar tanto em operárias como em  rainha: é a colmeia que escolhe o ser no qual se transformará a larva. E se ela se transformar numa “rainha”, é para servir à coletividade, e não a coletividade servir a ela . Inclusive, o nome “rainha” não é adequado, o mais correto seria:   útero da comunidade.

Assim, a pólis é espaço público e comunitário. Pólis é construção da sociabilidade: defesa da cidadania. Enquanto a economia, na sua origem,  é gestão da posse e propriedade da família, a política é governo que deve cuidar do comum e realizar a justiça.

Na família,  o sangue e a tradição  são o elo  que une seus membros ; na pólis, a seiva é a lei publicamente debatida que une os cidadãos na construção do futuro.

A raiz da economia é a família; a raiz rizomática da política é o socius. Para que os interesses da comunidade não ficassem subordinados aos das famílias e seus chefes, os gregos inventaram a “economia política”: os interesses privados têm que estar subordinados aos interesses da comunidade.

Os economistas liberais de hoje pensam o contrário: para eles , a política deve estar subordinada à economia privatista. É por isso que eles aceitaram até um fascista que negava a política, desde que ele não negasse  a “Santa Propriedade” e os juros.

A tal “autonomia do Banco Central” pregada por essa gente na verdade é a subordinação do interesse público aos negócios das grandes famílias donas dos grandes bancos e das grandes mídias.

Essa ideologia economicista liberal parte da ideia de que a sociedade é secundária  em relação ao indivíduo empreendedor. Porém por trás desse culto ao individualismo está a defesa do patrimonialismo familiar que se perpetua pelo direito à herança.

Não é por acaso que máfias e milícias são “famílias” : elas são puro projeto de lucro a todo custo em detrimento da comunidade, da justiça  e da política.

A subida do fascista e sua manutenção no poder não foram mero acaso. E também não é acaso ser a “Família” um de seus lemas, junto com “Pátria” ( o poder do “Pater-Homem-Branco”) e Propriedade ( enquanto roubo feito à comunidade).

A democracia não é apenas um regime político, ela também deve ser  um pensar e planejar a economia segundo fins sociais de uma  economia política.


( este livro é apenas uma sugestão de leitura)






domingo, 5 de fevereiro de 2023

o tamanho da filosofia

 

                                     O TAMANHO DA FILOSOFIA [1]

 

Qual o tamanho da filosofia? Em uma de suas Cartas[2], Sêneca nos coloca essa questão. Muitos reclamam de a filosofia ser muito ampla e ter muitas partes : ética, lógica, teoria do conhecimento, estética, poética...E que o estudo de tais coisas rouba tempo.

Mas esse tipo de grandeza quantitativa mensurável pelo tempo não traduz a autêntica grandeza da filosofia. Não são livros, disciplinas e sistemas que expressam a verdadeira grandeza e amplitude da filosofia.

Então, qual o tamanho da filosofia? Responde Sêneca: “A filosofia é do tamanho do universo”. Seria tolo quem reclamasse que o universo é muito grande...Para saber que o universo existe e que ele é inesgotável, não é necessário condicionar isso a tempo para percorrê-lo.

Quando olhamos para o céu e nos damos conta da amplidão do universo, não o vemos apenas com nossos olhos, pois esses veem apenas uma parte do universo; também vemos o universo com nosso pensamento, que assim pensa o seu todo aberto.

Ver-pensando o Universo Aberto também nos desabre, nos desegoifica, e expressa o que  Manoel de Barros chama de “horizontamento”[3].

 É pensando o universo que o pensamento descobre a si mesmo enquanto  ato o mais libertário do qual somos capazes, ele que é , como ensina Espinosa, ato-potência do próprio universo se pensando a partir de nossa perspectiva sobre ele.

Mas a maioria dos homens vive imersa em seus interesses, em suas paixões limitadoras  e opiniões reativas. As opiniões reativas os deixam mais  do que cegos: roubam seus olhos do pensamento. Assim como ignoram o universo , ignoram a si mesmos e a filosofia. Imaginam que estudá-la é perder tempo , assim como imaginam que conhecer  o universo dependeria de se percorrê-lo parte a parte .

Porém , como ensina Bergson, o filósofo se instala de imediato e  intuitivamente, com o pensamento e o corpo, na filosofia, uma vez que ele se instala , antes de tudo, na existência. É como um raio que o pensar percorre a filosofia, sempre fazendo descobertas a cada vez que a  percorre, sem esgotá-la.

Não é mera metáfora afirmar que o pensamento é luz, pois a luz é a realidade de maior velocidade. O universo somente pode ser apreendido na velocidade da luz, e o olhar que o pensa torna-se “luzeiro”. 

O universo é luz que percorre a si mesma : luz que sai de si mesma, viaja sobre si mesma e retorna a si mesma, diferente de quando partiu.

E o mesmo é a filosofia: luz que se irradia ao universo em velocidade infinita , luz  que a si mesma se revela ao pensar o universo do qual é uma expressão viva enquanto potência  afirmadora da Terra.

O estudo da filosofia não é perda de tempo, e sim ganho de eternidade. Não uma eternidade que apenas se contempla, mas a partir da qual se age no aqui e agora.



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

 [2] Cartas a Lucílio, “Carta 89”.

[3] Cf. poema “Canção do ver”, de Manoel de Barros.                                               




sábado, 4 de fevereiro de 2023

a escolha de Ulisses

 

A Odisseia, de Homero, tem como cenário o oceano com suas tempestades, calmarias, ilhas desertas, vastidões abertas... E por personagens monstros, divindades, inimigos, armadilhas... É nesse cenário e às voltas com esses personagens que acontece a história de Ulisses.

Ulisses não tinha a coragem de Aquiles, tampouco o senso de comunidade e justiça de Heitor. Porém Ulisses era dotado de um tipo de inteligência capaz de inventar  meios  para vencer e dominar. Foi assim que Ulisses teve a ideia do “Cavalo de Troia”: um “presente” dado ao inimigo para vencê-lo com astúcia.

Após a vitória na guerra de Troia, e vaidoso com sua inteligência astuta, Ulisses se lançou ao oceano em busca de mais vitórias e conquistas desmedidas.

Mas o preço pago por tamanha  ambição foi enlouquecer sua bússola, quebrar  seu leme, perder seus companheiros de viagem e ter seu barco destruído pelas tempestades: sua inteligência astuta e ambiciosa mostrou-se uma forma de ignorância e loucura diante da força , mistério e amplidão do oceano.

Até no Hades , Reino dos Mortos, Ulisses foi parar, parecendo estar  morto para si mesmo. Náufrago  e perdido , Ulisses se refugiou numa ilha . Circe, a divindade dessa ilha, apaixonou-se por Ulisses. Ela curou suas feridas e o fortaleceu.

Por fim, Circe disse: “Ulisses, se você ficar comigo aqui na minha ilha  tornarei você imortal. Nunca mais você sentirá medo, fome, dor e  saudade. Então, você deve fazer a seguinte escolha: ou continuar sendo  parte da frágil  humanidade, vivendo sob o risco dos perigos  e tempestades , ou ficar aqui comigo , na tranquilidade segura da imortalidade  ”.

Mas a resposta de Ulisses não foi dada por sua inteligência astuta ávida por conquistas, propriedades e ouro; a resposta foi dada por seu coração desejoso para ver de novo sua terra natal, sua Ítaca, na qual o esperava Penélope.

Penélope simboliza a alma que resiste ao assédio dos “pretendentes” que tentam comprá-la.  Recordar vem de “re-córdis”: “trazer ao coração”. Foi a recordação de Penélope, fazendo dela a força de sua coragem ( “coragem”: “força do coração”), foi essa recordação que levou  Ulisses a escolher a humanidade e retornar à sua terra natal , para isso se lançando em nova viagem, desta vez não temendo as tempestades, pois Ulisses agora sabia aonde ir: de volta a si mesmo, ele que se perdeu de si.

A humanidade não é o “Homem”, a humanidade é um valor que somente existe se for criado  por  nossas escolhas éticas e políticas, pois escolher a  humanidade também precisa ser uma  escolha coletiva.

Apesar das tempestades, é sempre em direção à humanidade que precisamos ir. Ela é , ao mesmo tempo, a bússola, o leme ,  a  viagem e o porto : a terra natal onde reside/resiste nossa Penélope-Psiquê .

 

( para crianças e jovens, vale a pena essa edição narrada por Ruth Rocha, porém a interpretação que fiz se inspira em  Sêneca, na carta 88 das “Cartas a Lucílio”)