sábado, 31 de outubro de 2020

a pessoa coletiva

 

No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, o  pensador indígena Ailton  Krenak nos mostra como os povos da floresta agem para evitar a ameaça de fim de mundo: mais do que o cacique , enquanto “chefe político”, ou o pajé, o “chefe religioso”, assume o comando  aquele  que é uma  “pessoa coletiva”. Nos povos da floresta a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade. Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo. A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”. É assim que o poeta é chamado: “pessoa coletiva”. O poeta expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo, o mundo dos povos da floresta.  A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze & Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo. Segue um trecho do livro de Krenak:

"Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar  com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram  e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas 'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo." ("Ideias para adiar o fim do mundo", p. 28)

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios.” (Manoel de Barros)


- Outro trecho do livro: 

“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido em viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. (...) O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer  a gente desistir  dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre o adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso , estaremos adiando o fim” (p. 26).





terça-feira, 27 de outubro de 2020

os cactos...

 

Muito se fala, com razão, das flores. Rosas, girassóis, crisântemos, margaridas...já foram homenageadas em músicas, poemas, pinturas. Mas pouco se fala do cacto. Acho uma injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção, o cacto  é capaz de atos que trazem a beleza da generosidade.  Assim age esse perseverante resistente:  o  cacto é a planta que possui a maior raiz. A extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão. Quem mede o cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca. As raízes do cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe Terra a água que o Céu lhe nega. Quando encontra a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce , de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados. Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu do cacto. No Nordeste , o cacto é o mais forte símbolo de resistência da vida . E ainda matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

 

“Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”(João Cabral de Melo Neto)

 

 ( em homenagem ao grande poeta João Cabral, ofendido recentemente por esses ignorantes obscurantistas que querem transformar tudo em deserto  . Enfeitando a capa do livro de João , cactos do Nordeste)



Chico & João Cabral:



TECENDO A MANHÃ / João Cabral de Melo Neto


Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.


Tom Zé, Arnaldo Antunes & Grupo Corpo: 
                         ( o nome da música é "Xique-xique", um cacto do sertão nordestino)




sábado, 24 de outubro de 2020

o devir-vespa da orquídea

 

Na mitologia, uma das nove  Musas se chama “Erato”. “Musa” significa: “conhecimento que vem das artes.” De “Musa” vem “música” e “museu”, pois música e museu também ensinam, com eles também se aprende. Antes de escreverem  suas poesias , os poeta antigos  evocavam Erato  para os auxiliar a encontrarem o que eles queriam  expressar. Pois antes de a poesia se tornar  palavra, ela deve ser encontrada, primeiro, na Vida, no Cosmos.  Erato é a  Musa que auxilia nessa busca e processo de pôr no escrever o que primeiro se experimentou vivendo. Erato inspira   toda obra que nasce do desejo, pois “Erato” vem de “Eros”, o “Amor”. É Erato que parece inspirar também este  verso de Manoel de Barros: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”. A inimiga de “Erato” é “Éris”, divindade obscura ligada ao Ódio e à Vingança. Negadora da  vida, Éris é a  antipoesia.

Deleuze narra um acontecimento que parece inspirar-se também na potência transmutadora  de Erato. Trata-se do encontro amoroso entre uma orquídea e uma vespa. Apesar de não terem  pernas, as orquídeas criaram um meio de se encontrarem.  Entre uma orquídea e outra há uma distância que somente uma arte originalíssima será capaz de vencer. A orquídea vence tal distância da seguinte maneira:  mesmo sem ter mãos, a orquídea  esculpe  em suas pétalas o órgão genital de uma vespa fêmea. Diferentemente de um escultor que esculpe em algo diferente dele mesmo, a orquídea esculpe sua obra em seu próprio ser, em seu próprio corpo, de tal modo que entre a artista  e sua arte já não há distinção. Ao ver o que pensa ser um outro indivíduo de sua mesma espécie, a vespa real  se une à vespa inventada que a orquídea-artista  criou .Ao sair  do seu ato de amor com seu corpo imantado de pólen , a vespa se torna o instrumento de fecundação  entre as duas orquídeas distanciadas no espaço, mas que se encontram e se amam por intermédio das asas   da vespa. Em grego, um dos sentidos de “eros” é “asas”... Assim como Van Gogh criou um girassol feito de tintas, a orquídea inventou uma vespa feita de pétalas, fabricando  um “devir-vespa”. A arte não é imitação da vida, a arte é a vida mesma . Sem precisar de pernas ou se mover no espaço, uma orquídea encontra a outra por intermédio de uma “linha de fuga” feita nas asas da vespa.  A própria natureza ensina que não basta ter ideias que só fiquem teoricamente no pensamento : é preciso inventar os meios que as tornem agenciamentos que fecundam .

“Adoro orquídeas. Já nascem arte.”( Clarice Lispector)

“A arte é bem realizada quando com a natureza se parece; e, por sua vez, a natureza é bem sucedida quando expressa a arte em seu seio.” (Longino)

(  este maravilhoso   livro é uma das inspirações da narrativa de Deleuze  )






-






quarta-feira, 21 de outubro de 2020

a zeroidade...

 

Quando eu era bem criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não cabe  no  que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também com o pensamento. Foi assim: após aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é , nada. Ele é nada quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado. Mas se engana quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo? E essa interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando mais um zero, nasce o 1.000! Descobri então que o zero não é um “nada”, a não ser que se deixe reduzir  a isso. 

Pois  se a gente  coloca o zero  na companhia de outro número dele diferente, do encontro  nascem outros números, como se dentro do zero existissem potencialidades que a gente só conhece quando ele “desabre” ( “desabrir”  é  prática poético-pedagógica   ensinada pelo poeta Manoel de Barros) . O  zero precisa do 1 para se saber mais do que zero. É a diferença, o “outro”, que o enriquece. Quando o zero  conhece a si próprio, ele vê então o que ele é de verdade:  não um nada , mas um “ovo”, uma realidade cheia de potencialidades.  A ágora grega por exemplo, enquanto  sol da democracia, é um zero-círculo  assim. Depois de fazer  essa descoberta, ainda bem criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de 1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na verdade eu  queria dizer , brincando, que o pensar  faz a alma aumentar em mil seu tamanho. Depois aprendi com poetas e filósofos libertários que o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto mais gente sair e se agenciar  , mais difícil será  para os inimigos do pensamento  nos  reduzir  a nada. 

 

“Às vezes começa-se a brincar de pensar,e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.”( Clarice Lispector)

 

“A zeroidade é o plano de imanência do pensamento.” ( Deleuze)




 - “Zeroidade” é uma ideia criada por Deleuze a partir da leitura que ele faz do filósofo Peirce , que dizia haver três níveis de realidade: a Primeiridade, a Segundidade e a Terceiridade. A Primeiriade é  onde existem as singularidades ( como realidade primeira); a Segundidade é o plano das relações-agenciamentos ( dos “encontros”, diria Espinosa); e a Terceiridade é o plano social das regras ( que devem sempre potencializar as singularidades, e não as apagar fazendo-as de rebanho homogêneo). A “Zeroidade” é o plano inicial, livre e sem dono. A Zeroidade  é, como diz Manoel, um “horizontamento” ; ou ainda como ensina Hesíodo, a Zeroidade é o “Caos Original” do qual tudo nasce.

 

 

 - Creio que o "Nada" de que fala Manoel é como um zero-potencial assim:




 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

ao dia dos professores

 

Tempos atrás, um amigo me perguntou se eu aceitaria lecionar filosofia para seus dois filhos, um de 10 anos e outro ainda mais jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou durando 1 ano. O mais velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado “Xandinho”. Certo dia , ele e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao Xandinho: “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, ele olhou para o irmãozinho e, sem dizer nada, o abraçou com cuidado . Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia não era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que as ideias que valem a pena ensinar se deixam desenhar com lápis de cor. Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles colorirem: a forma era minha, mas as cores eram eles que escolhiam para pintar, com as mãos livres . E eles coloriam sempre multicoloridamente, nunca em preto e branco.

Perto do fim do ano, houve um feriadão. Toda a família desse amigo viajou para Londres, incluindo os dois meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o Xandinho me narrar o que aconteceu em Londres, mas o menino saiu correndo, como se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”, diria Manoel de Barros . Eles foram ver, entre outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha da Inglaterra passa à frente do público, e todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai mesmo me contou o que aconteceu: quando a Rainha , cheia de pompa e ouro, passou diante deles, todos se ajoelharam diante de seu poder, exceto o Xandinho. Ele ficou de pé, de braços cruzados, firme, olhando diretamente para a Rainha, que virou a cabeça para olhar , espantada, o pequeno insubmisso. Quando a mãe indagou ao menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu : “Não ajoelho diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai: “acho que já está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”. Nesse mesmo dia em que ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino da peraltagem me perguntou: “Vai ter prova?”. Respondi: “Não , você já está aprovado. Com dez.”

 

(Aos “Xandinhos / Xandinhas ” e à querida Professora Nadir, que lecionou filosofia para mim no 2º grau, a primeira professora que me ensinou a ficar de pé. Minha homenagem também aos  inesquecíveis mestres aos quais tudo devo: Cláudio Ulpiano, Junito Brandão ,Luiz Alfredo Garcia-Roza e Gerd Bornheim . Como diz Manoel de Barros:  “O melhor de mim sou Eles." )


              ( imagem: o professor Deleuze em sala de aula)











Como minha querida Professora Nadir não escreveu livros, posto esta imagem que me fez lembrar dela  , com o trecho de um poema de seu poeta preferido. Na foto,  Stheffany Rafaela, moradora de uma comunidade do Recife, que transforma em sala de aula as vielas de sua comunidade. Foto: Aldo Carneiro/Pernambuco Press.



A primeira vez que passei este filme foi quando lecionei filosofia da educação em um curso de formação de professores. Uma das maiores emoções da minha vida foi assistir esse filme com os alunos, que eram também professores.  Todos ficaram muito emocionados ao fim do filme, que mostra, entre outras coisas, o grande potencial libertário que a educação autêntica pode ter; e , exatamente por isso, o risco que ela corre quando os ignorantes fascistas chegam ao poder. 







segunda-feira, 12 de outubro de 2020

AO DIA DAS CRIANÇAS ( com Manoel e seu devir-criança)

 

O poeta Manoel de Barros já passava dos 80 anos quando um editor pediu que ele escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. Imaginava o editor que o longevo poeta teria  muito a falar de si, sobretudo de seus prêmios , sucesso e  fama ( que vieram para Manoel somente depois dos seus 60 anos...). Talvez se esperasse que Manoel  , na memória da velhice, desse  conselhos e proferisse palavras de sabedoria nascidas de sua  avançada idade.

Depois de algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro: “Memórias da primeira infância”. Meses depois, o poeta deu à luz nova publicação: “Memórias da segunda infância”. Após novo intervalo, outra obra nasceu: “Memórias da terceira infância”. Como as memórias da vida adulta e da velhice não apareciam, o editor tomou coragem e indagou Manoel a respeito, e assim o poeta respondeu: “ só tive infância, não tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

 A palavra “velhez” é uma invenção do poeta, um neologismo. “Velhez” não é uma idade, “velhez” é quando os dias vividos se tornam um peso curvando as costas, não importando a idade que se tenha. “Velhez”   é a  vida  prostrada, de joelhos, sem forças para caminhar e avançar. Às vezes, é a própria sociedade que sofre de “velhez” : quando seu futuro , ainda nem chegado, já parece extinto...

“A única coisa que carrego é meu chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel nomeia as ideias que protegem os pensamentos que dão caminho às pernas: “sobre o meu chapéu um casal de pardais fez um ninho: há nele ovos sendo chocados, como dentro de mim dias novos”.

O poeta também diz que  "velhez" é um tipo de vida  que se perdeu de seu "embrião", de seu começo e “minadouro” . O embrião nunca  está num passado remoto e morto. Mesmo o imenso rio amazonas tem seu embrião lá no alto dos Andes: mesmo há muitos anos a correr , o rio ainda está a nascer agora, umbilicado às águas novas. O que para o rio são as águas, para o poeta são as fontanas palavras de seu “devir-criança”: “A palavra até hoje me encontra na infância ; não avanço para o fim, avanço para o começo: para a Origem que renova ” (Manoel de Barros).










- o genial Tom Zé ( ao vivo):
  

sábado, 10 de outubro de 2020

os dois pães

 

“Companhia” vem de “companis”. “Panis” está na raiz da palavra “panificadora”, pois “panis” é, em latim, “pão”. Assim, “companheiro” é : “aquele com quem dividimos o pão”. São dois os pães : o literal e o poético, o feito de farinha e fermento e o composto de ideias e sonhos . O pão literal é o alimento de que precisa o corpo. Quando esse pão falta, vem a fome. A elitista Maria Antonieta , zombando da fome do povo, no passado disse: “Não têm pão? Que comam brioches!” . As “Marias Antonietas” de hoje , não menos elitistas, agora dizem: “Não têm arroz? Que comam capeletti!”. E ainda tentam comprar os incautos com trezentos reais que mal pagam migalhas de pão...

As resistências às tiranias sempre nascem do aprender a dividir o segundo pão : o que deve alimentar o que em nós é capaz de se indignar , se unir e engendrar ação . Criar um devir-companheiro é partilhar os dois pães: o que nutre o corpo e o que deve alimentar o que em nós tem fome de arte, de poesia, de liberdade, de justiça, de cultura, de educação... para que nossa dignidade não morra de fome. O primeiro pão tem preço e é comprado com dinheiro, mas o segundo pão não tem preço e só se pode conquistar com luta.

 

( imagem: o filme “Pão e rosas” , unindo crítica social e poesia, fala da urgente luta por esses dois pães)







quarta-feira, 7 de outubro de 2020

sofias...

 

A filosofia não nasceu na Grécia. Ela foi deixada lá ainda criança, tal como aqueles bebês deixados   à porta de alguém que inspira confiança. Inclusive, a tez da filosofia é mais escura e mestiça do que a branca pele grega. Há quem diga que seus pais eram Egípcios; outros afirmam que foram os Assírios que a conceberam; e há quem defenda ainda que os pais da filosofia foram os nômades povos do deserto que se guiavam pelas estrelas e que nenhum império  , por mais que tentasse, conseguiu prender e escravizar . A porta em que a filosofia foi deixada para ser cuidada pertencia à casa de um homem digno chamado Tales, que deu o nome  Sofia  à criança. Ele a criou e a ensinou a ficar de pé.Com Heráclito Sofia aprendeu a brincar; com Nietzsche, a dançar; e  a fazer-se mais viva Sofia aprendeu com Espinosa, diante dos  obscurantistas  que a querem morta.

 

“Nós, os bruxos...” ( Deleuze & Guattari)

 

(uma homenagem ao cartunista-pensador Quino)



- o estoico Paulinho:



- Chico & Noel:



terça-feira, 6 de outubro de 2020

museu da maré & marielle

 

No Museu da Maré há um espaço dedicado a Marielle Franco. Na exposição que leva seu nome, foi escolhido um objeto singular para nos fazer lembrar a vereadora: a porta do seu gabinete .Em sua atuação política, Marielle costumava colar mensagens na porta , além de sempre mantê-la aberta àqueles que vinham procurar por sua ajuda.

Pela ação de Marielle , aquela porta continha uma potencialidade de sentidos. E “potencialidade de sentidos” é o outro nome pelo qual atende a poesia enquanto prática de ressignificar as coisas e o mundo. Pois poesia não é só versos: poesia também é produção de sentidos que podem transformar uma simples porta em um agente coletivo de enunciação . Transportada então para o interior do Museu da Maré, aquela porta se tornou um símbolo-mensagem do próprio ser de Marielle: porta aberta, receptiva, como seu sorriso.

Não por acaso, na mitologia era sob uma porta aberta, espaço de travessias, que se manifestava Hermes, a divindade associada à comunicação das mensagens que requerem a prática da interpretação. Em grego, “interpretação” se escreve “hermenêutica”: “arte relativa a Hermes”. Mensagem não é a mesma coisa que informação. “A capital do Brasil é Brasília”, “dois mais dois é igual a quatro”, tais coisas não são mensagens. Mensagem é tudo aquilo cujo sentido requer a atividade de interpretação: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”, este verso de Manoel de Barros não é informação, é mensagem. “O homem é um ser político”, outra mensagem. Mensagens não são para se decorar ou reproduzir, mensagens existem para despertarem nosso pensar e nosso sentir , para assim aprendermos a ler mais do que frases ou palavras: crítica e criativamente, aprendermos a ler também o mundo. Nem sempre mensagens se vestem com palavras, às vezes as mensagens vêm inscritas nas coisas ou são as próprias coisas portando sentidos a serem interpretados. A porta de Marielle é mensagem que simboliza o sentido da travessia e da abertura ao outro, sobretudo ao outro que é marginalizado, injustiçado, explorado, perseguido.

Os Museus Casa são espaços que já foram residência, quase sempre palácios e mansões (em geral de gente oriunda da elite) . O museu Casa de Rui Barbosa, por exemplo, foi a casa de verdade de Rui Barbosa. Mas pessoas do povo como Cartola, Nelson Sargento, Lima Barreto, Maria Carolina de Jesus, e tantos outros, não tiveram casa para ser patrimônio musealizado. A casa deles é a favela, a cultura popular, a criatividade e a inventividade do povo que luta. A porta de Marielle é parte de uma casa assim: uma casa plural, aberta, heterogênea...espaço de resistência à Casa-grande fascista.

Os assassinos de Marielle obstruíram covardemente seus passos. Mas a porta que ela simboliza , enquanto abertura à justiça, à educação e à cultura, esta porta nós não podemos deixar fechar.

 

- Imagem: “A porta de Marielle”








(Dissertação de Mestrado de Marielle)


https://ateliedehumanidades.com/2019/10/26/fios-do-tempo-a-porta-de-marielle-por-elton-luiz-leite-de-souza/


sábado, 3 de outubro de 2020

manoel & miró : desaprendizagens

 

O poeta Manoel de Barros diz que aprendeu a fazer “desaprendizagens” com o pintor Miró. Foi assim:  embora Miró desenhasse de maneira  precisa e técnica, essa mesma técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de  um mundo  novo que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela. Apesar de ter reconhecimento e  sucesso , Miró  entrou em crise, parou de pintar: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar. Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró: quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita. Essa mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  . Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda, com certeza ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”. As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, o artista descobriu-se novamente criança nessa mão : cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender o  “mesmal” da mão direita, Miró  redescobriu a potência da  pintura : reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. A mão esquerda criava mais do que cores e  formas:  ela  criava para Miró   necessárias  “natências”. É assim que Manoel, aprendendo a lição de Miró,  resume seu exercício perseverante de natências : “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.” O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.

 

“O aprender vem antes do ensinar.” (Deleuze)



 

                                          

                                                  ( "O nascimento do mundo", de Miró)

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

orfeu, castro alves, neruda, manoel & elis

 

Orfeu foi o primeiro dos poetas. Ele cantava  sua poesia tocando a lira. Até então, a lira era um instrumento que apenas o deus Apolo podia tocar . Do alto do Olimpo , Apolo tocava a lira , mas sem cantar. Somente  os deuses  a tal música   podiam escutar  . Orfeu aprendeu a tocar a lira   combinando o som do instrumento com sua voz que cantava.  Antes de Orfeu,  o canto era uma arte de Dioniso apenas . O canto dionisíaco  era  expressão do “Pneuma”: sopro intenso  que o corpo  transbordante de vida libera . Quando a vida enfraquece e parece que se  ausenta , pensamento e ação em nós também perdem força,  e de certo modo  nos tornamos ausentes também . Mas quando a vida se intensifica , a vivemos sem distância :  fazendo-nos presentes à vida também . Assim é o Sopro de Dioniso : presença da Vida  em nós , Vida esta que em Orfeu se fez canto, para assim aumentar a presença da Vida em nós. Orfeu não cantava para o Olimpo Inacessível , tampouco aceitava  cantar  dentro de templos ou palácios. Orfeu cantava na rua, na praça , nos campos: em espaços abertos, horizontados . Ninguém  permanecia o mesmo após ouvir tal canto :  os bons ganhavam coragem , enquanto os maus perdiam força ; a sabedoria tomava a palavra ,   a ignorância era vencida e ficava   calada.  Até as árvores frutificavam ao ouvirem Orfeu, mesmo sob o inverno. Fontes brotavam, flores desabrochavam, apesar do deserto. Mas  Orfeu, cantor da vida,  despertou o ódio dos cultuadores da morte. Certa vez, essas forças obscurantistas armaram uma emboscada, prenderam Orfeu e covardemente o decapitaram, imaginando assim que o silenciavam.  Mal se afastaram , porém, novamente ouviram a voz do poeta , e cantando ainda mais forte  . Olharam para trás e viram que o poeta cantava apenas com a cabeça : vencendo os carrascos, sua arte ainda perseverava.  Onde houver um canto que resiste, nele a voz de Orfeu ainda vive.

 

“Sei falar a linguagem dos pássaros: é só cantar.” (Manoel de Barros)

 

“Descanse tranquilo onde cantam: os maus não cantam.” (Schiller)