domingo, 30 de abril de 2017

fiar junto:pensar em novelo

Pensamos em novelo.
Maria Gabriela Llansol

     “Con-fiar”: fiar junto. Fiar é tecer.Fiar não é traçar linhas retas no espaço, fiar é inventar linhas de fuga que dão sentido ao tempo. Ariadne fiava o fio que vencia o labirinto onde o monstro morava, fio da sobrevivência, pois esse fio toma a forma do labirinto sem se perder nele, posto que  é maior do que ele.O fio de Ariadne nasce de um novelo, não nasce de régua e compasso.
     “Linha de fuga” é uma noção criada por Deleuze e Guattari para explicarem o ato criativo. Criar uma linha de fuga não é exatamente fugir de algo, mas fazer fugir algo de uma forma ou limite que o prendia. Por exemplo, Van Gogh fez fugir a pintura de uma forma ou limite de se compreender a pintura .Antes de Van Gogh produzir sua linha de fuga, todos achavam que pintura era aquilo que até então se fazia, de tal maneira que os mantenedores de tal visão  não aceitaram ou desprezaram a linha de fuga que Van Gogh inventou. De certo modo, tais mantenedores do estabelecido não tinham olhos para ver o novo. O que Van Gogh fez não foi destruir a pintura ou simplesmente negar a pintura, o que ele fez foi recriar a pintura, potencializando-a,  fazendo-a começar de novo. O novo nunca começa de um zero, de um nada, ele começa em uma fuga, em um fazer fugir algo .Tudo é linha de fuga: a própria arte não é uma imitação ou cópia de uma dada realidade que lhe é exterior, a arte é o ato de fazer fugir uma  realidade daquela forma de realidade que o senso comum acredita ser a única realidade. A própria vida não é uma fuga da empírica matéria, a vida é a linha de fuga que faz fugir da empírica matéria um Empirismo Superior.Como afirma Manoel de Barros: "inventar aumenta o mundo".
     Diz a exata ciência que as linhas retas são a menor distância entre dois pontos imóveis. Mas o fio que que tece narrativas alcança os mais distantes pontos e os conecta, os aproxima, para assim criar elos, ampliando-nos até eles, mesmo que eles estejam em espaços que ainda não existem: espaços desejantes de invenção e utopias.
Etimologicamente, novelo é: novo elo. Traçamos fios juntos para criar novos elos.Essa é a razão de ser do novelo: não acúmulo de linha, mas manancial de novos elos, novos agenciamentos. Mesmo um objeto pode ser um novelo, um novo elo, desde que nos coloquemos como agentes produtores dos fios , fios de sentido, que nascem deles.Um objeto não é apenas uma coisa que se usa, ele pode ser um agente de novos elos.
Arthur Bispo do Rosário viu-se preso no labirinto de seus delírios. Porém,o fio da arte o fez achar uma linha de fuga : em cada lençol , em cada roupa, em cada coberta ou casaco que lhe davam no incomunicável quarto do asilo , ele soube achar nessas coisas o novelo ainda ali vivo; na coisa pronta ele soube descobrir o processo que as fez nascer.Não havia mais camisa ou lençol, mas um novo elo para ele se achar no mundo, achando-se em si mesmo. Ele viu o novelo que  ainda vivia nas coisas  como memória, imaginação, potência, invenção, virtualidade, enfim, vida...Sua bordadura poética fez viver de novo o fio que se fiou nas coisas, para assim fazer viver no finito o infinito novelo de qual todas as coisas saíram. E quem  a isso vê, produz em si mesmo uma clínica, uma saúde.Dos fios desfiados de camisas e lençóis já quase em farrapos, Arthur soube com eles fiar as bordaduras de uma existência nova. Dos fios de um uniforme que vestia o louco, ele desfez a forma, libertou o fluxo dos fios, e com estes  inventou a capa multicolorida de um rei.

                                            (Arthur Bispo do Rosário)

São os novos elos que nos possibilitam criar linhas de fuga que vencem os labirintos.Mas não se fia esse fio sem o confiar nos elos, não se fia esse fio sem o agenciamento que todo con-fiar é.
Toda ideia é um fio que se fia junto, e o novelo do qual ela nasce é o pensar. Pois é isto o pensar: ele nada tem a ver com um ponto-ego, dado que  ele é prática de fazer novos-elos, de os criar.
O   amigo  fia a ideia  da amizade ao crer no amigo; o amante  fia o amor para amar a quem ele se une em elo. É a justiça, a ideia da justiça, que dá ao juiz o poder que ele tem, não sua toga ou paramentos: a sentença  somente é justa se for  um fio que se puxa do novelo da justiça.
Os bons encontros de que fala Espinosa são fiações, bordaduras, tessituras das relações que nascem do Novelo infinitamente infinito da Natureza.




              ( detalhe de Estandarte, obra de Arthur Bispo do Rosário)




sábado, 29 de abril de 2017

para o meu tatatatatatataravô

Entre os tupinambás que aqui viviam , antes de os colonizadores  nos invadirem, quando um guerreiro morria muita dor era sentida por todos. Mas era necessário ainda um último ritual a fazer. O corpo do guerreiro era preparado como se ele fosse para uma guerra, e o colocavam deitado em uma canoa para ser lançada ao mar.
Os tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados, nem no corpo, tampouco na alma. Eram fieis à sua terra, bem como às suas divindades. De todas as práticas trazidas pelo homem branco, havia uma a qual o homem branco mais se dedicava com afinco , rogando até mesmo aos céus a ajuda no sucesso desse intento. Trata-se do afã por acumular coisas, sobretudo coisas materiais. Os tupinambás nunca entenderam esse credo materialista e interesseiro: era esse desejo rasteiro que mais os punha em guarda contra o homem branco, nele não confiando.Para a sociedade tupinambá, o valor de um homem estava em dividir o que é seu. Eles só aceitavam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, e preferiam a morte a viverem sem honra.
A morte para eles não era o fim. Não havia exatamente fim ou morte. O que chamamos de morte era a última prova, especialmente para os chefes e guerreiros, isto é, para aqueles que viveram sendo reconhecidos pelos outros como homens valentes, corajosos, generosos, amigos, sábios.Para eles, a vida tinha dois lados. Eles desejavam viver do lado de lá exatamente como viviam aqui. E era o modo como viviam aqui que atestava se eles mereciam   viver lá.
Então, quando o guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo. Colocavam junto ao corpo suas armas , bem como a flauta feita do fêmur oco do inimigo vencido, pois muitos guerreiros enfrentavam seus inimigos futuros ajudados pelos inimigos passados, transformados agora na flauta que anunciava, sob a forma de música, o erro que cometeram ao enfrentarem tal guerreiro-músico.
Ao fim então  da tarde punham a canoa ao mar e a empurravam em direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre mar e céu. O azul de ambos confirmava suas crenças: lá no horizonte se encontrava uma fronteira . Guardando essa fronteira estava o Grande Ancestral. Se o guerreiro na canoa fora um convencido, um dissimulado, um enganador, um traidor  que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que não deixaria o dissimulado fazer a travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato o fora , e não apenas aparentara o ser, o Guardião o deixava entrar para no céu ser eterna estrela.
No dia seguinte ao ritual, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se  achassem uma, choravam envergonhados por terem sido enganados por tal imitação de homem virtuoso. Mas se não achassem essa estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando  como estrela viva a protegê-los dos maus.










quinta-feira, 27 de abril de 2017

o acontecimento

Não espero que aconteça o acontecimento.
Pelo acontecimento não se espera que aconteça.
O acontecimento simplesmente acontece,
nunca longe de  onde a vida esteja.

O que acontece no acontecimento
não é fato ou coisa acontecendo.
O que acontece é o próprio acontecimento:
é deste acontecer que  nasce o tempo.





O PARDAL

O bico de um pardal fendeu a casca da noite.
Era uma casca dura, como se aço fosse.
O pardal que não canta,
o pardal que a gente nem vê,
pois cores não há em suas asas.
Foi ele que fendeu a dura casca
que nos isolava de toda luz para ver.

 Não foram  preces
que fenderam aquela prisão tenebrosa,
nem o conhecimento que vem do cérebro-computador.
Tampouco foi  a tecnologia da moda,
muito menos coisas de que o dinheiro é o senhor.

Foi o bico de um pardal que fendeu
aquele túmulo em que nos pomos  nós,
foi o bico de um pardal que venceu
aquela morte do morrer em vida, sem voz.

Ninguém sabe como ele pôde tanto,
ninguém sabe o que pode o seu poder.
De dentro de nós o pardal saiu voando,
e  saímos nós com ele, de volta ao viver.






quarta-feira, 26 de abril de 2017

a tatuagem

Não tenho tatuagens, nenhuma. Se eu fosse me fazer uma tatuagem, ela seria assim:

No peito eu faria um coração e dois pulmões. Mais abaixo faria um estômago , rins, pâncreas e todos os órgãos que ali existem . Faria também , mais abaixo, intestinos, órgãos genitais, fêmur, joelhos, coxas, canelas, pés, dedos dos pés. Também tatuaria mãos onde minhas mãos estão, com as linhas labirínticas que adornam suas palmas; ainda tatuaria braços e antebraços. Não poderiam faltar pescoço, face, boca, nariz, olhos, expressão. Acima da face, cabelos - no tamanho que estão agora, nem mais, nem menos, incluindo os cabelos brancos. Por cima de tudo tatuaria uma pele morena, mestiça, carioca, brasileira. Uma pele não mais jovem,  ainda não velha, e com todas as marcas e sinais que a vida me deixou. 
A tatuagem que eu faria é a que já está feita: tatuaria a tatuagem que sou . Para cobrir-se com sonhos, foi a Terra que em sua invisível tez nos desenhou.









terça-feira, 25 de abril de 2017

meu primeiro mestre

"A maior perfeição que podemos alcançar para nós mesmos é servir
de instrumento para que os outros possam conquistar a perfeição deles próprios".

Espinosa



Dos quatorze anos aos dezesseis fiz capoeira. Passados já mais de trinta anos desse fato, vejo hoje que aquelas aulas de capoeira foram , na verdade,minhas primeiras lições de filosofia, pois meu professor de capoeira era um verdadeiro Mestre. Seu nome: Joãozinho. Nós o chamávamos de Mestre Joãozinho. Ele era um homem simples, negro, do povo. Para sobreviver, ele trabalhava em uma feira , pois a maioria de nós não podia pagar pelas aulas de capoeira. Ele falava pouco, mas como nos dizia nesse pouco! Aprender capoeira com ele era uma verdadeira iniciação em um tipo de vida que não aceitava a covardia, a ostentação, a vaidade e a soberba. Muitas vezes ele nos dizia: “Se eu souber que algum de vocês usou o poder que lhes ensino para se vangloriar em disputas ou buscar fama em brigas , ou simplesmente para aparecer , esse que agir assim não será mais digno de continuar aprendendo como ser guerreiro”.Não foram poucos os que ele expulsou...Ele assim fez sem ofensas, grosserias ou violência, porém com firmeza.
Ele observava muito como procedíamos,  parecia formar um conhecimento de cada um de nós a partir da observação do que fazíamos, e não do que dizíamos apenas . Ele era atento escutador da "eloquência das ações", como dizia Cícero.Por exemplo, havia duas formas de lutarmos a capoeira entre nós. A primeira delas era simplesmente uma brincadeira quase . Geralmente, quando observamos grupos de capoeira se exibindo para um público mais amplo, é a essa forma de luta dançada que assistimos. A segunda forma de luta, porém, era algo mais sério. À primeira vista, parecia uma luta de verdade para vencer o outro, quase uma briga. Muitos interpretavam dessa forma, chegando a golpear com violência calculada seu parceiro de disputa. Várias vezes eu observava o rosto do Mestre Joãozinho durante essas lutas mais sérias, nas quais os mais desonestos se valiam de artifícios pouco nobres.Via o Mestre  reprovar silenciosamente os mais violentos que, cheios de si, imaginavam conquistar uma boa imagem junto ao Mestre. Que iludidos...
Confesso que eu não apreciava muito esses enfrentamentos onde tudo se podia, porém  não fugia deles. Esses enfrentamentos belicosos nos provavam de muitas formas ( isso tudo  aprendi depois, embora fosse um conhecimento que nunca era dado diretamente pelo Mestre Joãozinho). Primeiramente, era preciso procurar como parceiro de luta alguém que fosse um “igual”, ou seja, alguém que tivesse um poder assemelhado ao nosso. Isso exigia de nós uma constante e renovada observação das capacidades dos outros, de seus avanços e virtudes, mas também de seus pontos fracos. Era a partir das virtudes e pontos fracos dos outros que nós devíamos fazer uma idéia das nossas próprias virtudes e fraquezas. Superando um igual, superaríamos a nós mesmos. Porém, quem escolhia lutar com um mais fraco , nada mais do que fraqueza estaria demonstrando. E quem, ao contrário, buscasse medir-se com um mais forte, estaria dando provas de que era um pretensioso. Eram autênticas aulas de ética e de psicologia observar essas disputas , nas quais a maioria perdia, frente ao Mestre,  por   subestimar um superior ou  explorar um inferior, fazendo-o de escada.Isso tudo fazia parte do aprendizado de como se conduzir na observação de nós mesmos diante daqueles que são mais capazes do que nós, por já estarem em um nível superior, ou daqueles que nos são inferiores ,por ainda não terem alcançado o mesmo patamar onde estávamos. Mas para distinguir estes daqueles era preciso, antes, sabermos em que patamar estávamos, e isso não se fazia apenas com o conhecimento de nossas virtudes. Fazia-se necessário saber também nossas fraquezas. E isso nós aprendíamos muitas vezes ao preço de derrotas.
 Um dos últimos aprendizados que tive, e dos mais importantes, tinha como suporte o rosto de desaprovação do Mestre Joãozinho diante daqueles que, nas lutas mais sérias, golpeavam o adversário e , aparentemente, venciam a luta. Certo dia, então, tomei coragem e perguntei diretamente ao Mestre Joãozinho o motivo daquela desaprovação. Parecendo esperar que alguém lhe perguntasse isso , embora ele cuidasse para que seu rosto não fosse enfático nas expressões de reprovação ( na verdade, ele sempre esperava que nós soubéssemos perceber as sutilezas...), o Mestre me disse mais ou menos as seguintes palavras: “ A essência da capoeira é demonstrar poder. Porém o verdadeiro poder não está em vencer o outro com um golpe violento, e sim mostrar ao outro que poderíamos vencê-lo se quiséssemos, mas que disso não precisamos para afirmar nosso poder diante da sabedoria da capoeira.Não é destruindo o outro que se fica mais forte, fica-se mais forte sendo para si e  para o outro um exemplo de como não se perder. Derrotar o outro é uma questão de força, ser um mestre na capoeira é uma questão de personalidade, como força da mente. A capoeira não é para ensinar a vencer o outro, ela é para ensinar a vencer a nós mesmos, vencer o que em nós é fraco."
Essas foram umas das últimas palavras que ouvi do Mestre Joãozinho. Para tristeza de todos nós, ele foi morto com um tiro nas costas ( só mesmo dessa forma se poderia derrubá-lo...) , quando saía à noite do trabalho . Até hoje não se sabe quem foi o covarde que o golpeou assim.

 Capoeira, Rugendas ( 1825)







domingo, 23 de abril de 2017

orfeu do bandolim





O mito é um passado que é um futuro 
disposto a se realizar no presente.
Octavio Paz

Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam.
Schiller

Em grego, o nome “Orfeu” significa:”aquele que toca a lira”, “aquele que possui a arte de tocar a lira”. A lira é um instrumento singularíssimo, que requer muita sutileza e nuances para a sua execução. Na mitologia, ela é associada primeiramente a Apolo, o deus da forma, do limite (em muitas representações de Apolo ele aparece portando uma lira). Mas Orfeu vem de outra linhagem: ele é discípulo de Dioniso, o deus do ilimitado, das metamorfoses. Orfeu dará à lira uma dimensão que vai muito além de Apolo.Orfeu fará da lira a expressão tangível de suas  próprias cordas vocais, cordas estas que o intangível toca por intermédio das mãos da alma, para assim fazer viver, no som que se expande, o Afeto que a todos toca.
Em Apolo, a lira era instrumento para executar a música celeste, apenas audível aos deuses olímpicos. Orfeu era um homem, não um deus.Porém, ele alcançava uma dimensão divina com a música que extraía de sua lira, música esta que divinizava o terrestre: “celestava as coisas do chão”, como diz Manoel de Barros. 
A música é , dentre todas artes, a primeira a nascer.Na verdade, não foi o homem quem criou a música, esta sempre existiu. Segundo Pitágoras, a música surgiu junto com o universo.Para ouvi-la, era preciso ouvir também o universo, ou ao menos parte dele. O primeiro homem que assim se deixou afetar, ouvindo o universo,tornou-se músico.No mito, a primeira música que um homem ouviu nasceu quando este homem pôs as tripas de um carneiro para secar penduradas nos galhos de uma árvore.Quando o vento passava entre as tripas, podia-se ouvir um som que parecia dizer algo. Foi a capacidade de ouvir a natureza enquanto realidade expressiva que fez surgir , no homem, o músico, o artista. Finas cordas extraídas das tripas de um carneiro amarradas nos chifres de um bode, esta foi a primeira lira inventada, este foi o primeiro instrumento que nasceu para reproduzir, reinventando-a, a música que a natureza já fazia, música esta que a própria natureza era e é. Assim surgiu a música Apolínea, música que nasce da vibração das cordas.

A música dionísica tem outro nascimento.Certa vez, Pã enamorou-se de uma Ninfa e a quis como par. Mas esta fugiu e , querendo  esconder-se,metamorfoseou-se em caniços de bambu .Exausto de procurá-la, já querendo desistir, mas desejando expressar o afeto que estava encerrado dentro dele, Pã tem a ideia de pegar um feixe de  caniços que vê perto de si. Sem que saiba, esses  caniços eram a metamorfose de sua amada, o objeto de seu desejo.Ele os amarra e começa a soprá-los, ora sopra um, ora outro, ora todos. Assim nasceu a flauta.
Pã fizera o que Freud , Jung e Sartre chamarão de "sublimação". Sublimar não é reprimir um afeto, mas transfigurá-lo e expressá-lo sob a forma de um bem cultural no qual o afeto vai sobreviver desprovido de sua carga meramente individual e passional. "Pã" , que era um dos discípulos de Dioniso, significa: "todo". Pela música, o afeto sai da subjetividade e ganha o "todo", o mundo, o universo, através de um soprar que sai de dentro, ao contrário da música de cordas, que nasce de um tocar de fora, com os dedos ou outra coisa, as cordas. É por isso que a música apolínea pode ser matematizada, pois ela se mantém a certa distância do mundo interior, ao passo que a música dionisíaca é o próprio Pneuma, o sopro vital, que se tornou cósmico: através da música , o Pneuma se torna igual ao vento cósmico que produz  música, posto que é música. Daí o caráter paradoxal de  Orfeu: ele toca a lira, instrumento de Apolo, porém a toca com a alma, já que ele também canta. Com Orfeu, nasce a canção. Cantando, o Pneuma fazia vibrar também cordas, porém cordas "interiores", ao mesmo tempo físicas e espirituais : as cordas vocais. Orfeu não cantava as guerras, tampouco louvava inalcançáveis céus. Ele cantava a vida em sua simplicidade, e a transfigurava com seu canto, tal como, entre nós, Cartola, Paulinho  ou Noel. Orfeu celestava o simples, tornando-o sublime .
A música de Orfeu produzia encantamento. “En-cantar”: encher-se de canto.Cantar é mais do que falar ou dizer palavra, cantar é transformar em palavra o sopro vital.Quem canta faz cantar.Orfeu enchia de canto até mesmo os brutos, de tal maneira que o canto silenciava a brutalidade. Ninguém permanecia o mesmo ao ouvi-lo.
Muitos comparam a alma à lira: assim como esta, a alma é composta de cordas diferentes, heterogêneas. A razão, o desejo,a  imaginação, a memória...são as cordas da nossa lira.Saber pensar, saber falar, saber sentir, saber ouvir...são músicas que tocamos com nossa alma, com todas as suas heterogêneas partes.Pensar e sentir são vibrações. As cordas vibram porque elas são tensionadas. “In-tensidade”: qualidade do que existe tensionado (como a corda do arco que impulsiona a flecha, como as cordas do bandolim das quais nasce um chorinho: o bandolim é o tatataraneto da lira, e mesmo no "chorar" do chorinho há um cantar... ). Intensa era a música de Orfeu,pois viva era sua voz, seu canto;incontáveis eram seus acordes. E mesmo na divergência há acordes: acordes discordantes. A música que tocamos,a música que somos nasce de sabermos compor com essas cordas heterogêneas, plurais. A alma do artista nunca é monocórdica, uma vez que sua música nasce do agenciamento das cordas diferentes. Para essa música não há partitura, apenas o improvisar que já é o rascunho  como obra , como “forma em rascunho”.
A esposa de Orfeu se chamava Eurídice. Na Grécia antiga, na tradição órfica dos Mistérios,  “Eurídice” também era um dos nomes da alma (assim como Psiquê e Pneuma também o são: Pneuma, "sopro", foi traduzido para o latim como "Espiritus"...). Assim, era agenciado com sua alma,com seu "sopro",  fazendo-o intenso, que Orfeu produzia  o mistério poético do encantamento. Ele o fazia não apenas com uma parte da alma, mas com ela inteira. E a alma quando se torna inteira nunca cabe totalmente dentro de si própria: ela salta para fora, encontra para si um corpo em qualquer coisa, mesmo nos objetos aparentemente inertes. E tudo a alma pode então fazer ter alma.
Um afeto a guia nessa tarefa : a confiança. "Con-fiar": fiar junto. Fiar é produzir um fio , uma tecitura, uma narrativa.Fiar é produzir um sentido, que é o caminho sobre o qual se anda, avança, sem que o objetivo seja chegar a um ponto que se torne a morte do fio. Pois o sentido  de tecer e fiar é estender o fio ao máximo que ele pode chegar. Mas ninguém sabe qual é esse máximo, dado que o fio deve nascer de um novelo que concentre em si o mundo inteiro a se desdobrar, ampliar: "nov-elo", "novo elo". A razão de ser do fio é criar novos elos, e é sempre de um novo elo que ele também nasce.Somente os que produzem sentido narram, posto que confiam no sentido. Confiam não exatamente em si apenas, confiam em si enquanto instrumento de  produzir um sentido que os ligue ao outro, ao cosmos, ao infinito,permanecendo no entanto  ligado ao novelo de onde o fio nasce e nunca para de nascer.
Orfeu e Eurídice tiveram um filho, cujo nome é Museu,  poeta como o pai. Orfeu,porém, teve um fim trágico. Após morrer, Eurídice foi parar no Hades. Este era o lugar do Esquecimento. Ao morrerem , as almas esqueciam que viveram, tornando-se assim sombras.Elas esqueciam a vida. Simbolicamente , a morte de Eurídice significava que o poeta esqueceu-se da vida, perdeu-a. E o Mistério de onde a poesia nascia,o Mistério que a alma era,  tornou-se escuridão. A Escuridão é o que fica quando se tira o Mistério da vida. "Mistério" e "místico" provêm de uma mesma palavra: "mys", que significa "fechar a boca". Porém, esse "fechar a boca" não significa, como erroneamente se interpreta, ficar em silêncio. "Fechar a boca" , nesse caso , refere-se à boca que apenas diz palavra , e nada mais. Heidegger dizia que a diferença mais nítida entre a vida autêntica e a vida inautêntica reside no fato de que esta última é "tagarela". A tagarelice é um desperdício da palavra. "Mys" significa fechar essa boca que tagarela e nada diz. Os tagarelas tudo querem  dizer, embora nada digam. O mistério da fala poética é exatamente esse: um "afloramento de falas" que expressa o que a fala prosaica não consegue dizer.Misterioso não é o que se oculta ou se põe na sombra, ou diz coisas incompreensíveis; misterioso é o que se esforça para  calar a tagarelice da doxa, a começar a que pode estar nele,  para ousar dizer o que nunca foi dito.Não porque estivesse oculto, mas sim em razão de ainda não ter sido inventado.
Por algum motivo, a alma de Orfeu esqueceu-se do mistério e se viu na escuridão. Perdeu o sentido e perdeu-se do sentido.Ela se tornou o passado. Pois é isto a morte para a alma: ficar presa no passado.Não o passado que , do presente, a gente lembra sob a forma de recordação.Se a alma fica presa do passado, o presente já não existe para ela, tampouco o futuro.No passado não há mistério, mas também não há vida: há apenas um "viveu" que ainda se pensa vida.Para Orfeu libertar sua alma, para libertar a si mesmo, era preciso resgatar sua alma do passado. E assim ele fez, indo ao Hades procurar por Eurídice. Quando ele chega ao Hades, vê apenas sombras. Como achar novamente, no meio de sombras , a própria alma? Orfeu começa a cantar suas poesias e canções. Somente estas podem trazê-lo de volta a si mesmo.Ninguém pode resgatá-lo, a não ser ele mesmo.Ele não acha primeiro sua alma para depois reencontrar sua poesia. Ele cria sua poesia para assim achar-se como alma.
Todo retorno é difícil.Ainda mais quando se vai ao ponto onde se perdeu.O Deus Hades, senhor daquele mundo escuro, disse ao poeta: "vá e leve sua Eurídice, mas não se volte para olhá-la antes de ultrapassar totalmente a fronteira desse meu mundo".Mas onde termina essa fronteira? Onde cessa o passado e se inicia uma vida nova? Onde paro de me esquecer e me lembro? Talvez essas dúvidas tenham abalado  a confiança do poeta, levando-o a pôr-se em dúvida acerca de si mesmo. Pensando que sua alma já estivesse livre do passado que a fizera prisioneira, Orfeu volta-se para olhá-la, e este olhar a põe de novo lá, fora do alcance .E foi assim que o poeta perdeu-se de si mesmo, ficando totalmente mudo, ausente de si .  
As Fúrias, que eram as deusas da vingança, achavam agora que o poeta lhes cederia  , e colocaria sua arte a serviço delas.Mas o poeta recusou casar-se com elas e fazer da poesia um canto da morte . Não exatamente a morte física, mas a morte em seu sentido mais amplo, como morte ou banalização do sopro vital. Essa banalização/despotencialização  do sopro vital  pode ser ouvida , inclusive, em certas formas de música que , hoje, entopem televisões e rádios, de tal modo que parece que o Hades estendeu seus domínios não apenas aos mortos, mas também aos vivos. Enciumadas pelo amor que o poeta devotava à alma, as Fúrias, que eram divindades que desconheciam o que é amar( elas sabiam apenas o que é o odiar), elas então  fizeram Orfeu em pedaços. Quando Museu vê seu pai em pedaços, em fragmentos, nasce nele o desejo de reunir esses pedaços para fazer deles novamente partes de um todo, pois o todo, a essência de Orfeu, permanecia na alma de Museu, como parte também dele.Recriando Orfeu , Museu recriaria a si mesmo; e novamente, através dessas partes, Orfeu  renasceria e poderia ser conhecido por todos. Foi assim que nasceu a primeira exposição do mundo, tendo um poeta como tema, para dessa forma ensinar aos homens o que é a poesia, que é sempre o resgate lúdico da vida que está em nós mesmos, para assim potenciá-la. Museu   percebeu que o poeta  ainda permanecia vivo: Orfeu estava vivo  em cada coisa que ele produziu  e criou.  Ele estava vivo como vibração, como sentido.















sábado, 22 de abril de 2017

:o labirinto e a linha de fuga...

Não haverá nunca uma porta. Estás dentro
E o alcácer abarca o universo        
E não tem nem anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.

Borges, O labirinto


Muitos comparam a vida a um labirinto.Os caminhos dos labirintos são mais misteriosos do que aqueles desenhados pelas linhas da palma da mão.O mais famoso labirinto tinha em seu centro um monstro. Teseu, o protegido de  Apolo, queria matar esse monstro, o Minotauro.
Teseu não é apenas um nome: ele é um símbolo, ele representa a racionalidade simbolizada pelo homem como padrão. Teseu anda sempre retilineamente, não dá um passo sem planejar antes onde pisa e como pisará. Teseu teme o imprevisto, e evita tudo o que não cabe em uma forma. Teseu quer a tudo dominar com régua e compasso. Seu caminho é feito de estradas retas , às vezes curvas.Mas raramente ele salta ou sai para “andar atoamente”, como diria Manoel de Barros.
Um dia, uma vontade nasceu em Teseu: matar o Minotauro. Este era um ser híbrido: nem homem , nem touro, mas a soma dos dois, cujo todo fazia nascer um ser diferente do que a mera soma das partes.E era isso que o fazia um monstro: ele não era uma coisa ou outra, porém as duas ao mesmo tempo, e esta coisa que ele era não se podia classificar segundo um conceito lógico.Um ser desse somente podia morar em um labirinto. Onde todos se perdem: era aí que o Minotauro se sentia em casa...
O labirinto é um lugar em que se entra, mas do qual não se sai, embora ele não seja infinito. No labirinto vira-se à esquerda ou à direita indistintamente, o que fere a lógica da direção: dentro do labirinto as bússolas enlouquecem, e não apenas elas...


                                                             ( filme: O iluminado)


 O labirinto é o fragmentar de uma reta: isso choca o que em nós cultiva a retidão. Ele é o fragmentar infinito de uma mesma reta que não leva mais a nenhum lugar. Isso faz nascer um estranho fato: o centro do labirinto não é como o centro de um círculo ou como o centro de uma caverna, uma vez que ele não é um centro que abriga ou protege. Ao contrário, nunca se sabe quando se chega ao centro de um labirinto, pois isso equivaleria a conhecer a própria ignorância. Contudo, conhecer a própria ignorância já é vencê-la.E ninguém pode conhecer o labirinto. O labirinto não nos permite conhecer para aonde se vai ou de onde se veio. Há apenas o desejo de se sair dele, sem se saber os meios. Pois o que poderia ser um meio para dele se sair, pode ser um meio para nele se entrar ainda mais e se perder, ignorando onde  está seu meio ou onde está, ao contrário, sua saída.
O Minotauro mora no centro do labirinto.Quem descobre o centro do labirinto, encontra o Minotauro, e deste encontro não há sobrevida: é a loucura, o absurdo da vida.Ligados umbilicalmente, um homem e uma besta, um homem e uma fera. E os dois formam um só. Isto devora e nos devora: devora o que em nós é homem, desafia o que em nós é razão e lógica.  É a isso que Teseu não tolera, este um feito de contrários, dado que  isso impediria, segundo ele, a distinção do Bem e do Mal, do Racional e do Animal, enfim, da Lei e da Força.Mas o que Teseu desconhece é que tanto ele quanto o Minotauro são um aspecto da vida: o animal fundido com o homem, com o predomínio daquele; o racional junto ao animal, com aquele reprimindo este. Teseu pensa que pode vencer o Minotauro, e de fato o poderia se o encontrasse em céu aberto, sob a luz do sol da Razão. Todavia, Teseu ignora que não pode vencer o labirinto.O impede de vencer o labirinto exatamente a arma da qual Teseu  extrai seu poder: o conhecimento retilíneo, racional.Para entrar no labirinto , Teseu teria que se despir de sua lógica. Entretanto, se isto ele fizesse, ficaria Teseu sem seu escudo e sem sua arma.


                                                         ( Escher, Labirinto)

Então, o salva um terceiro aspecto da vida: Ariadne. Em grego, Ariadne provém de um termo que significa “aranha”. A teia da aranha é uma espécie de labirinto onde a aranha aprisiona suas presas. Assim, Ariadne é uma produtora de labirintos, e é por isso que ela o conhece bem, pois conhecer uma coisa é ser capaz de produzir a idéia que nos permite conhecê-la. Ariadne não está presa dentro de um labirinto, tal como o está um prisioneiro dentro de uma cela, sobretudo se este prisioneiro ignora a prisão e imagina que a cela o torna forte pelo fato de ninguém conseguir sair dela, tal como acontece com o poder do Minotauro, que é o mero poder da destruição; tampouco Ariadne vive o labirinto como se fosse um meio externo que a limitasse . Artista, ela conhece como se produz um labirinto, e sabe que para vencer um labirinto é preciso um fio, uma linha. Não uma linha que se traça com esquadro ou régua, e que vive presa entre dois pontos: o começo e o fim. Diferentemente, a  linha que pode vencer o labirinto  se desprende de um novelo, e deve permanecer ligada a este, tal como permanece ligado o produto ao seu produtor, o raio à fonte de luz, os atos ao seu autor, o rio à sua nascente. O novelo é uma virtualidade da qual a linha nunca se separa, o que faz dela uma linha de fuga, como diriam Deleuze e Guattari.O fio nasce do novelo, e este nunca tem fim.O novelo expressa outro aspecto da vida: fonte de caminhos que se inventam, como minadouros de elos que nos fazem não estarmos perdidos.Fio da memória, fio do desejo, fio da narrativa na qual se traça um sentido.Novelo significa: "novo elo". Um novelo é feito de elos, virtuais agenciamentos, e não de linhas retas que começam e terminam em pontos, em egos
 Entre o racional de Teseu e o irracional do Minotauro está Ariadne como expressão da Arte. É com o fio de Ariadne que Teseu, desperto, entra no labirinto e mata o irracional enquanto este dorme. O fio de Ariadne, fio do Amor, permite a Teseu entrar e sair do labirinto, sem morrer ou enlouquecer. Porém, Teseu apenas seduzira Ariadne, pois calculadamente a abandona quando consegue lograr seus intentos neuróticos. Todavia, por muito tempo não chorou Ariadne , logo a desposa Dioniso, o deus cujo nome seu poder revela: Di-oniso, “aquele que nasceu duas vezes”,onde o segundo nascimento, que é em verdade um renascimento, uma regeneratio ao modo de Espinosa, explica e dá sentido ao primeiro nascimento.Dioniso é a  Vida que nasce, renovada, de si mesma.





quinta-feira, 20 de abril de 2017

o alfabeto de espinosa de cartola



Uma letra é mais livre sozinha

ou na companhia de outra, em uma sílaba?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que diz uma mentira?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que diz uma verdade?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém grita?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém cala?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém xinga?

Uma letra é mais livre sozinha

ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que um poeta canta?










domingo, 16 de abril de 2017

o alfabeto de espinosa



                                                                                                                                                                 Tenha o que dizer,
e cada palavra irá ao lugar certo.
Lewis Carroll
.

  Uma letra isolada é um ser que pouco ou nada diz: se a repetirmos, ela apenas  reproduz a si mesma, sozinha, como um átomo, um ego. Mas quando uma letra encontra outra, havendo composição,desse encontro nasce um novo ser: a sílaba. A sílaba é a primeira criação de algo  comum : ela é o inauguramento do comum.A sílaba diz mais do que pode dizer cada letra isolada que lhe está integrada. 
Mesmo as sílabas também podem se juntar : dessa composição nasce um ser que não se reduz às sílabas ou às letras das quais a sílaba é feita. Esse novo ser é a palavra. Dentro da palavra as sílabas crescem, ao mesmo tempo em que crescem, dentro das sílabas,   as letras. As palavras aumentam as letras e as sílabas : não em tamanho, como o faz uma lente, mas em potência de existir, como parte de um comum de maior amplitude. Essa potência não pode ser medida com régua, pois seu tamanho equivale ao sentido que a palavra se torna apta a produzir.Dentro da palavra a letra existe mais do que sozinha, isto porque ela passa a existir agenciada, em composição. Mais do que a mera lógica ou a gramática, é o afeto que já se faz presente aí, unindo uma letra à outra :"minhas palavras se unem mais por afeto do que por sintaxe"(Manoel de Barros). É o afeto, e não a posse, o motor autêntico de todo  comum. O autêntico comum   não é o pensar igual ou o fazer igual, mas aumento de amplitude conquistada em agenciamento.Amplitude conquistada é aumento do poder de pensar e de agir , como potencialização do existir.
Na sílaba, cada letra singular não perde sua diferença. Ao contrário, esta é aumentada no encontro com outras diferenças que com ela se compõem. As palavras também podem se juntar, se compor. Essa composição é a produção de um novo ser que, por sua vez, as produz também, uma vez que as potencializa. Esse novo ser é a  frase. Nesta estão as letras ainda mais potencializadas, assim como as sílabas e as palavras.Das frases nascem ainda os textos, e destes os livros, enfim. O livro é o comum de maior amplitude que integra, sem negá-las, as amplitudes menores enquanto  graus seus ou expressões imanentes
Os livros nascem não por causa da letra,das sílabas , das frases ou dos textos. Os livros nascem da necessidade do espírito em se expressar. É pelo pensar que o espírito se expressa: o pensar  é sua maneira de agir
Visto da perspectiva do finito, parece que é a letra que vem primeiro, parece que o ser isolado tem primazia. No entanto,louca seria a letra que julgasse ser livre existindo à parte de toda sílaba, palavra, frase, livro. Pois é na imanência do livro, como parte de seu sentido, que uma letra de fato pode ser livre, expressando a si mesma naquilo que expressa o livro. 
Dessa maneira,vendo as coisas da perspectiva do eterno, da liberdade , sub specie aeternitatis , é o pensar que vem primeiro, pois ele é a produção de sentido que integra letras, sílabas, palavras, frases, textos, livros. É o infinito que se expressa em cada finito,  integrando-os em uma realidade superior na qual eles aumentam de potência, tal como a letra aumenta de potência na sílaba, a sílaba na palavra,a palavra na frase, a frase no texto, o texto no livro, e o livro no pensar, enquanto potência viva de produção de Sentido.
 Em Espinosa, a Natureza, ou Deus, é o Pensar Vivo,infinito, do qual cada pensar finito é uma letra. O infinito é o Incomum .
Não é a letra que faz nascer o livro, nem o livro faz nascer o pensar. É o pensar que já está presente na imanência da letra, como desejo ímpar, afirmativo. Assim, o finito passa a existir mais potente, integrado no Sentido que a tudo produz e em tudo se expressa, diferencialmente.

sábado, 15 de abril de 2017

páscoa no Haiti



O casebre ruiu, tornou-se tumba. E  quando todos o julgavam morto, de dentro do túmulo ressuscitou o menino-Cristo: na sua verdade, como um garoto negrinho, pobre, mas cheio de vida resistente. Não o venceram a miséria , a injustiça e a morte. Libertando-se dos mármores, marfins e ouros onde fora esculpido, sai o Cristo dos escombros de braços abertos, como um vivo crucifixo. E perdoando a todos e a tudo, dispensa os choros com um sorriso.








sexta-feira, 14 de abril de 2017

a ideia de democracia em espinosa

Mesmo quando estive muito doente,
jamais fui doentio.
Nietzsche

Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo,
Manoel de Barros

Do ponto de vista do direito natural não há delito, pois não existe o justo ou o injusto nesse âmbito. No direito natural  cada um   segue seu conatus, segue portanto sua natureza, e faz tudo para conservá-la."Natureza" não é apenas o rio, a pedra, o bicho... Natureza é tudo o que existe e se esforça para perdurar existindo. Natureza é existência.Os seres que existem desejam o mais que podem continuar existindo, e esse desejo constitui um direito, o primeiro de todos: ele não está codificado ou escrito, ele não nasce de um legislador. Ele brota junto com o próprio nascer de cada coisa: é a vida mesma, a vida de cada coisa se esforçando para continuar viva. Nesse âmbito da existência, a vida não quer o Bem, o Mal, a Verdade...Ela quer apenas uma coisa: ela quer tão somente a si mesma, e a isto quererá com o máximo de força que tiver, pois a vida nada é senão esse máximo de força para ser vida. Esse é seu direito, sua força, sua saúde.
O direito natural não é o direito social ou civil .O direito natural  antecede a formação da sociedade. Contudo, ele não é “anti” ou   a-social, dado que  tais prefixos nada são sem o social que lhes confere um sentido. Mesmo a ideia de “margem”, quando se diz que alguém ou algo está à margem do social, pressupõe já um social  constituído.O direito natural não é anti ou a-social: ele é pré-social
Esse "pré", no entanto,  não indica anterioridade histórica no tempo. É um pré  no sentido  lógico e ontológico. Nenhuma sociedade pode eliminá-lo sem eliminar a si própria, pois o ontológico precede o sociológico.  Pode-se dizer que o direto natural é uma abertura que toda sociedade mantém para a natureza: as sociedades diferem no espaço e no tempo, mas sempre o mesmo é o direito natural. É essa abertura que  livra as sociedade de se enrijecerem  em  formalismos de toda ordem, dos quais o mais perigoso é o formalismo jurídico ( que tanto pode favorecer às espertezas antidemocráticas...). Toda sociedade é histórica, mas não a natureza à qual ela deve se abrir, e que a antecede como o eterno antecede o temporal. Toda autêntica "desobediência civil" deve ser, antes de tudo,  uma obediência ou afeto pelo ontológico. 
Contudo, é uma abstração imaginar que possa existir um direito natural a par de um direito social constituído, assim como é uma abstração imaginar que possa existir homem sem uma sociedade, tal como imaginaram os filósofos políticos clássicos. No direito natural não há o justo ou o injusto, isso é certo. Contudo, não há homem que exista em uma sociedade sem o justo e o injusto. Mas de onde vem o justo e o injusto? Eles somente podem vir das regras instituídas pelo homem em sua liberdade de co-instituir sua liberdade com outros homens.O Justo não é uma ideia pairando num Céu Inteligível, tampouco o Injusto lança raízes em uma suposta essência  Demoníaca do homem. O justo e o injusto são valores criados, inventados. São as regras que devem expressar tais valores.Mas por que tais valores foram criados? Os valores foram criados para serem os instrumentos de potencialização do direito natural do homem. Não há uma separação entre o natural e o social, pois o próprio natural é uma comunidade ontológica , uma democracia absoluta. 
Nesse sentido, as filosofias da história e do direito civil abrangem apenas as sociedades constituídas e os modos pelos quais elas se relacionam com isto que as ultrapassa em potência, a natureza,e que está aquém de toda história. Logo, está aquém de noções como evolução e involução, progresso ou decadência. As sociedades progridem ou decaem , tendo em vista os valores que elas determinam para si mesmas. Por isso, é impossível a uma sociedade conservar-se  em uma duração temporal sem fim. Quanto mais ela  se esforça para isso, mais toma a feição de um império cujo mandatário se revestirá de atributos divinos sobrenaturais. 
Decerto que uma sociedade não pode ter  uma duração sem fim, como não o pode ter qualquer indivíduo que existe. É por isso que toda sociedade é histórica, inclusive os valores que a sustêm. Porém, de todas as sociedades históricas, a que mais tem potência para durar é a sociedade democrática: mesmo que ela não exista de fato, sempre existe a reivindicação dela. Onde ela não existe , ela é, por isso mesmo , reivindicada , desde o momento onde os homens cessem de servir ao déspota ou  ao Estado, e busquem exercer a conservação de suas próprias potências, a começar pela liberdade de pensar, pois estas potências só podem aumentar no auxílio mútuo, e não no servir exclusivamente a um só, mesmo que seja o próprio ego. E quando a democracia já existe, há sempre a tarefa de potencializá-la. Nesse sentido, embora histórica, a sociedade democrática é a que mais é absoluta, vez que ela é a expressão social do próprio direito da natureza. Em Espinosa, "conservar a própria existência" não significa algo estático ou conservador ( no sentido moral ou político). Para o filósofo, somente o que é criado pode ser conservado. Assim, conservar a existência democrática é continuar a produzi-la, mantendo-a livre, viva, potente. 
Ser absoluta não significa ser exatamente eterna. Ab-soluto: o que não pode ser dissolvido, soluto. Mesmo que sejam dissolvidas as regras e as constituições, não pode ser dissolvido o desejo de democracia do homem, desde que o homem seja de fato um homem, e não um servo ou escravo . O homem do poder e da tristeza  pode querer dissolver a civilização, seja com  bombas ou pela corrupção. Contudo, esse poder (potesta) não é ab-soluto, pois nenhum poder (potesta) é absoluto. Saber do limite desse poder, e resistir a ele, nada tem a ver com esperança, otimismo ou ingenuidade. Tem a ver com o pensar, com a filosofia, com a saúde, enfim, com a potência ( potentia). Ou a filosofia é isso, essa resistência criativa e democrática, ou então não é nada. 
O Estado nasce quando delegamos nosso poder de agir, não o de pensar. O Estado surge da delegação do nosso poder de agir. A potência de pensar  é sempre um fato natural, privado: o pensar é sempre potência indelegável ( ninguém pode pensar por ninguém, embora  alguém possa  ser o agente do pensar para um outro, desde que haja um bom encontro, um agenciamento). O pensar  é privado não porque dependa da atividade econômica ou porque nasça no interior de um oikos, de uma casa , de uma família. Ele é privado porque ele nasce na imanência  do espírito , enquanto ideia viva do corpo. 





quarta-feira, 12 de abril de 2017

horizontamentos...

Na Grécia antiga, "Daimon" era a divindade que não tinha casa no "Céu", como possuíam os deuses olímpicos. Tampouco morava o Daimon no chão, entre os homens. O Daimon habitava o espaço entre o Céu e a terra, um espaço de travessias. Mas não era uma travessia como aquela que fazemos quando cruzamos uma ponte, uma rua ou mesmo uma fronteira que separa dois países. O espaço de travessia no qual habita o Daimon é aquele que liga o tempo à eternidade, o que nasce e morre ao que se imortaliza. Contudo, entre o tempo e a eternidade não existe uma fronteira determinada, nem  se tratava de morrer  para alcançar o Céu. Era nesta vida que se alcançava ou vislumbrava aquela esfera divina, desde que nos guiasse um Daimon. O Daimon não habita o Céu ou a terra, ele vive nessa zona que somente se pode atravessar em metamorfose. "Metamorfose" não é a mesma coisa que "transformação". Em ambos os termos existe a palavra grega "morfé", que significa "forma".Trans-formar significa: "passar de uma forma à outra" ( esse é o princípio, por exemplo, da reencarnação pitagórica).Meta-morfé, por sua vez, tem o sentido de "ir além da forma, do limite". Sozinho, o homem não consegue ir além de sua forma, de sua medida. Daí a necessidade de ele encontrar um Daimon, se o seu desejo for o de ir além de si mesmo. Existiam vários Daimons. Nem todos sabiam o caminho....Alguns eram apenas promessa.Outros, fingiam levar ao Céu , quando na verdade faziam subir muito alto com a intenção de aumentarem o tamanho da queda, como aquela que vitimou Ícaro.De todos os Daimons, o mais buscado, porém o mais difícil de achar, era exatamente Eros. Em latim, o Amor. Em grego, "Eros" significa também "asas", mas asas de borboleta. Em latim, "Amor" significa : "não-morte", pois o "a" tem valor de negação, tal como em "afasia", "sem fala". Para os gregos, então, Eros era o agente de uma metamorfose propiciadora de uma experiência de não-morte.Fora dele, sem sua mão a conduzir, tudo é morte.
Em grego, a palavra "felicidade" se escreve "eudaimonia" : estar na companhia de um bom Daimon. Para os gregos, a felicidade não advém do ter ou do possuir, mas do estar com, agenciado, em um encontro com um ser que nada oferece, a não ser desterritorializações, linhas de fuga, horizontamentos.



terça-feira, 11 de abril de 2017

manoel de barros:uma passagem de Vida...





(trecho do livro)

Almas que mudam porque lhes nasce,no tempo,
um corpo novo: eis a metamorfose.
Corpos que mudam porque lhes nasce,no tempo,
uma alma nova: eis a metamorfose.

Ovídio


Encontramos esboçado em Gilles Deleuze um dos problemas que tencionamos desenvolver, pois nos parece que ele toca de perto aquilo que em Manoel de Barros constitui a experiência do deslimite. Afirma Deleuze que

Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a
uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe
ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer
matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.

A Vida é renascer constantemente, a todo tempo e instante. Por conseguinte, a Vida é metamorfose, arte. A Vida nunca nasce, quem nasce são os indivíduos. A Vida sempre renasce nos indivíduos que nascem. A Vida, portanto, é puro renascer: por nunca nascer, a Vida também jamais morre (quem morre são os indivíduos). A Vida não é uma, mas muitas: são todas as que tivermos a potência de inventar e criar, conjugando nosso viver com a Vida que em si mesma é criação, Arte.

A Vida é um processo que atravessa nosso vivido e rompe os limites utilitários deste; do mesmo modo que o Sentido , quando trabalhado pelo poeta, emerge na linguagem extravasando as significações dominantes que prescrevem à palavra um limite. O deslimite é o processo que faz do inacabamento o estado sempre renovado que não deixa com que as coisas acabem, sendo então reinventadas pelo processo criativo ― tanto na poesia como na vida.








(contracapa)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

formas em rascunho , harmonia selvagem



















Quero escrever movimento puro.
Clarice Lispector

É verdade que, no caminho que leva ao que cabe pensar,

tudo parte da sensibilidade.
Gilles Deleuze


Não é a coisa limitada que impõe um limite ao infinito;
é o limite que torna possível uma coisa limitada.
Todo limite é ilusório, e toda determinação é negação, 
se a determinação não está numa  relação imediata com o indeterminado.
Gilles Deleuze




"É preciso fazer a diferença” ( Deleuze). Só há diferença quando  feita, arriscada, ousada, instaurada. A diferença que não faz diferença não é diferença, é mera oposição, reação, impotência.A diferença, quando faz diferença, inventa a si própria como acontecimento novo, que para ser compreendido requer também um modo de conhecer e perceber diferentes.A diferença não é algo que se encontra pronto, muito menos se acha codificada em uma cartilha ou receita.Não se sabe o que é fazer diferença a não ser quando ela é feita. O conhecimento da diferença vem depois de ela mesmo ter sido feita, pois a diferença é exatamente aquilo que não se conhece antes dela, não se pode conhecê-la de forma a priori.Ao ser feita, a diferença também faz o conhecimento que se tem dela, conhecimento este também diferente, novo.Como fazer a diferença? Repetindo-a.  Por isso, a diferença é inseparável da experiência com ela própria. Em tudo aquilo que fez diferença há um aprendizado: repetir não o que se fez, mas repetir a diferença , que somente no novo se pode fazer.E qual é essa diferença? A inventada, criada, produzida. Nenhuma diferença cai do céu, embora toda autêntica diferença seja um celestar as coisas do chão. É do fazer a diferença que nasce um estilo. O estilo é uma harmonia na diferença, uma harmonia nada domesticada , uma harmonia selvagem, como os solos de uma alma livre,  sabedora de  que todo solo somente é possível quando agenciado a solos diferentes.