sábado, 26 de novembro de 2016

manoel : o chão é um ensino







poesia é delírio ôntico
Manoel de Barros


(trecho do livro)

No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como voo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.
"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".



segunda-feira, 21 de novembro de 2016

o simbólico e o diabólico

Por mais longe que a razão nos leve,
leva-nos mais longe o coração.
Goethe

Poeta é ser que vê semente germinar.
***   ***   ***
A criança, o andarilho e o passarinho têm o dom de ser poesia. 
Manoel de Barros

Não se descobre nenhuma verdade,
não se aprende nada,
se não por decifração e interpretação.
Gilles Deleuze


Na Grécia antiga, quando duas pessoas por algum motivo eram obrigadas a se separar, e desejando manter o elo, a aliança, elas pegavam então um pedaço de madeira, um galho de oliveira, e o fendiam em duas partes. Cada um ficava com uma parte: esta era guardada como testemunho daquela aliança. Mesmo transcorridos anos, o pedaço de madeira era mantido e preservado. Ele se transformava em posse coletiva, passando a pertencer então a um grupo, a uma comunidade. Se alguém de determinada comunidade desejasse saber se havia alguma aliança entre ele e uma diferente pessoa de outra comunidade, cada um mostrava o pedaço de madeira que portava. Havendo a composição de tais partes, novamente era celebrado o encontro, a amizade, a aliança, que assim vencia o tempo e o espaço, além de possibilitar um futuro.
Esse encontro ou composição das partes era chamado de “symbolos”. “Sym” significa “união”; e “bolos” é, em grego, “partes”. Símbolo: união ou composição das partes. Simbólico é tudo aquilo cujo sentido somente nasce em um encontro, pois o simbólico nunca existe como algo em si, como um fim em si. O simbólico celebra encontros, afirma composições. O simbólico é fruto de uma prática, mais do que de uma teoria: ele une prática à teoria, ideia à ação.Ele é o agente de relações: sua identidade é agenciar diferenças. O simbólico é de natureza social, embora ele pressuponha relações entre os indivíduos. 
Mais do que ser a representante ou a representação de um referente, toda palavra é uma parte que somente se completa quando se lhe une uma alma que a lê ou escuta. Sozinha, a alma também é uma parte incompleta: a outra parte é o sentido que a amplia, sentido este que ela mesma inventa, pondo-o na palavra, na tinta, no som.Dessa maneira, a alma inventa a si própria, encontrando-se naquilo que ela cria.
A linguagem é simbólica porque, antes de tudo, ela une o homem ao homem, e depois une o homem ao cosmos. O rio, a planta, a semente, o céu, o vento, o horizonte, o passarinho, o andarilho, a criança...também podem ser  símbolos ou partes que completam o homem, e é isso que nos ensina poeticamente Manoel de Barros, desde que o homem se veja e se compreenda como parte que completa o rio, o horizonte, a semente, a criança...isto é, desde que ele se veja formando um todo com esses seres, um todo poético, de tal modo que ele aprenda a se compor com o universo, o de fora e o de dentro dele mesmo. Nesse sentido da palavra, simbólico não se confunde ou se reduz ao mero “metafórico” por oposição ao conceitual, pois mesmo os conceitos possuem uma natureza simbólica, na medida em que eles são elos que nos agenciam com o conhecimento enquanto prática humana, social.
Tudo pode ser simbólico, desde que o vejamos como uma porta, uma janela, uma passagem, um elo, um agente, e não como coisa em si, fechada nela mesma (como se possuísse uma identidade fixa, imutável, imaculada).Em uma exposição, por exemplo, os objetos não valem apenas pela sua natureza tangível, material, mensurável: eles também são símbolos. Enquanto tal, eles comunicam. Comunicar é tornar comum um sentido que não pertence exclusivamente àquele que produz a exposição ou àquele que a visita, já que o sentido nasce do elo entre essas partes em relação. Por ser símbolo, um símbolo cultural, um objeto exposto também existe para despertar, e unir, o conhecer e o sentir, para assim potencializar nosso agir sobre o mundo. 
“Dia-bólico” significa: a parte separada do todo, a parte dividida. O diabólico é o que nos separa, isola, divide. O diabólico é a ausência de composição, de elo. O diabólico faz cada coisa existir isolada, imaginando-se um todo à parte .O diabólico destrói as pontes, cerra as janelas, interdita as portas, apaga as sendas, fecha os olhos, obstrui o coração. 


No mito, foi algo diabólico que ,com violência, reduziu o poeta  Orfeu a pedaços; mas foi a sua reconstrução simbólica , realizada por seu filho Museu, poeta como o pai, que o tornou vivo novamente, como objeto de conhecimento e afeto. Dioniso foi diabolicamente despedaçado pelas Fúrias. Contudo, Zeus recriou Dioniso fazendo-o renascer de uma parte que é sempre símbolo de vida: o coração. 
O simbólico nasce quando as partes são compostas: cada uma se aumenta na outra em razão de um todo que as amplia. O diabólico , por sua vez, não é a divisão da madeira em duas partes, mas a imaginação de cada parte de que nunca foi antes uma madeira comum  com outra parte, com outra diferença. Assim, diabólico é cada parte se considerar o próprio todo, e obrigar a outra parte a se submeter a essa verdade. Estabelece-se então uma guerra por domínio, por reconhecimento, por poder.
Em uma visão diabólica do mundo (que também pode ser  uma visão cientificista, objetivista, "técnica", enfim) o rio não é mais então símbolo ou elo ( como parte de um parque natural, por exemplo), ele é apenas rio, coisa, objeto. Assim também já não são mais símbolos, símbolos poéticos, o horizonte, o passarinho, a folha, o bicho, o chão e  o céu...pois já não é mais para si o homem um símbolo. Diabólicos se tornam então seu conhecimento, seus instrumentos e até mesmo sua razão.


Referências:

DAVALLON, Jean. L’exposition à l’ouvre: stratégies de comunication et médiation symbolique. Paris:L’Harmattan,1999.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2002.

SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, S/D.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.










domingo, 13 de novembro de 2016

a singularidade






As intensidades do girassol são forças do tempo?
Cláudio Ulpiano

Um girassol se apropriou de Deus:
foi em Van Gogh.
Manoel de Barros



O vídeo acima é a abertura do filme Os girassóis da Rússia , de Vittorio de Sica. O plano geral mostra uma realidade ampla, aberta ao  horizonte. Vemos incontáveis girassóis, um campo de girassóis. Difícil determinar os limites onde termina essa multitudo que parece não ter contornos, apenas limiares (que se estendem  ao azul do céu). Englobando a multitudo, mas sem encerrá-la em limites ou cercas, vemos um todo que a tudo horizonta. O todo é um plano de imanência, uma abertura, sem a qual não pode haver um chão, um território.
Então , da perspectiva desse todo a câmera parece que  vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto apenas olhávamos para o todo.À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um  vento , ora suave ora mais forte, que toca e agita a vida de alguns girassóis . Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos esses acontecimentos que atingem apenas parte da multitudo. Um mesmo acontecimento, o vento, provoca reações diferentes em cada girassol distinto, conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta o vento de forma firme; outro se curva e parece que vai se quebrar, triste.
Começamos a ver então que a multiplicidade é heterogênea, posto que composta de partes diferentes, singulares. Cada vez mais essas partes vão perdendo a relação exterior e extensiva com o todo , e começam a realçar seu estilo, sua assinatura, o seu ser um, sua existência única. Já não vemos mais o todo, o horizonte. Percebemos agora três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol.O girassol preenche toda a tela, que outrora era preenchida pelo todo. Vemos que uma singularidade pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos se explica por cores, texturas, molecularidades. Saímos de uma realidade extensiva e entramos em uma realidade expressiva.Entramos, enfim, em nós.
O girassol em sua singularidade continua a comunicar-se com o todo, porém através de sua diferença, de sua singularidade. O todo está inserido nele ( como essência íntima, diria Espinosa, como minadouro, complementaria Manoel) e ele está inserido no todo, no horizonte.Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não víamos a realidade intensa do afeto que o singular expressa.
Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que coloquemos, esse ser assim ampliado torna-se um rosto. Ele não ganha um rosto: ele se torna , por inteiro, um rosto. Ele devém uma superfície que  se explica apenas por valores expressivos, intensos. Em toda expressão há algo implicado. Toda expressão é uma explicação. A expressão explica, traz para fora, o que está implicado nela, o que lhe é imanente.A expressão é esse duplo movimento onde o dentro e o fora enfim se conjugam, potencializados em uma singularidade viva. Pois é isto que é um rosto : a vida colocada em um primeiro plano expressivo.
Então, o girassol parece viver/expressar alegrias, dramas, afetos, desejos: embora não possua cérebro e nervos, um girassol também pensa e sente.





sábado, 12 de novembro de 2016

o devir-imperceptível do poeta





A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um sujeito coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento 
 O verbo tem que pegar delírio.

Este “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

manoel de barros, a semente e o monturo






Poeta é o ser que vê semente germinar.

Manoel de Barros
                                                                                  




No poema O guardador de águas*, Manoel de Barros descreve o seguinte acontecimento: sob um  monturo de restos de ossos , de folhas  apodrecidas,  de cacos de vidro   e farrapos do que outrora respirou e foi vivo, sob tal monturo que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no ventre desse casulo úmido uma semente despertou: libertou-se dela um pequeno dedo, que virou mão tateando, depois braço que achou o caminho. Uma fuga foi-se desenhando, e o que era obstáculo tornou-se escada e sinalização para a vida ir para fora , fazendo-se impulso para a vida que se expandia. Movia esta vida o desejo de ver o sol, o sol que ela nunca viu. Esse desejo perfurou o monturo, abriu-lhe uma porta  e uma janela, pela qual saiu a pequena planta cantando a potência  de existir.

___

O guardador de águas, guardador de fluxos. O fluxos  somente podem ser guardados em um espaço aberto, sem limites determinados, cujas margens sejam limiares que por dentro se podem expandir. Guardar os fluxos é cuidar também deles, a começar pelos fluxos que nos constituem: caute,como recomendava Espinosa; cuidado: como ato  ético e também  clínico. Em Manoel de Barros, a essência não é uma "forma fixa", ela é um "minadouro": dela brota e mina inauguramentos.Guardar os fluxos só o podemos em um espaço múltiplo, ao mesmo tempo subjetivo ( lírico) e objetivo ( prosaico).Guardar as águas é guardar-se nelas, como larva, rascunho, desabrimentos:"estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir"( Clarice Lispector, A descoberta do mundo).A fonte guarda as águas que por ela fluem, que por ela fogem, que a ela afetam. Ela guarda doando,e por isso é fonte, uma vez que guarda as águas que recebeu e recebe do fluxo infinito.A fonte é a indistinção entre o receber e o ofertar.












(Van Gogh, O semeador)

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

amanhã, ao som de billie & nina


Até a lua hoje apareceu mais cedo.
E o sol se foi sem fazer a barba.
No frio calendário,
o amanhã mal aguenta ficar em  casa:
ele quer logo amanhecer,
para ser o dia em que vou te rever.

No rosto trarei um pouco de passado,
é inevitável,
não repare nisso por favor.

Vai ser só te ver
para ele se desentristecer,
e ser de novo expressão do amor.









quarta-feira, 9 de novembro de 2016

a graça

Quem canta
ora duas vezes.
Santo Agostinho


Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam
Schiller

Li certa vez um conto no qual se narrava a seguinte história: o cenário era a manhã de um dia, uma manhã comum. Não se dizia que era um dia especial: feriado, domingo ou aniversário . Era a manhã de um dia , como todos os dias. A cena se passa em um quarto. Um casal acaba de acordar. Não sabemos ao certo  se são casados, namorados, amantes. Ele ainda está deitado; ela se encontra sentada diante da penteadeira. Ela penteia o cabelo olhando-se no espelho. Ela não se inspeciona, não  critica algum defeito próprio, nem reclama de algo a ser melhorado, tampouco se compara com alguém ausente. Ela simplesmente se olha e se vê. Ela não se idolatra, como fez Narciso. Ela apenas se olha, e não apenas a si se vê. Seu rosto não imagina ou se lembra; ela não está no passado , tampouco se ausenta em uma realidade diferente daquela. Seu rosto, seus gestos, seus olhos, tudo nela é um sim. Um sim àquilo que acontece, como acontece, sem ter um porquê, uma razão, uma explicação. Tudo se basta, se realiza, como tem de ser. Ela cantarola uma canção. Não canta a letra inteira, canta apenas o refrão, bem baixinho. Mais do que a letra, ela canta o ritmo, tornando-se ela mesmo esse ritmo simples da canção. Assim como esta, ela dura, sem olhar no relógio o tempo dessa duração.
De repente, o namorado a olha. Ele fica vidrado, parece contemplar uma obra de arte perfeita. Não era um quadro, uma peça, um filme ou uma ópera o que ele via. Era mais do que isso, e parece ser a isto que aquelas artes buscam imitar. Era a vida. Não a vida teorizada ou romantizada. Era a vida, uma vida não apenas física, não apenas espiritual, mas a união dessas coisas, bem ali, aqui, e não acolá ou além.  Ela se volta e vê o amado a vê-la. Ela se assusta com a expressão que vê, e pergunta: “-O que foi!?”.  Ele quase salta da cama e lhe roga:
-Repete o que você estava fazendo, faz de novo!                                                  
- Mas o que eu estava fazendo? Não estava fazendo nada....
- Você estava se penteando, se olhando, cantarolando...
- Ah...era isso? Nem notei....Era assim?
A mulher tenta repetir o que fizera. Porém , agora eram apenas um arremedo os gestos, uma cópia somente: a cópia de um modelo que se perdeu, junto com aquele tempo idêntico à canção. O homem se limita a dizer que não era assim que ela estava fazendo, que era diferente....Por mais que ela tentasse, o que foi não volta....

Ela não conseguia reproduzir de forma calculada, encenada, prevista, o que acontecera de maneira espontânea, não posada. Contudo, não estava no passado o que se perdera. Estava ali naquele presente, em todo presente que passa. Era uma relação com o presente que presentemente se pensava. A ilusão está em achar que o presente que se vive de tal forma espontânea é aquele que passou e foi se esconder na memória. E que se evocarmos bem esse fantasma, teremos de novo a carne, o osso e o espírito do que foi vivo. Contudo, o que o homem vivera não foi o que se pode evocar como lembrança. O que ele quer é reencontrar aquele presente que parecia não passar, e que está mais na percepção, essa janela do espírito, do que na memória, que é seu porão.
Ela vivera o que se pode  chamar de graça. A graça é o que se recebe sem fazer pedidos e imploramentos. A graça vem quando menos se espera, e vem de graça, sem preço; de tal forma que recebê-la não constitui empréstimo, tampouco dívida. Porém, não se recebe a graça sem achar-se em gratidão. Quem mais é grato mais graça acha nas coisas que o mercado diz serem inúteis e não valerem nada.   Nunca a graça vem quando estamos no palácio ou no pódio. Na verdade, a graça nunca vem, ela sempre está: ela é essa experiência espontânea, inocente, de não mais julgar, medir, contar, objetificar, criticar. A graça é “fazer o nada aparecer”, diz Manoel de Barros. Não o nada de coisa alguma, mas o nada que não é nenhuma coisa, que não é coisa.
Quem vive a graça sabe que a vive, embora não possa conhecê-la enquanto  a vive. Pois conhecer é fazer de um acontecimento um objeto,  é sair do acontecimento enquanto todo indiviso. E quem vê a graça não sabe como agir sobre ela, pois lhe falta a memória daquilo, falta-lhe o conceito, embora não lhe falte o ser. De algo novo não se tem a memória. Na memória está o já visto e vivido, o já experimentado. A graça é a novidade que se dá sem avisar, celestando o ínfimo.
A graça é a própria vida que acontece em nós a despeito de nós não a vermos. Afastar-se da graça constitui a desgraça. Esta não é exatamente o infortúnio do fato trágico, tampouco a desgraça mais danosa é a perda da saúde ou das posses. A pior das desgraças é uma vida mecânica, pragmática, uma vida que se afastou de si própria, e que só vê graça em piadas ou no mero cômico a zombar dos outros.
Conquistar essa graça espontânea requer o abandono de toda ideia de conquista; alcançar essa graça pede que se ceguem os olhos e se cale a boca para tudo aquilo que se via e se falava como certeza e plano de vida.  Quem se acha na graça se encontra, e sempre cantarola uma canção, por mais simples que ela seja.  Não precisa cantar a canção inteira, basta apenas o refrão.


(mitologia: As três Graças)




terça-feira, 8 de novembro de 2016

o passarinho azul (2)





Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes do que as paredes
dos grandes prédios do mundo.

***


O passarinho: ser disponível para sonhar.
Os cantos podem ser ouvidos em forma de asa.
Os passarinhos têm o dom de ser poesia.

Manoel de Barros



O PASSARINHO AZUL

Alguns dizem ter imortais almas
que em outras vidas já foram Príncipes,
Sultões e Monarcas.
Outros se gabam de ter Anjos da Guarda
que favores ao próprio obtêm junto a um Glorioso Deus.

Eu, simplesmente, no lugar de alma,
tenho apenas um passarinho:
ele é azul, pequenininho,
mas fez em meu coração um enorme ninho
e nunca pára de cantar.







O PASSARINHO AZUL 2

O passarinho azul
que está a voar
é um pardal a brincar
fantasiado de céu.

Sábio pardal
que embora não saiba cantar
outra arte soube inventar
pintando-se um príncipe sob o sol.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

as travessuras do poeta




(trecho do livro)

O homem seria metafisicamente grande,
se a criança fosse seu mestre.
Kierkegaard

Chegamos perto da metafísica.
E voltamos.
Manoel de Barros


Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério. 

De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”( Miró também fez desaprendizagem semelhante...). Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda. O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,

A poesia tem a função de pregar a prática 
da infância entre os homens.



(Paul Klee, Travessura, 1939)