sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Tempo Novo

 

Assim diz o filósofo Sêneca:  quando um amigo nos empresta um bem que lhe pertence permitindo que o usemos, na hora de devolvê-lo geralmente prestamos conta ao amigo de como usamos o bem que ele, generosamente, nos emprestou.

Ficamos felizes quando  mostramos  ao amigo que o bem foi usado com   cuidados, como se nosso fosse . Enfim, se nutrimos verdadeira amizade pelo amigo, ficamos gratos e devolvemos o bem  com um sorriso nos lábios, sem apegos egoicos .

Mas quem  se apega injustamente  ao bem que lhe foi emprestado por um amigo  e,  ingratamente , se apodera   como se fosse o dono , quem assim procede na verdade usurpa, faz mal uso do bem recebido, e  verá o amigo como inimigo :  viverá atormentado com a possibilidade de que o dono verdadeiro do bem  um dia bata à porta e venha buscar o que de fato lhe pertence.

Sêneca argumenta que há um bem que nos foi emprestado  de maneira semelhante, bem esse que é o mais valioso entre tudo aquilo que estimamos ser um bem. Esse bem que recebemos é o tempo.

O tempo é o bem dos bens, expressão primeira da vida. Não somos os donos ou proprietários desse bem, dele somente podemos exercer usufruto  = “usar o fruto”.

O bom uso do fruto não é devorá-lo para matar apenas  a fome imediata, e pior ainda é  deixar os frutos apodrecerem no pé, ignorados...

Usa bem o fruto quem também o planta  para que dele frutifique a árvore de amanhã, plena de novos frutos a serem colhidos. Quem sabe  plantar da vida os frutos, igualmente se frutifica nos frutos que nascerão.

Quem nos deu o fruto-tempo foi a Natureza, a mesma de que fala Espinosa. Um dia, teremos que devolver esse bem. E provará que soube  ter vivido , não importando quantos anos tenha sido ou o que na sua vida tenha acontecido , aquele que devolver esse bem como um amigo , grato  por poder ter desfrutado da melhor maneira  o bem recebido.   

Sêneca chama de “Amor Fati” a esse desfrutar do fruto-tempo que alimenta tudo o que vive. Ao contrário, ódio, rancor , ressentimento, ignorância...são frutos apodrecidos que envenenam a vida, a própria e a dos outros.

“Desfrutar” significa  : “abrir o fruto  para saborear”. Não por acaso, a palavra sabedoria é prima da palavra “sabor”. Pois o saber é potência de criar  o gosto que aprecie os frutos que a vida oferece para colhermos e partilharmos.

 Porém, como ensina Nietzsche, não basta o fruto estar maduro para nós , é preciso que , primeiro, o nosso gosto também esteja maduro para o fruto . É o (auto)conhecimento emancipador  que potencializa e  matura nosso gosto para o saber e seu sabor libertário.

Desejo às amigas e amigos que a árvore do tempo  nos ofereça em 2023  frutos  que possamos desfrutar com o gosto partilhado da amizade, da educação, da democracia , da  saúde, da justiça e da poesia.

 




“Aprender dá-me sobretudo prazer porque me torna apto a ensinar! E nada, por muito elevado e proveitoso que seja, alguma vez me deleitará se guardar apenas para mim o seu conhecimento. Se a sabedoria só me for concedida na condição de a guardar para mim, sem a compartilhar, então rejeitá-la-ei: nenhum bem há cuja posse não partilhada dê satisfação.” ( Sêneca , “Cartas a Lucílio” / trecho da Carta 6 ; o trecho que interpreto no texto da postagem é da Carta 1).



 








 

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

filosofia como doença, filosofia como clínica

 

              

 Wittgenstein dizia que a função principal da filosofia é a de terapêutica ou cura : cura da própria filosofia[1]. Somente a filosofia nos pode curar da filosofia, diagnosticava Wittgenstein. Mas de qual doença a filosofia é, ao mesmo tempo, o agente patológico e o médico? A  doença da linguagem metafísica. Segundo Wittgenstein, a metafísica é uma doença que acomete a linguagem filosófica, que assim ignora os seus limites: delira.

Autores como Sêneca, Epicuro e  Epicteto também prescreveram a filosofia como sendo, antes de tudo, uma terapêutica. Porém  eles foram médicos mais clínicos e acurados que Wittgenstein. De certo modo, eles são médicos que talvez pudessem curar Wittgenstein de Wittgenstein...

Pois Sêneca, Epicuro e Epicteto nos falam de uma linguagem primeira , uma linguagem que antecede essa a qual se refere Wittgenstein. Enquanto Wittgenstein se refere ao discurso externo que toma por objetos realidades que somente a ciência poderia  conhecer adequadamente e sem “metafísicas”,  os clínicos originários se situam no âmbito do discurso interno, aquele no qual a alma deve aprender a conversar consigo mesma. Não apenas falando a partir da razão , mas também falando e ouvindo a partir sobretudo do corpo, da sensibilidade, do inconsciente... É nesse registro imanente que um discurso pode ser saúde ou doença.

 Wittgenstein considera a linguagem da perspectiva de fora e em relação aos seus objetos, ao passo que os clínicos originários pensam a linguagem como meio de expressão da realidade dos pensamentos , dos desejos e quereres. Talvez nasça de um querer adoecido , fruto de um pensamento que não sabe conversar consigo, a opinião  que crê ser a filosofia uma doença...

Para aqueles clínicos originários, a filosofia é o remédio , o conversar consigo é o tratamento, e a (auto)ignorância a única doença a ser vencida.



[1] De uma perspectiva diferente, esse tema é tratado por Pierre Hadot no Prefácio que escreveu ao livro La philosophie como thérapie de l’âme, de André-Jean Voelke .


sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

o presente

 

Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do natal, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que  papai noel deixou sobre minha cama: uma bola... Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria mesmo  era ver o papai noel!

Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!” Depois me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?” Mas eu só via as estrelas...

 Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais : “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre foi velho ou um dia foi criança?”

Porém  meus pais acabavam tendo que ir  cuidarem da ceia, deixando sem resposta meus interrogares  poéticos-metafísicos. Após um bom tempo olhando o infinito , eu  me lembrava do presente  e voltava correndo para brincar  até tarde,   indo dormir abraçado à bola...

No ano seguinte mudamos para  novo endereço. Na noite do nosso primeiro natal na casa nova, fiquei de soslaio espreitando a janela.  “Ainda não é meia-noite, papai noel  ainda não veio”, dizia meu pai.

Houve um momento em que vi meu pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que eu notei aquela comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo. Meu pai saiu de fininho, enquanto minha mãe tentava me distrair  e aos meus irmãos  com o panetone.

 Mas eu só fingia olhar para o panetone, eu queria era surpreender o papai noel entrando sorrateiro pela janela. Se meus queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas.

Eu nem fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as respostas às questões poéticos-filosóficas.

Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei estranho...Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito sombra: meu pai carregava pacotes de presentes ...

Foi instantânea a minha compreensão do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco desiludido .Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros, porém começava a ler o mundo .

Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e nada disse . Senti ali uma solidão diferente : um estar só sem ficar triste.

Enquanto meus irmãos corriam para o quarto, fui à janela para receber outro tipo de presente: olhei para o imenso céu e me horizontei, com uma intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa.

 Hoje sei que o interrogar não vinha de mim, vinha do próprio infinito oferecendo-se como presente , para nunca deixar morrer aquela criança questionadora dentro da gente.


( imagem: “Noite estrelada sobre o Ródano”/ Van Gogh)












Partilho  da querida amiga Sílvia Ulpiano:
 


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

aniversário de Manoel de Barros

 

Ontem, 19/12, foi aniversário de Manoel de Barros. Em homenagem ao querido pensador-poeta, segue uma interpretação que fiz de um dos poemas dele  que mais gosto:

O filósofo Deleuze ensina que só conseguimos mudar alguma coisa fazendo agenciamentos, pois ninguém muda nada, inclusive a si mesmo, sozinho . No coração da palavra agenciamento se encontra o termo “agente”. Mas o que é um agente?

Um agente pode ser qualquer coisa que favoreça um agenciamento. Por exemplo, uma música pode ser o agente de um agenciamento. Também podem ser o agente de um agenciamento um livro, um filme, um quadro...

Mesmo algo considerado inútil pelo poder dominante pode servir a agenciamentos cuja “utilidade” não se mede em dinheiro.

Nem sempre um agente para um agenciamento se mostra evidente. De certo modo, é preciso saber achar um agente para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo . Sobretudo, é preciso aprendermos nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem os outros quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos uma situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.

No poema “Aventura”,  Manoel de Barros  narra a potência que pode ter um agenciamento: o agente do poema é um pote que o poeta encontra no meio do mato jogado fora de "barriga vazia para cima".

Não faz muito tempo esse pote deve ter sido o centro das atenções: todos ficavam felizes e o queriam perto. Ele assim era tratado por guardar algo que despertava interesse ( talvez ele tenha sido um pote de sorvete...).

Tamanha deve ser a dor que o pote sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o sugarem, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera, preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.

“Inútil”, o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta.

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar ermo. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela imagem triste do sofrimento.

Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio.

Ali já havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo o pote partejou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou...

"Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que recebeu sob a forma de rosas. Em seu agenciamento com o pote, o poeta metamorfoseou as rosas que recebeu em poesia que generosamente nos oferta.








sábado, 17 de dezembro de 2022

a não velhez do poeta

 

Nessa época do ano, as crianças sonham com presentes. Gostaria de recomendar às amigas e amigos um excelente presente para as pequeninas e pequeninos : um livro de Manoel de Barros! Esse livro me  lembra uma história que sempre gosto de (re)contar:

Quando fez 80 anos, o poeta Manoel de Barros recebeu pedido   de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Com sua avançada idade, o editor supunha que o  poeta teria muito a dizer sobre si e aconselhar aos outros, principalmente aos jovens.

Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: “Memórias da primeira infância”.  Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso.

 Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: “Memórias da segunda infância”. Como diz Manoel, poesia é saber que      “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira , não era  uma infância posterior . A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira.

Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: “Memórias da terceira infância”. Um livro regenerador...

O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, principalmente,  da velhice?”

Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

Essa infância, enquanto antídoto à “velhez”, não é uma determinada idade. Pois ela também é a infância da linguagem, o seu fazer-se novidade para dizer o que ainda não foi dito: “As crianças sabem dizer palavras que ainda não têm idioma”.

“Velhez” também  é quando os dias vividos se tornam um peso curvando as costas, não importando a idade que se tenha. “Velhez”   é a  vida  prostrada, de joelhos, sem forças para caminhar e avançar. Às vezes, é a própria sociedade que sofre de “velhez” : quando seu futuro , ainda nem chegado, já parece extinto...

“A única coisa que carrego é meu chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel nomeia as ideias que protegem os pensamentos que dão caminho às pernas : “O poeta-andarilho abastece de pernas as distâncias”. Sobre o  chapéu do poeta  um casal de pardais fez ninho: há nele ovos sendo chocados, e ,  dentro do poeta, auroras .

Assim como Gil, Caetano, Paulinho da Viola, Chico, Bethânia... Manoel nos ensina que a velhice nada tem a ver com a velhez. E que criatividade e potência de vida não dependem da idade, desde que se descubra o que na criatividade há de absoluto. “Ab-soluto”: “o que não é soluto, o que não se dissolve”.

Fascismo ,  ignorância e  idiotia são reatividades da velhez que a tudo quer dissolver com seu negacionismo. Mas arte, criatividade, educação....são potências críticas e criativas que tornam a vida absoluta nas ideias que aprendemos e ensinamos.




 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

"cavernas", ontem e hoje...

 

Em sua famosa alegoria, Platão compara a uma “caverna”  o mundo no qual vivem os homens alienados, ontem e hoje.

Esses homens não entraram  na caverna para  explorá-la. Ao contrário, eles são explorados dentro dela : nela vivem como   prisioneiros acorrentados.

Eles estão acorrentados de costas para a saída da caverna e de frente para o fundo dela. Como esses homens naturalizaram essa  condição, ignoram que são prisioneiros, não se dando conta que estão acorrentados.

As correntes não são de ferro ou aço, elas são feitas de um material que vem dos próprios homens aprisionados: elas são feitas com  suas passionalidades reativas e opiniões ressentidas . 

Ódio, ressentimento,  preconceito, medo...são exemplos de “paixões tristes”  que , como ensina Espinosa, tornam os homens prisioneiros deles mesmos e partes de um rebanho manipulável.

O mundo da caverna não é totalmente escuro, pois entra nele um pouco da luz que vem de fora.  Por isso, no fundo da caverna se projeta  o reflexo, apenas o pálido reflexo, das coisas reais que existem fora da caverna.

Mas como os acorrentados não sabem que existe um mundo fora da caverna,  aprisionados que estão ao negacionismo, eles imaginam  que o reflexo distorcido  do mundo é o próprio mundo, e assim tomam por real apenas sombras, “fake news”.

Os prisioneiros carregam a caverna não importa onde estejam:  ela é o mundo estreito dos que estão acorrentados a si mesmos  e submetidos aos que os mantêm nessa condição de servos voluntários.

Aprisionados à ignorância, eles não  estão porém   privados de movimentos, desde que seus comportamentos sirvam aos  “donos da caverna” que os manipulam e os usam como arma vingativa-ressentida a serviço da intolerância e violência, físicas e simbólicas.

Na abominável caverna fascista-miliciana, os prisioneiros dela , autointitulando-se “homens de bem”,   estão sempre falando em pátria e Deus;  mas a pátria e Deus deles são apenas sombras no fundo de uma obscura caverna teológico-política.

Os que  se aproveitam dessa  ignorância trevosa Platão  os chama de “espertalhões  da caverna”: eles  posam de governantes  , generais e “líderes espirituais”, quando na verdade são tiranos do corpo e da alma.

Ontem e hoje , os tiranos da caverna odeiam a luz e contra ela fazem sua suja guerra , pois temem o lume  da educação emancipadora.

Pois a razão de ser dessa luz  é fortalecer quem a conhece e se autoconhece a partir dela, adquirindo assim força para agir individual e coletivamente para , lutando pela dignidade e   justiça, pôr os tiranos  da caverna num outro lugar igualmente  em penumbra   e que deve ser o destino  deles : a cela de uma cadeia.

 

sábado, 10 de dezembro de 2022

lawfare , cicutas e seu antídoto

 

Hoje, “lawfare” é uma perseguição político-jurídica  patrocinada por uma elite econômica mancomunada   com a  (extrema)direita que , com a cumplicidade da mídia corporativa e juízes vendidos, usam  a lei como substituta da força bruta para perseguir e prender aqueles que, progressistas,  atuam pela justiça social e dignidade .

Mas a prática do  lawfare, com outros personagens persecutórios, tem origem mais remota. E sua primeira vítima  foi Sócrates, o filósofo.

Os poderosos de Atenas usaram a lei para prender e condenar Sócrates à morte pela ingestão de um veneno: a cicuta. Mas qual crime Sócrates cometeu ?

Sócrates não roubou , furtou   ou coisas do gênero. O “crime” que Sócrates cometeu  foi : pensar. As armas de Sócrates não foram flechas ou lanças , suas armas foram as ideias que ensejam o  pensar crítico em relação a tudo aquilo que torna o ser humano servo da (auto)ignorância.

Quando Sócrates foi preso, Platão ainda era um jovem que pensava em seguir a carreira de escritor teatral.

Porém  quando ele viu Sócrates , considerado o homem mais sábio e justo, ser assassinado pela lei transformada em chibata persecutória nas mãos da elite, Platão resolveu seguir os passos de Sócrates e se tornar filósofo.

 Mas com uma diferença fundamental: enquanto Sócrates achava que para mudar a sociedade é preciso mudar, primeiramente, cada ser humano individualmente, Platão considerava que, antes de tudo, é preciso mudar a sociedade primeiro para assim mudar cada ser humano individualmente.

Enfim, Sócrates  pretendia  mudar cada ser humano pelo despertar da consciência moral, já Platão queria ensinar e pôr em prática, coletivamente, a consciência filosófico-política.

Esse projeto político-filosófico levou Platão a escrever o livro “A República”, pois onde domina a tirania,  seja a das armas ou  a do dinheiro, o pensar emancipador sempre será perseguido.

República significa:  “coisa pública”, por oposição às coisas privadas. As coisas privadas podem ser compradas ou vendidas, mas as coisas públicas somente podem ser partilhadas. Educação, saúde, justiça...são coisas públicas, e nada têm a ver com a lógica privatista do comprar e vender.

Quando uma elite gananciosa se pretende  dona-proprietária da sociedade, ela exercerá o poder subordinando o interesse público aos seus interesses privados, inclusive empregando a força de polícias, exércitos ,milícias...

 Sob tal poder, a lei virará também objeto de um comércio sujo, no qual juízes e promotores serão vendidos e comprados, enquanto  pensadores, educadores e artistas serão ameaçados e perseguidos.

Ontem e hoje, o antídoto para cicutas , literais ou simbólicas,  é a educação-pensante  que leve às  crianças e  jovens  filosofia, sociologia, artes e educação política .


( esta é uma excelente dica para despertares filosóficos: direcionado para crianças e jovens, o livro conta a história do encontro de Espinosa com um pequeno pardal que ele vê caído fora do ninho. O filósofo levou o pardal para casa, cuidou e o  alimentou com pão e ideias, até que, com  as asas fortalecidas, o pardal voou livre para a natureza. Espinosa deu o seguinte nome ao seu amigo-pardal: o Rebelde)



Texto da contracapa: “Bento Espinosa foi um dos mais importantes filósofos de todos os tempos e um homem livre. Este livro relata a história de amizade entre o filósofo e um pardal que foi testemunha do seu trabalho e do seu modo de vida. É possível e desejável falar sobre filósofos e filosofias com os mais novos, porque eles compreendem com sensibilidade e espírito inquiridor as grandes questões que desde sempre preocupam o Homem. Este é um livro sobre a liberdade e a amizade, uma história sem idade e para todas as idades, onde a poesia também faz questão de estar presente.” Oficina dos Sonhos




 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

a arte de Hermes

 

A  palavra “interpretação” em grego é “hermenêutica”.  No coração dessa palavra está um nome: Hermes, o deus mensageiro. Assim, hermenêutica é: arte de Hermes. Mas qual a relação entre Hermes e a prática da interpretação?

Quando Dioniso , o deus das artes, foi despedaçado pelas Fúrias, divindades do ódio e da vingança, essas imaginaram que haviam derrotado para todo sempre Dioniso, e assim foram embora o Ódio e Vingança imaginando que haviam vencido a Arte.

Mas existia uma arte que as Fúrias ignoravam : a arte de renascer. Isso explica o nome de Dioniso: “aquele que nasceu duas vezes”. Dioniso sempre pode renascer  a partir de sua parte imortal: o coração.

Sabedor disso, Hermes pegou o coração de Dioniso e passou a carregá-lo consigo, de tal maneira que o coração , lugar do Afeto, passou a  ser a mensagem primeira  que dá sentido às outras mensagens feitas de palavras que Hermes carregava para serem lidas e ouvidas.

“2 +2 = 4”, “a capital do Brasil é Brasília”...coisas assim não são mensagens, são informações que a inteligência sozinha pode conhecer.

Mas com as mensagens é diferente, a inteligência sozinha não extrai o sentido delas sem que entre em cena o coração que cada um tem. Na intepretação das mensagens, também é fator decisivo da leitura o afeto que cada um cultiva em seu coração .

Se o coração de alguém é generoso e criativo , interpretará ricamente o sentido de uma mensagem, por mais simples que ela seja, mesmo que não tenha palavras, tal como interpreta Manoel de Barros o canto dos passarinhos fazendo deles poesia que muito nos diz e ensina ( ou ainda Van Gogh , que soube interpretar, pintando, a mensagem dos girassóis...).

Porém  se o coração de alguém é mesquinho, vingativo, autoritário , ressentido... é assim que tal coração lerá as mensagens , não importando se são mensagens da Bíblia ou da Constituição. Gente com o coração assim diz achar na Bíblia mensagens que justificam eles acreditarem que um miliciano pode ser um “Messias”...

E é assim que eles também  interpretam  o Artigo 142 da Constituição Brasileira, encontrando  nesse Artigo  o que o coração autoritário deles quer: que as forças armadas , reencarnando as antigas Fúrias, venham despedaçar a própria democracia...

Contaminada por um coração perverso assim, a inteligência desse tipo de gente  tenta fornecer raciocínios a serviço do ódio e da vingança. Mas quando a inteligência serve a um coração ressentido, seus raciocínios se tornam apenas  sofismas , raciocínios mentirosos,  que só aos tolos enganam...

(este livro de Manoel é apenas uma sugestão de leitura. Manoel diz que o livro nasceu das audições/interpretações que ele fez dos cantos de um sabiá livre  que mora dentro do coração dele)


                                     ( a capa é de Martha Barros, filha do poeta)





 

 

 

domingo, 4 de dezembro de 2022

a calça

 

Liberdade não é o mesmo que libertário. Um fascista acha que liberdade é poder ameaçar a democracia, um militarista delira  que liberdade é poder fazer culto de armas, um liberal imagina que liberdade é poder comercializar e privatizar a vida.

Já libertário é tudo aquilo que enseja ações antifascistas,  antimilitaristas, antimercadoras da vida.

Um livro,  um poema, uma filosofia...podem ser libertários, desde que despertem  ações libertárias na prática, aqui e agora.

A primeira vez que li a palavra libertário foi num livro de Maiakóvski , cuja poesia era definida como libertária. Foi após ler Maiakóvski, quando eu fazia o antigo segundo grau, que vivi  este acontecimento :

Certa vez, para não dar trabalho à minha mãe e exercer um pouco de autonomia , fui lavar uma calça jeans minha . Naquela época, as calças jeans eram de cor azul escura, padrão. Não tínhamos máquina de lavar: lavei a calça com as mãos, no tanque. Depois a coloquei para secar no varal.

Horas depois, vi a calça caída com uma das pernas imersa numa bacia que eu imaginava conter  água e sabão (provavelmente  um vento a derrubou ali).

No dia seguinte vi que não havia apenas água e sabão na bacia, pois a perna que nela  caíra estava completamente desbotada! Nunca eu tinha visto um efeito assim. Algo em mim amou  aquela diferença : mergulhei a calça inteira na bacia com água sanitária...

Na manhã seguinte, vi a obra pronta: estendida no varal, a calça parecia uma pintura  de Pollock! Quando a coloquei , senti que  vestia mais do que meu corpo: também vestia a minha alma , que assim não estava mais nua.

Aquela calça se tornou mais do que uma calça: ela se metamorfoseou em borboleta liberta de um casulo.

Antes de eu sair para o colégio, quem  primeiro me viu com a calça foi minha mãe, que apenas disse : “cuidado, meu filho...”.

Só entendi a preocupação dela quando cheguei na rua (ainda havia ditadura militar ): todos me fuzilavam  com olhares armados com ódio, só por causa daquela calça. Vestir-se com a diferença incomoda  rebanhos homogêneos, “mesmais”, diria Manoel de Barros.

Sentindo-me sozinho, até pensei em voltar para casa, me despir da arte que ousei   ,  vestir uma “calça-alma” acomodada  e me esconder de mim. Mas tomei coragem e segui em frente, e creio que  foi ali que o filósofo nasceu em mim.

Quando cheguei ao colégio,   minha  calça-alma  diferente não foi bem recebida também , parecia que ela  punha a nu   os que vestiam uniformes, por fora e por dentro.

Até que veio até mim, sorrindo, um amigo do peito: o Jimi  ( o nome dele era Jorge, “Jimi” era um apelido  por ele amar  Jimi Hendrix) . Ele olhou a calça com aprovação , como se ouvisse uma nova música de Hendrix,   e me perguntou : “Como você fez? Quero  uma calça desse jeito  também!”

E assim eu já não estava mais sozinho...

 

(imagem :  “Blue” /  de Pollock)




-Poema de Maiakóvski:



- João Bosco & Maiakóvski:



- Jimi na voz da Céu:




sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Nietzsche, Leônidas da Silva, Garrincha e Maradona

 

Nietzsche dizia: “É preciso proteger os fortes dos fracos.”  Em Nietzsche, “forte”  nada tem a ver com músculos ou armas, forte de verdade é  a “potência”, a criatividade, enfim, tudo aquilo que é  afirmação da vida. “Fraco” , ao contrário, é o ressentido, o autoritário, o negador da vida, mesmo que tenha um exército a seu serviço.

Essa frase de Nietzsche  se aplica a várias coisas, inclusive ao futebol . Na bola, o forte é  mais do que mero atleta : o forte-potente também é    o criativo, o artístico, o pensador. O criativo respeita as regras, mas não se limita a elas,  pois ele exerce  uma potência singular  :  sua arte de jogar/pensar.

Por isso , ele também sabe  inventar o improvável que não está previsto na “regra acostumada”,  sem fazer de sua invenção  uma burla ou infração. Quando  Leônidas da Silva inventou a “bicicleta”, o juiz do jogo parou sem saber o que fazer, pois Leônidas “inventou um comportamento” apoiado apenas naquilo que “pode um corpo”, como já ensinava  Espinosa. Quem “inventa comportamento” é poeta, explica  Manoel de Barros. 

Em geral, o craque-criativo-pensador sofre violências e agressões. Do ponto de vista meramente físico, o jogador que entra violentamente no craque, imaginando que assim o vence, só aparentemente o violento-brigão é forte. Do ponto de vista do futebol, porém, o mero violento  é fraco. Forte é o pensador-criador, e é por isso que ele precisa ser protegido. Quando se aplica o cartão amarelo ou vermelho para  proteger o forte-criativo dos fracos-violentos, é porque se quer proteger igualmente o futebol da mera  força bruta.

Talvez tal cuidado pudesse nos inspirar na  política: proteger os fortes (os que têm ideias fortalecedoras das regras democráticas) dos fracos (os que têm apenas a força do dinheiro, da mídia ou da mera violência  que idolatra destruição e armas...).

Baudelaire dizia: “seja sempre poeta, mesmo em prosa”. Sem precisarem ler Baudelaire, Leônidas da Silva, Garrincha e Maradona aprenderam a lição: “sendo um poeta, mesmo com a bola”.

 

(foto: Leônidas e sua bicicleta)