segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

eterno retorno


Em toda  passagem de ano comemoramos um ano novo. Um ano velho  vai, um ano novo vem. Mas o ano novo não é um começo radical : ele é a continuidade de um mesmo tempo. É por isso que o ano novo é contado e recebe um número : 2019.  É um ano novo de um mesmo tempo que é numerado, então, com um ano a mais. O ano novo é um novo ano de um mesmo tempo, e não um tempo novo. 2019 pode ser ano  novo, mas  o tempo que ele anuncia  é o de uma mentalidade retrógrada e conservadora , nostálgica de um passado de trevas.
Entre os gregos o tempo era vivido de outra maneira. O tempo não era concebido de forma linear. Os gregos viviam o tempo como repetição cíclica. O tempo é uma repetição, e não uma progressão numérica. Dois eventos determinam o ciclo do tempo: o nascimento e a morte, a criação e a destruição. O tempo nasce, cresce e morre, como tudo o que é vivo. Porém, o tempo renasce, vencendo sua própria morte.  O tempo que nasce é um tempo novo que nada tem a ver com o que morreu. O tempo novo também não é o desenvolvimento de um tempo antigo. Por isso não se pode dizer que é o ano novo de um mesmo tempo, pois é um tempo novo que nenhuma data ou número pode determinar. Ele é tempo novo, renascido outro. É no tempo novo, e não no tempo morrido, que o tempo mostra sua verdadeira face: deixar para trás tudo o que está morto.
Quantos tempos novos já existiram? Impossível numerar... Infinitas vezes já houve um tempo novo. Apesar disso, sempre haverá tempo novo, a despeito dos homens conservadores do antigo.  É para  criar-se novo que o tempo se destrói como antigo. Repetindo-se, o tempo  sempre retorna, diferente. O tempo não é eterno: eterna é a repetição através da qual o tempo retorna, novo.

“Só podemos destruir
sendo criadores."
(Nietzsche)

                                                              


                                                  
            
                                                                                                                        


sábado, 29 de dezembro de 2018

o antídoto


Quando eu era criança, bem criança, meus pais eram pobres, porém podiam me dar de presente carrinhos simples nessas épocas de  natal  e fim de ano . Eu recebia tais brinquedos e os guardava,  agradecido. Mas esses brinquedos e outros  não me faziam falta, pois eu gostava mesmo era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados . Por exemplo, gostava de pegar o chinelo de meu pai e fazer de carrinho. Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido.
Quando eu era criança , portanto, havia o carrinho de brinquedo e o brinquedo que eu inventava com a própria realidade.  Brincar com o carrinho de plástico era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,  para subverter  o sentido do que está dado. Com Manoel de Barros, aprendo a manter vivo esse devir-criança como antídoto ao viver  "mesmal" e "acostumado".



quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

- auroras


“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” , ensina o poeta  Manoel de Barros. “Sucata”, segundo o poeta, é tudo aquilo que a “velhez venceu”. “Velhez” não é uma vida perto do fim , “velhez” é uma vida que se perdeu de seu começo, de seu “minadouro”, de seu embrião. Se 2018 está virando sucata, não está nele essa resistência-(re)invenção.
Mas onde achar  a “não velhez” do tempo ? Onde encontrar  o tempo  “verdadeiramente novo”  que resiste a  virar sucata  ? Onde vive  tal embrião para nos umbilicarmos  a ele e não  virarmos  também sucata ?
Sem fazer alarde ou  promessas,  independente de tecnologias da moda,  a aurora de não importa qual dia nos dá a resposta, sem exigir champanhe ou fogos em troca. Uma aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia  é novo! ( e não apenas 1º de janeiro!)
Para resistirmos  ao poder sucateador de direitos   desses dias que virão, necessárias auroras a todos!
                                                                                                                                               
“Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora” (Manoel de Barros) 

      

                                                                                                                                                                                                                 

                                                                                                         

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

fim de ano


                 
Limpar a casa: retirar a poeira acumulada que sufocava  de cinza  as cores. Lustrar os vidros da janela : até de novo poder  atravessar a luz do sol por ela. Reorganizar as distâncias entre as coisas :  para que entre elas  haja livre  espaço para  o correr de crianças. Reabrir a porta que mantivemos trancada: para que no coração uma linha de fuga também se refaça. Limpar tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina. Depois de tudo revitalizado, reentrarmos como alguém que nos fizesse sua primeira visita.

“É a minha própria casa,
mas creio que vim fazer uma visita a alguém.”
(Maria Gabriela Llansol)

“Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros” 
(Manoel de Barros)

(imagem: “Fachada da casa”, de Volpi)







quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

o etnocídio


No filme “O descobrimento do Brasil”, o cineasta Humberto Mauro recria o encontro dos índios com os “civilizados descobridores”. Segundo os livros, tal encontro foi “amistoso”. Porém,assim que chegaram, os colonizadores  queriam “batizar” a terra “descoberta”. Então, adentram a densa floresta , machados em punho. Ignorando suas intenções , e desconhecendo o que era um machado, os índios os seguem. Quando os colonizadores  invadem certa parte da floresta, os índios ficam tensos. Os invasores começam a apalpar as árvores. A tensão entre os índios aumenta. Quando os invasores desferem a primeira machadada em uma das árvores, os índios saem correndo, como se tal golpe os tivesse atingido também. Os “civilizados” dão de ombros e derrubam outra árvore. Com os dois troncos, fazem uma cruz para o primeiro culto. Na praia, enquanto o culto  acontecia, os índios saem da floresta e se aproximam da cruz ,  lentamente ; no rosto, uma expressão de dor. Chegam perto da cruz e a tocam , prostrando-se. Um dos invasores diz: “Vejam: até esses animais que parecem homens se curvaram à nossa religião!”. Mas o que os índios viam ali não era a cruz...Eles viam dois Ancestrais feitos prisioneiros, sequestrados de seu território sagrado. Aquelas árvores arrancadas eram um mesmo corpo ( ou significante) com dois sentidos imateriais e ideológicos diferentes, e um dos sentidos queria exterminar o outro. Platão achava que é somente no plano Imaterial e Ideal que cessam os conflitos, pois lá  viveria a “Verdade Pura”. Porém, no campo imaterial também ocorrem violências, explorações e assassinatos ( em nome de “Verdades Puras”). Pierre Clastres chamava “etnocídio” tal violência simbólica. O genocídio ocorre quando um povo mata o corpo e a alma de outro povo .O etnocídio acontece quando um povo mata ou escraviza a alma e a cultura de outro povo  para subjugá-las à sua. Quanto mais um grupo   imagina que somente os outros têm “ideologia”, e que apenas ele fala e age pela tal  “Verdade Pura”, mais etnocida será tal grupo . E será um grande perigo se tal “ideologia purista” se assenhorar do aparato policial do Estado, pois disso poderão resultar genocídios também.


(imagem abaixo: cena do filme/documentário “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi)   
    

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

PARA O MEU TATATATARAVÔ TUPINAMBÁ


Entre os tupinambás que aqui viviam , quando um guerreiro morria era necessário um último ritual. Os tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados. Eles só consentiam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar do poder. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, pois não aceitavam viver sem honra. Para eles, a morte era a última prova, especialmente para os chefes e guerreiros  tidos como corajosos, generosos, leais. Então, quando um guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo. Colocavam junto ao corpo seu arco e flecha, bem como a flauta feita do fêmur oco do inimigo vencido (quanto mais valoroso o guerreiro, mais flautas possuía e tocava para advertir os invasores: só de ouvirem tal som de longe, as pernas dos colonizadores tremiam e   saiam correndo com medo de ficarem sem seus fêmures...).
Ao fim da tarde , após os rituais fúnebres, punham o corpo do guerreiro numa canoa e a empurravam em direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre mar e céu. O azul comum de ambos confirmava suas crenças: o horizonte para eles  era só um limiar, uma passagem. Guardando essa passagem ficava o Grande Ancestral. Se o guerreiro na canoa fora um dissimulado, um traidor que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que barraria o dissimulado na travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato fora honrado , e não um farsante, o Guardião o deixava atravessar para no céu ser eterna estrela.Na manhã seguinte ao ritual, ao raiar do dia, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se achassem uma, choravam envergonhados por terem sido enganados por tal imitação de homem virtuoso. Mas se não achassem tal estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando como estrela viva a protegê-los dos maus.
O Bozo disse que os índios querem “viver como nós”. “Nós”  quem, cara-pálida?








- esta música é cantada nos ritos de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá alimento e proteção ( e que precisa ser cuidada e preservada).





sábado, 15 de dezembro de 2018

máquinas de guerra


A admiração que o povo grego tinha por Sócrates não se devia a discursos ou meras palavras por ele ditas. Muitos até zombavam de frases tipo “Conheça-te a ti mesmo” ou “Só sei que nada sei.” Não era por frases assim que Sócrates era considerado filósofo pelo povo. Àquela época , todo cidadão também era, por dever , soldado ( não no sentido que esta palavra  tem hoje). A democracia tinha muitos inimigos externos. Era preciso defendê-la. Os exércitos dos outros povos quase sempre eram compostos por servos e escravos obrigados a lutar  por medo e subserviência a um  Déspota  que os subjugava e os forçava  a dar a vida por ele( evocando um Deus do qual o Déspota se  dizia  o “eleito”) .  Mas do exército de Atenas faziam parte cidadãos livres lutando pela sobrevivência da democracia, pois apenas homens livres lutam livremente pela democracia e entendem sua necessidade. De um tal exército jamais faria parte alguém que pensasse como o “Capitão-Bozo”.
Como todo grego daquela  época,  Sócrates também era  um cidadão-soldado. Muitos o queriam na retaguarda, protegido, dedicando-se exclusivamente a pensar estratégias para o combate, valendo-se de sua elevada capacidade para teorizar. Mas Sócrates não apenas recusava tal papel de “general das ideias”, como colocava-se à frente da infantaria guiando os mais jovens, sendo o primeiro no enfrentamento contra o inimigo bárbaro. Sócrates venceu inúmeras batalhas    sem aceitar prêmios ou medalhas em troca. Era no campo de batalha que ele provava ser o que dizia ser, filósofo, sem faltar à coragem que o pensar pede para ser também ação , mesmo correndo  riscos. O libertário  Diógenes, o estoico Marco Aurélio, o poeta-filósofo Lucrécio , o democrata Espinosa e até mesmo o insubmisso Nietzsche se reconhecem nesse Sócrates-guerreiro como exemplo para outras batalhas em defesa do pensamento , da arte e da vida, cujas armas são as ideias. Tal Sócrates é muito diferente daquele “depreciador da existência”, o “Sócrates-moralista”, que o monarquista  Platão academizou em seus livros, pondo-o longe da Vida.

("máquina de guerra" cuja arma não mata, liberta).



quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

os achadouros do poeta


No poema “Achadouros”,  Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconderem suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro...
Manoel diz que  poeta é quem busca  achadouros também, mas o tesouro que ele deseja achar é outro : o poeta escava o ordinário até achar  o extraordinário; ele escava o tempo até achar a eternidade; ele escava o “mesmal” até achar a novidade; ele escava a si mesmo até achar a criança que ainda não morreu.  Onde tudo parece estar  acabado e morto, o poeta escava e acha/inventa inauguramentos, minadouros: “O homem somente acha nas coisas aquilo que ele mesmo nelas pôs. O ato de achar se intitula  ciência; o ato de pôr  se chama arte.” (Nietzsche)



quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

- resistência-Cartola

Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A tecnologia diminui as distâncias, sem dúvida. Mas uma coisa é diminuir a distância entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido das coisas, pois tal sentido também é arte, afeto. Esse sentido nem sempre está dado, às vezes precisa ser descoberto ou mesmo inventado. O telescópio diminui a distância entre a lua e nossos olhos, isso é fato. Porém, quando lemos Manoel falando sobre a lua, o poeta não põe a lua perto de nós no espaço, porém ele a põe a tal ponto próxima que, empoemando-nos, experimentamos seu sentido também em nós, no "devir-lunar" que nos tornamos.
Quando Cartola diz que “as rosas não falam”, qual o sentido dessas rosas? O que elas têm que não têm as rosas que pomos em jarros? Um dia estas últimas murcham, como tudo aquilo que a arte não salva; mas nunca morrem as rosas que a canção de Cartola nos põe próximos . Essas rosas que vencem  a morte também nos ensinam a resistência.

( foto roubartilhada de Enrico Rocha . Certa vez, as forças repressoras, forças da tristeza, queriam acabar com uma roda de samba. Elegantemente, mas firme, Cartola resistiu. Viva Cartola!)
        







                                         ( "Peito Vazio"/ Cartola & Elton Medeiros)

domingo, 2 de dezembro de 2018

devir-borboleta


Na Grécia, “travessia” se escrevia assim: “eudaimonia”. Essa palavra também pode ser traduzida por “felicidade” ( chamada por Espinosa de “beatitude”). “Eudaimonia” significa: “estar na companhia de um bom Daimon “. Só o bom Daimon auxilia na travessia.  O Daimon era representado com asas de borboleta, e não com asas de pássaro. Pois os pássaros já nascem com asas, já as asas da borboleta somente nascem após a metamorfose de um ser que rasteja: a lagarta. O caminho que leva da lagarta à borboleta não é reto e nem está sinalizado, tampouco o ensinam cartilhas. Entre a lagarta e a borboleta  há uma metamorfose.  Uma metamorfose nada tem a ver com uma mera transformação. “Trans-formar” significa: “passar de uma realidade menos desenvolvida a uma mais desenvolvida dentro de uma mesma forma”, como a criança que se desenvolve em adulto dentro da forma humana. “Metamorfose”, ao contrário, significa: “conquistar  uma realidade nova que não estava contida na antiga forma”. A metamorfose ensina que a antiga forma nada mais era do que prisão que nos acostumava a ser lagarta. Manoel de Barros chama de “deslimite” a esse devir-borboleta. Deleuze intitula “linha de fuga”. Linha de fuga não é fugir de algo, mas fazer fugir de uma forma uma potência que ali era sufocada. A mais necessária das travessias não se faz sobre caminhos já prontos e asfaltados, mas na conquista de uma nova realidade que não existe antes de ser inventada.
               
“Borboleta é uma cor que avoa”(Manoel de Barros)




                                 (cena do filme "A dupla vida de Veronique", do diretor Kieslowski)




BORBOLETAS 
(Manoel de Barros)

“Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens
e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta -
Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras
do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças
do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidades para a paz do
que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do
ponto de vista de uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul”.

***   ***   ***


“No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no jardim, um canteiro.

No canteiro, uma violeta.

E, sobre ela, o dia inteiro,

a asa de uma borboleta."

(Cecília Meireles) 

           
                                                 
“Parecia que ia morrendo

e revivia.

E girava asas imensas,

maiores do que a noite e o dia.

Rouca, delirante, aguerrida,

pisando  a morte e os maus agouros,

‘olé!’ –  dizia."


( A METAMORFOSE DE UMA BORBOLETA, Cecília

 Meireles)





sábado, 1 de dezembro de 2018

- da necessidade do própolis

Para Espinosa, o ato de conservar se torna mero mortificar quando se separa o produto  do produtor. Não é apenas o produto que deve ser conservado: deve-se conservar, antes de tudo, o produtor que o gerou. Conservando o produtor, conserva-se sua potência de produzir o novo. Seria absurdo querer conservar apenas a mesa que o artesão produziu sem conservar também a potência do artesão de produzir futuras mesas , inclusive mesas diferentes daquelas que ele já fabricou.  Como conservar o produtor? Não limitando sua potência de produzir, sua potência de autogovernar-se. A democracia é a união indissolúvel do produto ao seu produtor. O produtor da democracia não é o Estado, este é apenas um de seus produtos. O produtor da democracia é a sociedade plural e aberta. A democracia não é um produto da sociedade, a democracia  é a própria sociedade enquanto autoprodutora de si. A democracia é, sobretudo, conservação da potência de produzir mais democracia. Quando o Estado se separa da sociedade e passa a servir apenas a um fragmento dela, somente assim nasce o Estado Conservador como mortificador daquela potência produtiva , que passa então a ser ameaçada.
 O formol e o própolis são agentes conservadores. Porém, o formol precisa que esteja morto o que ele conserva, ao passo que o própolis conserva a vida da colmeia para a produção do  mel na imanência dela. Os escravocratas queriam conservar a escravidão, os nazistas queriam conservar os campos de extermínio, os torturadores queriam conservar o aparato que lhes permitia torturar .O que caracteriza os loucos, inclusive, é seu empenho em conservar seu delírio, fechando-se às ideias produtoras de saúde mental.  A conservação só não se torna mortificação quando conserva o produtor e sua potência de produzir vida nova. “Estado Conservador” , como prega o Bozo, é aquele que quer ser o formol de uma sociedade que ele mesmo se incumbirá de mortificar.
                                                                                                                                                                                            
(  Espinosa : vida é pluralidade multicor)  


            



quinta-feira, 29 de novembro de 2018

suburbano


"Suburbano" não é um sub-urbano, um urbano de segunda categoria. O prefixo “sub” não indica um ordenamento hierárquico. Seu sentido original é o mesmo do “sub” presente em “substância”, pois substância, em Espinosa por exemplo,  é o que sustenta toda instância, tanto as instâncias físicas  quanto as simbólicas, as tangíveis e as intangíveis. No Rio, o espaço suburbano não é apenas um espaço físico distante do Centro e da Zona Sul. No território suburbano vive o que sustenta todo espaço urbano: a sociabilidade pautada pelo afeto ao que é  comum. É este o “sub” do suburbano: o afeto, antes mesmo da propriedade e do comércio. O afeto é meio de agenciamentos não totalmente codificáveis pela lógica do planejamento racional urbano. Brasília não podia dar certo: não se pode  colocar no papel um espaço suburbano, pois este nasce da vida espontânea que existe fora do que se pode criar apenas abstratamente no papel.
Na Grécia, “demos” era o nome dado aos subúrbios de Atenas. Curiosamente, “democracia” é, literalmente”, “poder daquilo que em nós é suburbano”, e que é a base da vida urbana. Sem esse “sub”, o urbano se torna apenas coleção de indivíduos reclusos e emparedados em   suas solidões privadas cercadas de câmeras de vigilância  paranoicas e arame farpado nos muros.






terça-feira, 27 de novembro de 2018

os criadores


Ter e afirmar uma perspectiva não é a mesma coisa que emitir mera opinião. Em geral, a troca de opiniões termina mal porque quem opina quer fazer prevalecer seu ego, não importando o assunto tratado. O que caracteriza a opinião é que ela é exclusivista, particularista e excludente do que lhe é diferente. Ter uma perspectiva , ao contrário, é afirmar-se a partir de algo que permite outras perspectivas diferentes. A perspectiva mais potente não é a que simplesmente derrota a outra, mas aquela que leva mais longe a ideia comum que lhe dá existência . No vídeo, duas perspectivas diferentes sobre o que é ser músico, sobre o que é criar e afirmar sua singularidade.Eles não opinam sobre o que é a música, com cada um achando que música é apenas o que ele faz . Eles expressam perspectivas diferentes sobre o que pode a música, fazendo a música viver ainda mais, afetando os que ouvem , dançam e tocam juntos. Cada um potencializa sua singularidade ao afirmar o jazz como comum que os une, mas sem querer homogeneizar em um “amém” sem espaço para discordância . É na imanência de uma ideia comum, de um afeto comum, que se pode discordar sem brigar ou meramente querer destruir o outro. É tocando que cada músico constrói o seu estilo acerca do que é tocar. Eles não afirmam seu ego, eles afirmam a arte que lhes permite ir além do que pode o ego de cada um tomado isoladamente. Apesar de aparentemente disputarem, na verdade eles se agenciam e celebram, em coletivo, a alegria de inventar algo junto. Não os move o ódio egoico recíproco ou a inveja  um pelo outro, mas o afeto potente, em contraponto, pela arte que os faz ser o que eles são: autênticos criadores .



domingo, 25 de novembro de 2018

- o embrião e o poeta

O poeta Manoel de Barros já passava dos 80 anos quando um editor  pediu que ele escrevesse  três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. Afinal, quem chega aos 80 anos parece que tem muito a  falar de si...Depois de algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro: “Memórias da primeira infância”. Meses depois, nova publicação: “Memórias da segunda infância”. Após novo intervalo, outra obra nasceu: “Memórias da terceira infância”. Como as memórias da vida adulta e da velhice não apareciam, Manoel foi indagado a respeito, e assim o poeta  respondeu: “ só tive infância, não tive velhez: na ponta do meu lápis há apenas nascimento”. Para o poeta, a "velhez" não é  uma idade,  a "velhez" se vê em  uma vida, individual ou coletiva, que se perdeu de seu "embrião" enquanto "pura potência"(Deleuze). Embrião não é o que precede a criança e  morre para que a criança  vire adulto e também morra,  até que  o adulto também morra para que venha o velho, para que esse enfim morra pondo fim ao reinventar-se da  vida. O embrião não está num passado remoto morto. Mesmo o imenso e antiquíssimo rio amazonas tem seu embrião lá no alto dos Andes. É graças à vida de sua nascente que o rio também vive e persevera, sem se separar de seu “minadouro”. Em todo minadouro há uma criança que brinca inocentemente: lá onde nasce, o velho amazonas ainda é criança umbilicada à potência que gera.O embrião é a “origem que renova”. O embrião de nossa sociedade não é a Grécia antiga ou a Europa iluminista,  estas são ainda partes do rio da história ,  não são o embrião-fonte enquanto “minadouro” sem o qual não podemos dar novo curso ao rio do tempo, para que este não seque nos atuais desertos de ideias. O embrião-fonte  vive naqueles que, pessoal e coletivamente ,  põem nascimento naquilo que dizem e fazem aqui e agora, resistindo aos que  são pedra e obstáculo para que a vida avance : “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito.” (Manoel de Barros)

-imagem: Deleuze e seu filho Julian:


sábado, 24 de novembro de 2018

a escova do poeta


No poema “Escova”,  Manoel de Barros  diz ter visto, quando criança, dois homens sentados no chão  "escovando osso" . No início, diz o poeta, “achei que eles eram loucos” . Mas ele olhou bem e viu que não podiam ser loucos aqueles homens. Louco ,  o mais perigoso,  é  quem  quer impor aos outros o seu   “mesmal” . O “mesmal” é a doença de quem imagina que seu modo de viver é o único normal. Aqueles homens não podiam ser loucos, pois pareciam ver a novidade onde todos veem o igual. No escovar deles  também havia uma  artesania semelhante à de Espinosa a polir lentes com cuidado:  eles queriam livrar o osso da craca e poeira que nele grudaram .  O poeta descobriu então que aqueles homens eram arqueólogos. Eles queriam ressuscitar no osso o mundo no qual ele foi parte de um esqueleto sob músculo e pele. E mais do que isso: eles desejavam reviver  o sentido que estava no osso , pois nada faz sentido sozinho: o osso foi  parte de  um esqueleto  que era   parte de um ser vivente,  igualmente parte singular de um mundo que ainda vivia , como sentido a descobrir, no osso. E os próprios arqueólogos eram partes de um conhecer  explorador  que ressignificava o sentido daquele osso metamorfoseando-o em signo de um mundo.  Sem esse ressignificar explorador  o conhecimento se torna apenas   adestramento para os significados que o poder nos quer impor. Para eles  o osso era mais do que osso: era também o fragmento de uma história , a nossa história,  que a vida  ainda está a escrever, com ideias e corpos. Enquanto viver em nós aquele impulso inventor de mundos ,  não seremos o epílogo de tal história: a faremos perseverar   como a mais necessária  lição que devemos ensinar   às crianças, para que a vida pensante não se extinga.   Ao ver os arqueólogos ,   o poeta compreendeu qual seria seu destino: escovar as palavras, retirar delas a idiotia, a ignorância, o preconceito, o clichê  e as banalidades que nelas colocaram as mentes obtusas,  de tal maneira que seria também uma “ecologia mental” o que o poeta faria  ao escovar das palavras tais sujeiras e craca. Ao escovar as palavras, o poeta  não acha  “Verdades” , “Ordens” ou “Mandamentos”; ele acha  a poesia como sentido primeiro, não conformista, das coisas : “A poesia está guardada nas palavras, é tudo o que sei” (Manoel de Barros).  





terça-feira, 20 de novembro de 2018

a origem do museu


https://jornalggn.com.br/blog/strelitziaamigobrancarosa1/museu-deriva-de-musas-filhas-da-memoria-e-de-zeus


“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, “musa” significa “conhecimento”. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão,  ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto.
As Musas expressavam a  memória do que não pode ser esquecido. No mito, as Musas são filhas de Zeus , divindade ligada à justiça e à ética, com Mnemósyne, Deusa da Memória.  Zeus uniu-se a Mnemósyne após uma guerra vencida por ele contra as forças da barbárie vinculadas à  ignorância em seus variados aspectos. Dessa união entre a ética e a memória nasceram as Musas, divindades da cultura e do patrimônio. Assim,  todo patrimônio cultural  nasce do matrimônio gerador de uma ética da memória, de uma memória da ética.
A cultura não existe apenas para relembrar algo que se deu no passado e passou. A cultura existe para  fazer lembrar e dar a conhecer que se é possível vencer a barbárie da violência física e simbólica. Foi este acontecimento a origem do museu: a luta contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não pode vencer. Não a ignorância em relação a datas e regras, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a beleza, a natureza, enfim, a vida. É esse acontecimento que dá ao museu o seu sentido. Mesmo que destruam todos seus prédios , não podem destruir sua ideia geradora.
Na singela foto , vemos a bailarina em seu gesto eterno  imortalizado nas tintas. Na menininha, esse gesto renasce, outro. Ele renasce em seu corpo, em seu jeito: a criança interpreta, dançando, o que é dançar , reinventando o dançar à sua maneira. Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa,  nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado: que é possível vencer, com cultura e conhecimento, a barbárie e suas várias faces.


domingo, 18 de novembro de 2018

- o filho do Príncipe

Tempos atrás ganhei de presente um jovem canário. A pessoa que me deu já o tinha batizado de “Príncipe”. De fato,  assim ele era: um “Príncipe”, no porte e no canto. Não gosto de gaiolas, sou contra prender os seres, ainda mais os que têm asas. Mas não queria fazer  desfeita. Aceitei o canário. Com o tempo, adquiri feição por ele, e ele por mim. Bastava eu chegar em casa que ele já começava a cantar. Ele passou a confiar em mim a tal ponto que comia  alpiste em minha mão. O tempo passou, ele envelheceu. Mas ainda havia nele vida. Decidi então que o Príncipe não podia morrer na gaiola sem conhecer o que é voar livre. Levei-o ao Parque do Flamengo, lugar amplo e arborizado. Quando abri a gaiola e o apanhei, pela primeira vez ele bicou minha mão. Parecia que ele adivinhava o que eu queria fazer: libertá-lo de mim. Ele não compreendia que aquele ato também me  era doído , mas nascia do meu amor por ele. Quando o soltei, ele mal conseguiu voar. Creio que ele compreendeu que suas asas estavam atrofiadas. Ele pousou na grama, olhou ao redor, parecendo admirado com o horizonte tão perto. Virei as costas e fui embora. Mal caminhei alguns passos não resisti e  me virei para a “última olhada”. Ele não estava mais lá... Passados mais de 10 anos do fato, sempre que passo por ali inadvertidamente o procuro nos galhos, mesmo com a realística razão sempre a me dizer que eu nunca mais o verei...
 Hoje, porém, sai bem cedo para deambular . Fui sem roteiro prévio, andei muito. De repente me vi no Parque do Flamengo e me sentei nas raízes de uma amendoeira. Estava uma manhã linda. Curiosamente, ouvi um canto estranho vindo dos galhos. Levantei a cabeça e vi um tipo de canário que nunca vi antes: parecia um pardal! Tinha a cor  e o jeito de um pardal, mas cantava como um Príncipe. Seria um mestiço?  Só então me dei conta que havia sentado exatamente a poucos metros de onde  libertei  o Príncipe anos atrás. Tentei segurar a imaginação, mas não consegui, ela foi mais forte, como sempre ela é mais forte em mim do que os objetivos fatos. Retornei mentalmente àquela manhã do passado, e vi o que aconteceu quando fui embora: de um galho, uma pardal observava toda a cena. Vendo o Príncipe em perigo e  perdido no meio da liberdade, ela desceu e  pousou ao lado dele  e o levou consigo para aprender a ser livre .  E assim o Príncipe foi salvo pela pardal livre . Juntos construíram ninho e engendraram uma nova raça.


sábado, 17 de novembro de 2018

assobios


Há uma passagem do livro “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, na  qual Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava amor e amizade  a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém  não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo destino dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar aos carrascos perdão. Zaratustra já se inclinava para prostrar-se  derrotado  quando, de repente, um grito veio de dentro dele e protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”. Livrando-se das seduções  da autopiedade, Zaratustra  expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da vida,  da vida que resiste e avança, que protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de Zaratustra. Em alguns, essa voz se faz alta para acordar quem dorme para a vida; noutros, nos já despertos, ela apenas canta, como em Cartola ou Orfeu, ou sabe se transfigurar em assobio, como em Manoel.



terça-feira, 13 de novembro de 2018

- lançamento de livro

(Amigos, divulgo aqui lançamento amanhã do livro da poeta portuguesa Sandra Santos. Tive o prazer de escrever o Prefácio e também apresentarei amanhã o livro no lançamento. Abraços!)

"aceita que és só morada
de algo que muda e forja
e range e rasga
aceita que és miríade
de algo que dói e cala
e rumoreja e abala.
aceita que és só
um pedaço recrudescendo
num todo de tudo".

(Sandra Santos)


sábado, 10 de novembro de 2018

procustos, ontem e hoje


Sim, o “coiso” é mito, quem assim o chama tem razão. O “coiso”  lembra muito um personagem mitológico: “Procusto”,  conhecido por ser intolerante e rígido. Certa vez, contudo, Procusto propagandeou que havia mudado e iria provar. Ele veio para perto de uma estrada por onde passava o povo cansado voltando do trabalho. Procusto construiu uma cama e a oferecia ao povo como prova de sua “ bondade” e apreço pelos outros. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Às vezes, a cama parecia pequena: a cabeça e as pernas da pessoa sobravam. Procusto pegava então um machado e as decepava. Noutras vezes, a cama se mostrava de tamanho demasiado. Procusto amarrava os membros da pessoa com correntes e os esticava violentamente para amoldar à força, acabando por desmembrar quem acreditou e se deitou confiando em Procusto . Enfim, ninguém sobrevivia àquela cama: ela prometia ser um amparo, mas era mesmo uma sentença de morte.  Quando o povo reclamava, Procusto se limitava a tirar do bolso uma régua tão inflexível quanto sua mente, passando então a medir com rigidez militar cada lado da cama, para depois recriminar as pessoas, acusando: “Do que vocês estão reclamando? A régua não mente e nem tem Ideologias: ela mostra a Verdade Objetiva. Cada lado da cama é igual ao outro, sem divergência. A cama é homogênea, perfeita! A imperfeição está em vocês que são diferentes, heterogêneos. Amoldem-se, mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade! ”.



terça-feira, 6 de novembro de 2018

plotino, narciso, ulisses

O tempo tudo tira,
e tudo dá.
Giordano Bruno

Segundo Plotino, a alma humana pode ser compreendida segundo dois mitos: o de Narciso e o de Ulisses.Tais mitos são símbolos da condição humana, independentemente da época histórica.
Narciso representa a alma que foge de si mesma e se apaixona pelas imagens corpóreas que lhe estão fora. Fisga-o a imagem-aparência dos outros corpos a agir sobre o seu. Narciso ama o que vê, e pensa que tudo o que existe é o que vê. Porém,  ele vê somente  uma volúvel existência carregada pela correnteza inconstante da superfície sem espessura de um lago turvo, que nada mais é do que a projeção de sua imaginação ensimesmada.
Narciso quer parar o imparável : apega-se ao que não pode ser pego, então sofre por amar um espectro. Na verdade ele desconhece que ama apenas uma projeção de si mesmo fora de si mesmo: ele procura no fora o dentro do qual se perdeu. Narciso é como o molde que molda a areia,mas que se aliena no que moldou, passando a  sofrer com o vento a desfazer movediça certeza. 
 Narciso é o extremo oposto, o avesso , da divisa do Oráculo de Delfos: ele desconhece a si mesmo e , por isso, procura a si mesmo onde  um si não pode haver. Narciso simboliza a saída da alma de si mesma e a sua perda fora de si mesma: seus olhos não são janelas que dão para dentro, são janelas através das quais a alma salta para fora e não mais retorna, como o suicida em seu desespero.
Ulisses, ao contrário, é o personagem do regresso, do retorno. Enquanto Narciso é perda na contemplação estéril, egoica,   Ulisses é ação laboriosa e paciente para vencer os obstáculos e barreiras que se interpõem entre ele e sua casa, seu lar.
Ulisses quer retornar, porém perdera o mapa , seu navio queimou, os companheiros o abandonaram, enquanto  nuvens sombrias cobrem as estrelas que poderiam orientá-lo. Faltam-lhe os meios para o retorno, porém não lhe faltam a memória e o desejo de ao início retornar.
Até à morte Ulisses foi, pois ele esteve no Hades, como Orfeu também esteve. Todavia, enquanto Orfeu foi ao Inferno buscar o amor que vivera , para assim fazê-lo viver novamente, Ulisses foi parar no "Mundo Subterrâneo" perdido por um amor infernal, que no Hades o fez refém como a um morto.
Porém , no Hades Ulisses  encontrou o que não esperava: lá estava  sua mãe, que morrera sem Ulisses o saber. Embora ela fosse sombra sem memória, do gerado a geradora  não esqueceu. Assim,  em meio à morte ele encontrou a sombra da vida.  Embora sombra,  tal encontro despertou em Ulisses a força para querer rever, e viver,  a vida e sua luz, fora daquele mundo de coisas mortas.
Ulisses é o retorno ao caminho já feito que agora parece novo, pois o caminhante já não é o mesmo. Ulisses é a alma em busca de si mesma, do seu natal, e que sabe que o seu si mesma está onde se encontra sua origem: esta não é só o fim, ela é também invenção de  meios.
O retorno da alma a si mesma não é como o cogito cartesiano, que se compraz apenas com pensamentos racionais interiores ao eu; o autêntico retorno é desejo de achar-se fora do eu, porém perto do pensamento que não é egoico. A origem não é uma ideia inata ao eu, ela é o natal que gerou o eu para ser mais do que eu. Chegando ao seu natal, o eu pode até mesmo libertar-se de si mesmo, e ser ninguém ou outro : "Perdoai, mas eu preciso ser Outros"(Manoel de Barros).
Ulisses retorna ao preço de provas éticas pelas quais é testado. Isso acontecia para o destino saber se era apenas em palavras que  Ulisses retornava, ou se havia autenticidade em seu retorno, em ações também.
 A última prova de Ulisses foi a “dobra do arco”. Ele tinha que provar força para dobrar seu instrumento de guerra e autonomia, urgia  provar que era ele mesmo, que era autêntico, e não uma farsa, um engodo, para os outros e para si mesmo.
Em latim, força da alma se chama “vis”, de tal expressão nasceu “virtude”. “Vis” era o nome que se dava à força potencial que nascia da corda do arco quando tensionada, para assim lançar a flecha longe. 
A alma virtuosa é corda (in)tensa que lança longe as palavras e ações nascidas de sua autenticidade,  de tal modo que tais palavras e ações sobrevivem àquele que as fez e disse.
São as virtudes a força que reconduz a alma a si mesma. Virtude não é apenas palavra, é ação que dobra as impossibilidades pela força de querer mais do que o possível. É a ética, enquanto campo das virtudes, que faz a alma reentrar em sua pátria, para ali ser soberana.
Narciso achou-se em um lago; Ulisses buscou-se na travessia de um oceano. Narciso submergiu ao fundo , morrendo; Ulisses pôs-se ao horizonte, para viver.