domingo, 30 de junho de 2019

manoel-intercessor




(trecho do livro)
“Agenciamento” tem por raiz, raiz rizomática, o termo “agente”. Um agente é aquele que desencadeia, que promove, que suscita. Um agente não existe fora de um agenciamento.  O agenciamento não é tão somente os polos de uma relação: ele implica os polos e mais o meio, o encontro, o “entre”. O agente de um agenciamento nunca é um sujeito que se opõe a um objeto, tampouco um objeto que existe em si, “objetivamente”, que só poderia ser descrito por um sujeito sem corpo. Tudo pode ser agente para a produção de um agenciamento, inclusive um objeto, desde que nele achemos elementos não totalmente objetificados, “pré-coisas”.
 O poeta é o agente que me inventa filósofo, nesse agenciamento que rascunho. Ele me inventa enquanto escrevo sobre ele, na pretensão de achar filosofia no poeta e, quem sabe, poesia na filosofia, enquanto ele “me escreve”. Manoel não professa credos ou doutrinas, ele nos ensina uma Didática da invenção[1]. Manoel é um menino levado da breca, e nos convida a ser também. Ele é um menino não em idade, mas em invenção:  como Exercícios de ser criança, um devir-criança como incorporação. E é assim que esboçamos, com Manoel e Deleuze, uma desfilosofia: no poeta que me inventa filósofo, poeticamente; no filósofo que busca ler o poeta, filosoficamente.


[1] SOUZA, E.L.L. de. “Manoel de Barros: uma didática da invenção”. In: Revista Brasileiros. São Paulo,nº 89, DEZ/2014, pp. 108-110.

sábado, 29 de junho de 2019

rizomas: deleuze, guattari e manoel


Segundo Deleuze & Guattari,  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas. A  raiz  arborescente  fica    presa em um ponto , em um lugar ; já  a rizomática tece  linhas de fuga , conexões, para assim se horizontar .  É comum ver   plantas arborescentes aprisionadas por cercas,  mas  as rizomáticas sabem escalar e transpõem todo  muro que as queira cercar.
O autoritarismo    finca suas raízes no Estado  e se arborifica  como poder centralizado  , contudo  a potência democrática é  construção de rizomas em espaços abertos e  a-centrados. Quando  o conhecimento vira objeto de comércio se torna    “Árvore do Conhecimento”  plantada no quintal de  poucos,   mas o educar e o educar-se é      fazer-se  rizoma de um jardim público sem dono ou proprietário  . Os conservadores exaltam a  “árvore genealógica”  plantada no passado , mas  a vida é rizoma que parteja raízes  novas onde elas  pareciam já ter secado : “O andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina o rizomático  Manoel de Barros.



quarta-feira, 26 de junho de 2019

es-claro


Se em uma prova de ciências alguém afirma que “a terra é plana” e leva zero , ele não pode contestar a nota alegando que o professor está cerceando o seu direito à “liberdade de ter uma opinião”. Afirmar que “a terra é plana” não é uma opinião, e sim uma ignorância em relação ao conhecimento adequado acerca da terra. Se alguém fala ou escreve algo que discrimina uma pessoa ou uma minoria e é processado por isso, esse alguém não pode dizer que o processo está limitando o seu direito à “liberdade de ter uma opinião”, pois emitir um preconceito ou injúria não é ter uma opinião, e sim mostrar-se um criminoso. O direito a ter e proferir livre opinião é a base ética, política e jurídica da democracia. Mas há um aspecto desse direito que nem sempre é esclarecido. E esclarecer é prática pedagógica que desfaz obscurantismos ( “es-clarecer” vem de “es-claro”: “tornar mais claro” ). O direito à liberdade de opinião é universal quanto à forma e não quanto ao conteúdo, pois há conteúdos que alguém diz ou escreve que não podem ser universalizáveis, já que se revelam erros, preconceitos, intolerâncias ou mesmo crime.
Para Espinosa, por exemplo, pensar não é apenas um direito formal à opinião : pensar também é o que expressamos no conteúdo do que escrevemos ou falamos. O direito à livre expressão da opinião existe em relação a algo que o deve preceder: que é a atividade de pensar. E pensar é a união de uma forma com um conteúdo, pensar é a união da linguagem com as ideias. As ideias são o conteúdo daquele que pensa e age. O pensar é o antídoto para as ignorâncias, sobretudo para aquelas que se mascaram de opinião.
O fascismo é uma ignorância que surge no início como opinião, travestindo-se como direito à liberdade de opinião. O perigo é quando os assim ignorantes tomam o poder do Estado, sobretudo se for pelo voto. Pois o voto que os elegeu apenas na forma é voto, já que seu conteúdo é o ódio à democracia e, mais profundamente, ódio ao pensar , ódio às ideias. O fascismo se vale dos mecanismos formais da democracia , como a eleição e o voto, para logo em seguida mostrar o que ele é em termos de conteúdo: ódio à democracia, ausência de ideias. O fascismo teme as ideias porque é delas que vem a força que lhe resiste e denuncia . E a maneira que o fascismo tem de se defender não é argumentando pautado em ideias, mas empregando a única força que ele conhece: a força da ameaça, do amordaçamento, enfim, a força da polícia ( incluindo as polícias do pensamento).




domingo, 23 de junho de 2019

a servidão voluntária


A servidão involuntária é aquela na qual um tirano impõe à força sua vontade a alguém ou a um povo , cuja liberdade é assim roubada. Acontece algo diferente com a servidão voluntária: ela não é a liberdade roubada, ela é a liberdade alienada . A servidão voluntária tem várias formas e maneiras de acontecer. Ela ocorre quando alguém se submete a um tirano por livre vontade , porém com a expectativa de também poder ser tirano e exercer poder autoritário sobre a vida dos outros. Muitas coisas podem servir de tirano para os que têm pendão para a servidão voluntária, mas nada faz hoje tantos servos quanto o cassino financeiro e seus juros, o protofascismo e a ignorância digitalizada. Há ainda os que se dizem “servos de Deus” somente para ter poder político e exercer tirania sobre os outros. O mecanismo psicológico e político da servidão voluntária não é querer ser servo , e sim tirano. Todo tirano imagina que ser forte é encontrar alguém mais servil que se ponha de joelho diante de sua opinião, credo ou farda. A tirania é , no fundo, uma fraqueza de ideias, de argumentos, enfim, uma fraqueza de vida que muitas vezes se esconde atrás da violência e da intolerância. Desconfiem sempre daqueles que dizem “sou servo da Lei” ou “ sou servo da Verdade” , pois o que estes querem na realidade é ser tiranos de toga ou de dogmas. Além disso , dizer-se servo da Lei ou da Verdade não significa a mesma coisa que ter amor à Justiça ou às ideias, pois ninguém ama o que liberta  movido por servidão. Por isso Espinosa ensinava: amar autenticamente a liberdade , sem aliená-la, é o que potencializa a vida contra toda forma de servidão e tirania.



sexta-feira, 21 de junho de 2019

a descida de Perséfone


No mito, Perséfone é filha de Zeus com Deméter.  Em latim, Deméter é “Ceres”, de onde vem “cereal”. Deméter simboliza a fertilidade da terra enquanto esta produz alimentos para a vida do corpo. Já sua filha Perséfone é aquela que representa a terra enquanto esta produz flores, que são alimentos que nutrem  os olhos , o olfato, o tato e , por intermédio destes, a  própria alma. Hades , o deus da escuridão subterrânea , apaixonou-se por Perséfone. Ele queria  enfeitar sua noite eterna com flores. Mas na região onde reina o Hades nada cresce: não há flores e cores, tampouco vida. Raptada e forçada a ficar lá embaixo, Perséfone passou a vestir-se de negro e só fazia nascer flores  féretras. Com a ausência das flores, a própria Deméter secou e se tornou estéril: não havia mais  flores e também frutos e cereais. Sentia-se fome de pão e beleza, de pão e poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais. Zeus interveio e houve então um acordo: Perséfone ficaria  parte do ano totalmente lá embaixo, e parte do ano ela ficaria aqui em cima. Hoje, começo do inverno, Perséfone desceu. Precisaremos de força para atravessar esse tempo frio e sombrio, que coincide com o inverno obscurantista  desses fascistas  que querem  roubar também de nós tudo o que é vida e floresce. O retorno de Perséfone   coincide com o começo da primavera, quando então Perséfone se despe do negro, emerge das trevas e , em festa, floresce novamente cobrindo de poesia a terra.



as bruxas e o bruxo































- o poder teológico-político


O que se segue não tem natureza religiosa, faço apenas uma análise histórico-política ao modo de Espinosa. Ontem, o bozo engrossou três coros no evento teológico-político “Marcha para Jesus”: o de que ele seria o “Messias”, isto é, o próprio “Salvador” eleito por Deus ; o outro coro engrossado pelo bozo  é o de que o Brasil não tem uma “Senhora” ( um ataque ao catolicismo e sua padroeira, a “Nossa Senhora Aparecida”)  , para logo depois gritar em coro  o nome de Jesus. Curiosamente, o bozo não falou o nome “Jesus” quando esteve em Israel, usando apenas o nome “Deus” como se fosse o mesmo, embora aquele povo não aceite o nome de Jesus como Deus. A corrente teológico-política do bozo não aceita imagens, inclusive  a de Cristo. Mas a imagem de Cristo simboliza, também, a sua face humana ( o nome “Jesus” realça a vinculação judia, enquanto a designação “Cristo” , que é grega, tem uma abrangência maior).  Ao negar essa face humana , abre-se  o caminho teológico-político para as desumanidades apregoadas em nome de Deus. O islamismo tem Meca; o catolicismo , Roma. As diversas igrejas protestantes com matiz nacional referenciam cada uma a origem própria.  E o que tem o poder teológico-político de bozo? Qual é o  lugar histórico de culto que alimenta sua identidade? Qual é sua Meca? Qual sua Roma? O messias-bozo  fez dos EUA a sua Meca-Roma. De Roma os EUA têm a força bélica, de Meca a submissão a um único credo,  que nos EUA é o Capital.  Como prova de seu servilismo teológico-político, o messias-bozo peregrinou aos EUA para lá se pôr de joelhos. E é o mesmo o que ele quer para o Brasil.



quinta-feira, 20 de junho de 2019

linhas de fuga


“Linha de fuga" é uma ideia de Deleuze & Guattari. Linha de fuga não é fugir de algo por medo, mas fazer fugir algo de alguma coisa que se tornou prisão, para assim criar algo novo. Manoel de Barros dizia que "a poesia está guardada nas palavras": criar poesia é fazer fugir o sentido das palavras que se tornaram “acostumadas”, “mesmais”, “sem embrião”. O poder autoritário quer sempre cercar, prender, adestrar. Linha de fuga é prática ética , política e educacional de desabrir, fazer fluir, desterritorializar. A borboleta é a linha de fuga da lagarta, a justiça é a linha de fuga da lei, o pensar é a linha de fuga da mente, a arte é a linha de fuga da vida, o nós é a linha de fuga do eu.




( a frase do Deleuze colocada sobre a foto não se refere apenas ao aprender enquanto fase da vida pela qual todo professor passou quando era ainda aluno. Esse "antes" ao qual ele se refere me lembra um verso do Manoel: "A poesia está no antesmente verbal". É enquanto ensina, e para poder ter algo a ensinar, que o professor vai até ao antesmente, e lá encontra, ainda vivos dentro dele, aqueles com os quais aprendeu: é esse aprender a principal lição que o professor ensina)

terça-feira, 18 de junho de 2019

fios de ariadne


Na mitologia , o fio de Ariadne era uma linha segura  por aqueles que desejavam ir longe, muito longe, pois o fio saia de um novelo que não deixava  ninguém se perder. “Ariadne” significa, em grego, “aranha”. Assim como na aranha, é  do ventre de Ariadne que nasce seu  fio libertário e artista.  Ariadne também é o símbolo inesgotável da vida  : ventre absoluto, o fio que sai dela é para fazer linhas de fuga. Alguns bordam quadros com tal fio, outros compõem música; há ainda os que fazem versos com esse fio, enquanto outros  tecem filosofias. O fio se desprende de um novelo. “Novelo” significa: “novo elo”. O ventre de Ariadne é a pura potência para gerar novos elos . Às vezes, porém,  o fio de Ariadne precisa ser descoberto. Certa vez em um hospital psiquiátrico um interno se despiu do uniforme de louco que lhe colocaram, desfez a forma das roupas com significado pronto e acostumado, até achar de novo o fio tal como ele era antes de  um uniforme com  ele ser fabricado. O fio assim encontrado se metamorfoseou em sentido novo a ser bordado: e foi assim que Arthur Bispo do Rosário religou sua vida ao novelo criativo da humanidade inteira,  para assim bordar paisagens, personagens e recriar seu mundo.
O poder autoritário pode até tentar cortar o fio, ou com ele fabricar uniformes para tudo vestir homogêneo. Mas enquanto houver  o existir não conformista,   o  fio cortado pode ainda  ser achado e de novo puxado para com ele se bordar   linhas de fuga. Quando a gente dá as mãos para defender a  democracia, a pluralidade e a liberdade , nós mesmos  nos tornamos elos de um fio de Ariadne puxado do novelo da vida.

O fio de Ariadne se opõe ao fio das Moiras, as divindades que teciam o destino. Embora não fosse de ferro, o fio das Moiras era férreo: ninguém podia escapar do destino que elas traçavam, às vezes parecendo que elas teciam "camisas de força". O fio de Ariadne, ao contrário, nascia de um novelo inesgotável e servia para se reinventar destinos.






domingo, 16 de junho de 2019

50

Quando somos crianças , as coisas que fazemos não duram apenas o tempo em que aconteceram, nunca de fato o que se fez termina. Pois à medida em que avança o tempo, retorna à nossa vida o acontecido como parte de uma memória  que vai cada vez crescendo, parecendo muitas vezes mais real e viva do que a realidade na qual fomos  criança.
Quando o homem tem 60 ou 70 anos, por exemplo, o que ele fez ao 8 ainda está a fazer-se dentro dele. Porém, o que ele faz nos mesmos 60 ou 70 pode não mais voltar a reviver pela memória: talvez não haja mais um outro ele mesmo, num futuro próximo,  para rever a si mesmo na continuidade de um processo aberto, sempre a refazer-se. Além disso, quando evocamos essa infância revivida, nunca é só a memória que a traz de volta, pois também desse reviver a imaginação participa.
Assim, o que se faz aos 7 ou 8 anos o fazemos com nossa idade toda, que nunca sabemos ao certo qual será ela toda, de tal modo que aquilo que fazemos no começo traz essa força do que sempre retorna como na primeira vez que em que fora feito e vivido.
Na adolescência e juventude também tudo o que fazemos traz nossa vida toda ainda por  viver, porém   em rascunho mais fraco do que na infância. Isso se deve ao fato de que já não somos mais todo brincadeira, nossa mente já não é mais criadora do lúdico: o futuro se torna um plano cronometrado, mensurado, como se o tempo por vir apenas existisse para realizar nossos objetivos planos.
Quando se chega aos 50 anos, contudo, parece que aquilo que fazemos não traz mais a virtualidade de nossa vida inteira por vir. O futuro se  torna horizonte reduzido ao ato, ao aqui e agora. Isso pode levar lentamente ao desespero , como perda do futuro, tempo do desejo.  O maior desespero pode advir da não aceitação do tempo, trazendo uma fixação obsessiva em manter-se  como na juventude, mas apenas por fora, na aparência.
Mas o começo dessa idade pode também inaugurar uma atitude nova, pois é nela, e não aos 30 ou 40, que pode começar a ganhar força  essa percepção da virtualidade do todo da vida, todo este que nunca se esgota nos 50, ou 60, ou 70...
É por volta dos 50 que pode nascer essa percepção não totalmente racional ou pragmática , uma percepção filosófica-poética , desse todo da vida na infância começado, e cujo fim deve ser vivido como se o viveu em seu começou: na inocência .
Quem envelhece com essa compreensão talvez a “velhez” não o pegue: “Quando crescer vou virar criança” ( Manoel de Barros).



sábado, 15 de junho de 2019

justiça não é mera igualdade formal


É comum esse governo e seus simpatizantes dizerem que  são contra as cotas para minorias e a criminalização da homofobia . Eles alegam que se posicionam assim não por preconceito, mas  porque querem um “tratamento igual”,  sem distinção, e que defender as cotas e leis para proteção de minorias seria não tratar com “igualdade” todos os brasileiros. Mas essa afirmação revela  ou uma profunda ignorância acerca do que é a justiça , ou então  um preconceito dissimulado mesmo. Há dois tipos de justiça: a comutativa e a distributiva. A justiça comutativa vale para as relações nascidas de contratos entre os indivíduos. Por exemplo, se  estou alugando uma casa, é justo que eu receba em troca ( “comutar” significa “trocar” ) um valor em dinheiro que seja justo. A justiça comutativa vale para a relação entre coisas: é uma igualdade formal.  Mas existe ainda a justiça distributiva . Ela está na base, por exemplo, do critério para o pagamento de imposto de renda. Se  pobres e ricos pagassem a mesma coisa, tal tratamento “igual” do ponto de vista formal seria uma injustiça quanto ao aspecto concreto ou social. Ricos e pobres são iguais enquanto seres humanos, porém são desiguais quanto à posse de propriedades , renda e oportunidades. A justiça distributiva trata os desiguais com desigualdade para realizar uma igualdade que não é aritmética ( tipo  2 = 2) , mas proporcional. Esse tipo de justiça também é chamada  de “justiça  corretiva”: ela “corrige”  as falhas sociais da justiça comutativa . O Ministério da Justiça existe para  regular a justiça comutativa e , sobretudo, realizar a justiça distributiva.   O Srº Moro , porém, é oriundo da justiça comutativa, ele  nada entende de justiça distributiva. Já o Srº Guedes só pensa no tal  1 trilhão... Ele quer comutar a poupança pública para a privada: o povo entra com o tal 1 trilhão e os bancos entram com nada, e é nada o que o povo receberá em troca de sua vida, trabalho e tempo. Apenas formalmente  os brasileiros são iguais.  Pois  na realidade concreta o que existe é o capitalista e o trabalhador, o latifundiário e o índio, os que têm em excesso e os que nada ou pouco têm. A educação, a saúde , a previdência,  etc, são meios para a realização da justiça distributiva. Quando se quer reduzir tudo à mera justiça comutativa, na verdade se está  coisificando o ser humano e reduzindo tudo a mero lucro a serviço de um comércio da pior espécie.



quarta-feira, 12 de junho de 2019

bestialidades...

 Segundo Deleuze, “besteira” vem de “besta”. A besta não é um animal determinado, mas um “fundo indeterminado” que vive escondido em todo animal. Nos animais, porém, o instinto os dota   de certo comportamento reconhecível ,  impedindo que esse fundo indeterminado da besta tome o animal. O leão é o leão, a hiena é a hiena, o lobo é o lobo. A ferocidade desses animais não é maldade ou crueldade, mas ações que se explicam pelo instinto, pela natureza. Nenhum desses animais se comporta como uma besta indeterminada, pois seus comportamentos são explicáveis por sua natureza. O homem é o único ser no qual o instinto não tem força para protegê-lo desse fundo indeterminado,  tampouco pode a  inteligência , sozinha,  livrar o homem  da besta que vive nele. As armas, por exemplo, requerem inteligência técnica, elas são  ciências aplicadas ( física, mecânica, balística...)   a serviço da besta.  Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a besteira. Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras, somente os adultos podem dizer besteiras que tanto doem ouvir. Besteiras podem até virar slogans eleitorais, inclusive com conotações teológico-políticas totalitárias ,  e assim   elegerem  uma besta. Quando a besta se apodera do Estado, nasce  o Leviatã Fascista que faz apologia da tortura e de torturadores










http://midianinja.org/news/bolsonaro-exonera-toda-equipe-de-combate-a-tortura-e-e-denunciado-na-onu/

o dedo do sonso


Manoel de Barros se formou em Direito. Seu primeiro cliente foi um feirante acusado de desonestidade: ele colocava o dedo sorrateiramente na balança para enganar o cliente e tirar vantagem. Alguns suspeitavam que o tal feirante não era muito honesto, mas faltava o flagrante.  Até que uma senhora viu o fato e resolveu desmascarar o sonso. Era a palavra dela contra a dele. Na primeira vez em que esteve com o feirante,  Manoel perguntou: “É verdade o que ela diz? Você burlava colocando o dedo onde não devia?” Imaginando que o poeta tinha um preço,  o homem respondeu: “Sim, eu colocava o dedo, ninguém via... Que importância tem isso? Você vai me defender , não vai? Eu pago bem...”. Manoel pediu licença e foi falar com o chefe do escritório: “entrego o cargo, não vou defender esse homem. A invenção de que gosto é outra...”. Essa balança burlada por um dissimulado me lembrou outra: a balança da justiça, manipulada pelo dedo do Moro. 









domingo, 9 de junho de 2019

o passarinho à toa


Eu tinha uns 5 anos quando aprendi a ler,  foi  uma das maiores alegrias que senti na vida. Havia uma vizinha professora que alfabetizava na casa dela. Lembro-me que no  quintal dela havia um viveiro com vários  passarinhos, e o canto plural deles também era  lição  que eu  gostava de ouvir. A professora   me ensinou  primeiro o nome de cada letra. Depois ensinou que cada letra podia, ao se encontrar com outra, formar um novo ser: a sílaba. Então eu aprendia  que “b” com “a” formava “ba”; e que “l” com “a” formava “la”. Mas quando eu via a palavra “bala” escrita no papel, na verdade não a via, pois eu não conseguia ver o nome : via apenas as letras isoladas ou então as silabas “ba” e “la”.  Embora a palavra estivesse escrita no papel, ela ainda não estava escrita dentro de mim. Eu via apenas fragmentos, ou a união destes, mas não via o todo.
Houve uma noite em que eu  folheava  um gibi na cama antes de dormir.  Eu ia das letras às sílabas, e mais longe não ia. De repente, sozinho,  saltei um abismo: diante dos meus olhos eu vi, enfim, mais do que o “ba” e o “la”. Eu vi a palavra “bala” escrita no gibi. A palavra  sempre estivera lá, fora de mim, escrita no papel. Mas agora ela estava também em mim, como corpo de uma ideia. A palavra não pertencia apenas  ao papel agora , ela pertencia ao meu pensamento  , como instrumento de exploração do mundo. Depois da primeira palavra, passei para outra, e depois outra, e outra...Eu estava com tanta alegria que corri até minha mãe para mostrar que aprendi a ler. Vi nos seus olhos que ela não entendeu tanta alegria. Aliás, nem eu entendia ( só compreendi essa alegria quando estudei filosofia e aprendi o que era a alegria para Espinosa). Fiquei com medo de ir dormir e esquecer o mundo que descobri, mundo este que estava dentro e fora de mim. Acabei adormecendo com o gibi na mão... Sonhei que a Mônica e o Cascão, os personagens do gibi, eram passarinhos que cantavam na minha mão. Assim que acordei reabri o gibi. E com alegria percebi que eu ainda conseguia, lendo, ouvir o que a Mônica e o Cascão diziam para mim. E é essa mesma alegria que reencontro quando leio versos como este de  Manoel: “Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar”.



sexta-feira, 7 de junho de 2019

manoel e a desfilosofia




(trecho do livro)


A poesia de  Manoel de Barros enseja uma original “desfilosofia”, isto é, um pensar que se faz não apenas com conceitos. Uma desfilosofia emerge  no ponto onde poesia e filosofia se encontram, entram em conversação. Manoel de Barros ensina: “Eu escrevo com o corpo /Poesia não é para compreender, mas para incorporar”[1]. É preciso incorporar Manoel de Barros: lê-lo é empoemar-se.  Empoemando a palavra, Manoel nos empoema: há nesse processo uma singular “clínica”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar, desde que “abra o roupão para o poeta e o deixe sê-la”[2].Empoemar é mais que conjugação de verbos: é conjugação da palavra com a vida, para “inventar comportamentos”[3]. Manoel empoema não apenas as palavras, pois de nada vale empoemá-las se não for para nos empoemar também.Manoel empoema as palavras simples, reinventa para elas uma nova combinatória: “aproveito do povo sintaxes tortas”[4], de tal modo que as palavras do poeta “se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe” [5].  O poeta empoema as palavras mais comuns, as escova[6], para que elas sejam, eis o “milagre estético”[7], minadouro [8]de novos sentidos.
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[1]Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 (segunda edição).  p. 212.
[2] Livro sobre nada, p. 70.                                                                                                                                               
[3] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.
[4]  “Pedras aprendem silêncio nele”, Gramática expositiva do chão, p. 334.
[5] Livro: Menino do Mato, Primeira Parte, II.
[6] Cf. poema “Escova”.
[7] “Biografia do orvalho”, Retrato do artista quando coisa, p. 81.
[8] Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010(Org. Adalberto Müller), p. 145.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

métis


Quando Zeus, o deus da ética e da justiça, venceu a tirania dos Ciclopes, percebeu que a luta contra a tirania ainda não havia terminado. E se houvesse um tirano escondido no lugar em que poucos procuram? Para aquele que vai exercer algum tipo de poder sobre os outros, é nesse lugar que ele deve olhar primeiro, para ver se ali se esconde um usurpador, um tirano. Então, Zeus resolve desposar Métis para que esta o auxiliasse nessa procura, pois ela é a deusa que vai até esse lugar onde os tiranos  ficam às vezes  escondidos: se ela os encontra , os expulsa. De Métis nasceu a palavra “meticuloso”. Métis é a deusa da Prudência. Ser prudente nada tem a ver com ser moderado ou medroso. Ser prudente significa ser cuidadoso, sobretudo na hora de ser ousado. Não por acaso, Espinosa fez da prudência a potência de sua Ética, pois a prudência não é uma renúncia a agir ; ao contrário, ela é a virtude dos que agem com firmeza e força:  força da justiça e da coragem, não a força da mera violência física . Pois  “virtude”  vem de “virtu”: “força” ou “potência”. Após a lua de mel, Zeus pede a Métis que se transforme em uma árvore ( ela tinha o dom de metamorfoses). Métis atendeu. Depois, Zeus pede que ela vire uma folha, Métis em uma folha se transformou. “Tenho um último pedido”, disse Zeus, “que você vire uma gota de orvalho”. Quando Métis virou tal gotícula, como uma “vacina”, Zeus rapidamente a sorveu:  ao entrar, a prudência  foi matando todos os germes de tirania que estavam dentro de Zeus, e que ele desconhecia. Ele  já era o deus da justiça, e ao trazer a prudência para dentro de si fez nascer nova virtude ético-política: a jurisprudência. Zeus não sabia, porém, que Métis ficou grávida dele. O fruto do amor da ética com a prudência nasceu no interior de Zeus. Depois foi para o coração de Zeus, porém subiu mais e ficou na cabeça do deus, fazendo  do pensar o seu ninho. Mas tal fruto quis sair também para o mundo: a cabeça de Zeus então se abriu, como se abre toda cabeça que pensa, e em meio a uma luz muito intensa saiu pronta ,e armada de ideias ,Atena, a deusa da sabedoria. A sabedoria herdou de seu pai a defesa  da justiça e  da ética , e puxou à mãe ao ser antídoto contra as tiranias.

“Lutar pela liberdade é realmente fazer a jurisprudência, o que importa é a jurisprudência”.(Deleuze)





domingo, 2 de junho de 2019

os porcos...


O filósofo Leibniz dizia que se a gente prender  uma semente na mão,  com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore nascerão incontáveis frutos : dentro de cada um,  uma nova semente. Se a gente plantar essas novas sementes delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis frutos, cada um grávido de novas sementes. Naquela primeira semente havia uma floresta inteira, uma floresta-potência, assim como, em uma criança, está a humanidade  inteira. Pois humanidade não é um número estatístico que se conta, mas uma ideia que se cultiva com educação, liberdade e democracia. Para a floresta florescer, é preciso um território, exercício de cuidado e um espaço aberto para a multiplicidade se expandir. O que vale para a semente vale igualmente para uma ideia quando é fértil e viva, e que é a razão de ser da educação: dentro da singular ideia  há outras ideias, infinitas ideias, pois toda ideia autêntica é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa. Quando ela entra em nós e  a gente a compreende, a gente se torna , ao mesmo tempo, a terra onde ela se desabre e a árvore que nasce dela, bem como os frutos   com novas sementes-ideias. Quem descobre tal floresta em si  não aceita viver limitado por cercas. Pensar é aflorar em nós multiplicidades, tornando-se uma. Quem compreende uma ideia, por mais simples que seja, não cabe mais em si: “outra pessoa desabre”(Manoel de Barros).O poder dogmático teme esse processo. Ele teme florestas. Ele quer ter a semente na mão, “manipulada” pelo seu poder. Quando ele a planta, o faz de maneira artificial. E sua semente se torna  tão fraca que, para se manter viva, precisa de veneno que mate as outras vidas diferentes dela . Então, vemos o resultado: o poder derruba as heterogêneas e múltiplas   florestas já nascidas  e cobre a terra com uma planta homogênea, geralmente soja, uma planta "útil"  e passivamente dócil, que vira ou óleo para fazer as engrenagens do Capital girar ou farelo que só aos porcos engorda.