quarta-feira, 30 de março de 2022

a filosofia como medicina da alma: homeopatia, remédio e vacina

Para os estoicos, a filosofia é inseparável de certos “exercícios”. Ou seja, a filosofia é uma prática não exclusivamente teórica. 

Desses exercícios, o primeiro e mais importante deles  é a atenção (prosochè).Sem atenção perseverantemente exercitada, não há pensamento e ação fortalecidos.

É um erro dizer: “não consigo prestar atenção nesse filme, ele é muito lento”, “não consigo prestar atenção nesse livro, ele não tem figuras”. Pois não é algo externo que deve despertar nossa atenção, somos nós mesmos que devemos despertar nós mesmos: toda prática de atenção é, antes de tudo, um prestar atenção a si. Quem depende de algo externo barulhento e agitado para ter a atenção despertada, é porque não presta atenção em si.

Meditar, por exemplo, é prática de prestar atenção na nossa respiração. Até o silêncio requer que prestemos atenção nele. E não há como alguém discordar ou concordar com  algo que o outro  diz  sem prestar  atenção não só nas palavras, mas  também nos gestos e até mesmo nos silêncios  do outro que nos fala.

Prestar atenção não é projetar “certezas” ou (pré)julgamentos, e sim abrir-se para aprender, vivendo. Pois de toda atenção faz parte também o corpo, uma vez que a atenção requer sensibilidade ativa e atuante.

Assim, prestar atenção não é querer encontrar nas coisas o que (pré)concebemos delas. Ao contrário, prestar atenção também é estar atento a essas ideias pré-concebidas que , dentro de nós, impedem que em nós entrem coisas novas.

A atenção não se faz no passado e nem no futuro, pois é sempre no presente, como abertura atenta a  ele, que toda atenção acontece e ensina , assim  auxiliando a nos libertar de condicionamentos passados e de projeções e expectativas futuras  que só trazem medo, insegurança e angústia.




o filósofo, o vento e a luz

 

Como se sabe, a palavra “filósofo” tem por raiz o termo “philo”. Essa palavra vem de “philein”: “amar”. É por isso que se diz: filósofo é quem ama a sabedoria ( Sofia).

Mas não se deve compreender philein como um sentimento subjetivo-romântico. Era comum os filósofos pré-socráticos afirmarem : “o vento ama soprar”, “a luz ama iluminar”...Esses exemplos mostram que a ação de amar é um acontecimento que decorre da própria natureza do vento e da luz. “Philein” é amar nesse sentido.

Esse acontecimento da luz amar iluminar e do vento amar soprar não expressam uma escolha, e sim uma necessidade. É essa necessidade que também nos faz compreender que nunca o soprar do vento e o iluminar da luz  poderiam nascer de um odiar. Quem faz o que faz por necessidade sempre o faz amando.

E é assim que o filósofo deve amar o pensar: por necessidade. Não se deve confundir necessidade com obrigação. O vento não é obrigado a soprar, nem a luz a iluminar: eles o fazem por necessidade, uma necessidade idêntica à liberdade. Pois a autêntica liberdade não está em escolher entre isso ou aquilo, mas em realizar algo por necessidade, amando. É soprando que o vento se afirma vento, é iluminando que a luz se afirma luz.

Enfim, é  soprando que o vento é livre, é iluminando que a luz é livre. E é  da mesma maneira que deve ser livre o filósofo : vivendo o pensar com a mesma necessidade que o vento vive o soprar e a luz  o iluminar. 

Não é o filósofo que projeta antropomorficamente no vento e na luz esse amar; ao contrário, é a natureza que ensina ao filósofo como ele deve amar o pensar: por necessidade, fazendo do pensar também  Pneuma ( "Sopro") e Luz.

 

( esse texto é um comentário à análise que Hadot faz do dizer de Heráclito: “ A natureza ama [philein] ocultar-se.")


 

 


domingo, 27 de março de 2022

filosofia e modo de vida

 

O filósofo Pierre Hadot ensina que a ideia de “conversão” tem uma origem filosófica. A palavra “conversão” significa “voltar-se para” ou “religar”.

Enquanto conversão, a filosofia não é só um discurso, ela é antes de tudo  uma prática: uma prática de construção de uma vida filosófica.

Em Plotino, por exemplo, a conversão filosófica acontecia quando a alma se voltava novamente para o Uno, espécie de “Útero Cósmico” do qual tudo proveio.

Segundo Plotino, a alma sai do Uno descendo . E quanto mais ela desce, mais ela vai se afastando do Uno e se vestindo com vestes que, camada sobre camada, tornam a alma pesada com o peso do supérfluo:ideias supérfluas, sentimentos supérfluos, palavras supérfluas, projetos de vida supérfluos , enfim, um existir supérfluo é o preço que a alma paga  quando vai  para longe do Uno. Pois esse ir para longe do Uno não é um avançar ou progredir, e sim um perder-se.

A conversão plotiniana se inicia quando a alma sente o peso dos valores e opiniões que tão ferreamente carregava, imaginando que isso era liberdade, quando na verdade é o fardo e peso de grilhões.

Voltar-se para o Uno não é prática meramente teórica. Esse retorno não é um progredir no acúmulo de conhecimento, e sim um salto, uma metamorfose, o clarão de um relâmpago no seio da noite espessa.

Então, a alma compreende que as vestes que a cobrem são armaduras, carapaças, máscaras que lhe escondem a face nua. Pois é nua, recuperando sua “verdez inaugural”, como diz o poeta Manoel de Barros, que a alma consegue , estando nua, não se sentir com frio ou desprotegida, mas plena .

É nua que a alma volta à fonte , como um raio de sol que pudesse retornar ao sol e ser , pelo próprio sol , intensificado  e iluminado, por fora e por dentro. A conversão é o raio de sol sabendo-se sol.

A conversão filosófica é sempre um voltar-se para a vida, religando-se a ela. Por isso, o acontecimento que mais expressa a conversão filosófica é o nascimento. A autêntica conversão filosófica nunca é um cultuar  a morte em seus vários sentidos , e sim reencontrar , produzir e afirmar os inauguramentos, as natências, a não velhez, enfim, refazer-se embrião do qual possa nascer realidade nova.

Assim compreendido, filosofar não é , como dizia Platão, “aprender a morrer”; filosofar é voltar-se para o nascer enquanto (re)começo de todo viver que se afirma e persevera.

 

“Só escrevo meus nascimentos.” (Manoel de Barros)


“Hoje se toma por sonhador aquele que vive o que ensina .” ( Hadot)


“A filosofia transformada em livros deixou de instigar os homens. O

 que nela existe de insólito, de quase insuportável, se escondeu na

 vida decente dos sistemas.”( Merleau-Ponty)





sábado, 26 de março de 2022

Prometeu e Orfeu

 

Segundo o filósofo  Pierre Hadot, há dois mitos originários que explicam a relação do homem com a natureza.

O primeiro deles é o Mito de Prometeu. Por intermédio de Prometeu, o homem recebeu o fogo. O fogo tem o poder de derreter, fundir,  amalgamar, dilatar, enfim, transformar a natureza conforme os interesses do homem. O fogo simboliza a técnica.

Esse fogo prometeico subjuga a natureza , porém não a penetra. Pois o fogo transforma a natureza em coisa, em objeto: metal, carro, avião, moeda, revólveres, mísseis...Enfim, realidades técnicas com as quais a ganância e a ignorância do homem às vezes se armam para predar a própria natureza, incluindo a natureza humana.

O outro mito é o de Orfeu, o poeta. A poesia também é chama. Mas a chama da poesia tem luz e calor diferentes do fogo prometeico, pois a luz da poesia   ilumina , antes de tudo, as realidades internas.

No canto de Orfeu também há luz, uma luz que faz brotar e aflorar, pois é  uma luz que desvela.

Só o poeta penetra a natureza sem violentá-la, somente com a arte se consegue  traduzir os segredos dela. É cantando, musicando, pintando, poemando, enfim, criando,  que a natureza nos ensina  os múltiplos e heterogêneos  sentidos dela.

O fogo prometeico, às vezes a torturando ,   força a natureza a    falar somente aquilo que a surdez existencial do homem consegue alcançar ,  já a poesia põe-se amorosamente à escuta da natureza, e é ouvindo essa voz infinita e variada que o artista aprende a ter o que falar, criando.

 

“A palavra abriu o roupão para mim:

 ela quer que eu a seja.” (Manoel de Barros)


"Deveríamos  respeitar mais  o pudor com que a Natureza

se esconde por trás de enigmas e de incertezas brilhantes."

(Nietzsche)


"A natureza ama ocultar-se." (Heráclito)


 ( obs: as duas últimas epígrafes estão no livro de Hadot)

 

(na imagem, a poesia pintada de Van Gogh: “Relva e árvores”)












quarta-feira, 23 de março de 2022

o poder teológico-político

 

Conforme argumenta Espinosa em seus livros sobre política, um dos maiores inimigos da democracia é o poder teológico-político.

O discurso  teológico  se apoia em um livro que considera sagrado: o Alcorão, para os muçulmanos; o Talmud, para os judeus; a Bíblia, para os cristãos.

Mas o  que fundamenta um Estado livre, ao contrário,  é que seu poder emana  de uma Constituição laica livremente instituída , podendo ser emendada ou substituída por outra mediante uma assembleia constituinte, obra humana, fato este que não pode acontecer com o Texto que fundamenta a teologia.

O poder democrático nunca é teológico, porém o poder teológico, saindo de sua esfera própria, às vezes  ambiciona ser político e ter poder , mas nunca será democrático. Ao contrário, o poder teológico-político verá na democracia um inimigo a ser destruído em nome de Deus. Mas qual Deus? De qual religião?

 E aqui está o que revela a impossibilidade de um poder teológico-político se manter a não ser com a força ( não a de Deus, mas a das armas bem humanas, demasiado humanas...ou então a força do dinheiro distribuído eleitoreiramente pelo  miliciano aos seus cúmplices travestidos de pastores).

Na democracia, a Constituição é um texto que todos seguem , mesmo os que pensam diferente, como liberais e socialistas. Mas judeus, cristãos e muçulmanos seguem livros sagrados diferentes que lhes conferem uma identidade religiosa incomunicável com a religião diferente da sua .

Então, quando um poder teológico quer se tornar também poder teológico-político, ele quer na verdade não apenas desfazer a essência da política, que é pautar-se em uma Constituição livremente instituída que preserva a diversidade, como também quer afirmar-se como  religião única.

Assim, quando o poder teológico, saindo da esfera que lhe é própria ( a esfera subjetiva-privada) ,  quer se tornar também poder político , correm risco não apenas a democracia e os partidos, como também as outras religiões que, mais cedo ou mais tarde, também serão perseguidas . As outras religiões serão perseguidas logo depois de serem perseguidos artistas, filósofos, educadores, enfim, democratas.

O poder teológico-político , quando alcança o poder, traz para este certos dogmas inspirados em “gurus” ou “iluminados” que se creem governados diretamente por algum Deus  vingador, um Deus cheio de ódio, nunca o Deus do amor ( como aquele que São Francisco dançou...). Além disso, tal poder exigirá a força bélica de polícias e exércitos a serviço de seu delírio , pois um dos traços do poder teológico-político é a paranoia de ver o “Diabo Vermelho” em tudo...

E o alvo mais frequente desse tipo de poder é a educação pensante, libertária. Pois somente ela pode nos livrar desses oportunistas que lucram com o sofrimento e miséria  do povo.






segunda-feira, 21 de março de 2022

horóscopos

 

Certa vez, eu estava explicando para uma turma um poema de Fernando Pessoa. Era uma turma muito simpática , que sempre pedia para eu tocar nesses temas poéticos-filosóficos , apesar de não caírem na prova...rs...

Quando terminei a narrativa, uma aluna  perguntou de repente  : “Professor, qual seu signo?” Quando respondi “touro”, ela ficou incrédula, e disse com humor : “professor, você não pode ser touro, os professores de touro gostam de ensinar apenas coisas utilitaristas sem poesia ...rs...”

Então, ela me pediu a data e hora do meu nascimento (incluindo os minutos),  ela queria fazer meu “mapa astral”. Como eu sabia esses detalhes,  passei a informação para ela. Na aula seguinte, ela entrou sorridente na sala e disse: “Sabia que havia alguma coisa diferente, você  é assim por causa do seu ascendente: Aquário!”

Em homenagem àquela turma tão generosa  comigo ( e a todos que , presencial ou virtualmente, apoiam meu trabalho), elaborei um pequeno “horóscopo filosófico”, no qual o céu sob o qual nascemos expressa a atmosfera que irradia de  determinado filósofo .

Àquela época, eu morava perto de uma pracinha. De minha janela via as mães com seus filhinhos nos carrinhos de bebê. Deitados dentro dos carrinhos, os bebês ficavam o tempo todo  olhando para o céu. Pensei comigo: “se tudo nos influencia, ainda mais quando somos crianças, deve haver uma profunda influência dessa  primeira imagem do céu na alma e personalidade dos bebês”.

Assim, os que nasceram no verão veem um céu com  um sol intenso. Os bebês que trouxerem  esse sol para dentro deles se tornarão artistas . Chamei esse céu de CÉU DE NIETZSCHE.

Os que nasceram no inverno, ao contrário, veem um céu cinza, e assim terão que buscar  criar um sol dentro de si . Os que nascem sob esse céu tenderão a ser mais introspectivos, buscando mais a “luz interior” . Chamei esse céu de CÉU DE SCHOPENHAUER.

 Os que nasceram sob o céu da primavera veem um sol que é como uma grande semente que faz tudo germinar. Os que plantarem  dentro de si esse sol-semente   tenderão a ser mais otimistas , acreditando que a vida pode de novo sempre brotar, apesar do deserto. Chamei esse céu de CÉU DE EPICURO.

Enfim, os que nasceram no outono veem um céu de um azul profundo porém transparente, onde o sol brilha vivamente mas sem ofuscar, como parte do infinito  aberto sobre a Terra. Os que aprenderem a perseverar  horizontando-se  a  esse céu,  crescerão pensadores  amando a Mãe-Terra. Chamei esse céu de CÉU DE ESPINOSA.

Ontem começou o outono... Que a gente consiga   criar uma abertura na mente e no coração para que possam entrar a luz e o azul desse  “céu de Espinosa”, e que a perseverança do pensar libertário desse filósofo  nos inspire ,proteja e  fortaleça diante de toda forma de treva.

 

“Eu tentei me horizontar  às andorinhas”. (Manoel de Barros)

 

- Obs: Nesse “horóscopo-brincativo” ( “brincatividade” é ideia criada pelo poeta Manoel de Barros) , poderíamos colocar outros filósofos ainda ao lado desses que mencionei para cada estação. Lucrécio e Sêneca, por exemplo, também são outono; Sartre é verão; Epicteto e Bergson, primavera; e Cioran, inverno. Porém, como disse no texto, não basta a simples presença do referido céu, é preciso que ele seja internalizado e incorporado como parte da personalidade. Se ele não for internalizado/incorporado, não há o efeito poético-existencial.

 

(imagem: “Outono”/ Monet)









domingo, 20 de março de 2022

Manoel & Pessoa: o ponto de interrogação

O poeta Manoel de Barros dizia que tudo tem seus “inauguramentos”. Citei essa ideia do poeta a uma amiga atriz quando a gente conversava acerca do acontecimento existencial que nos “inaugurou” a ser o que hoje somos.

Ela me disse que, desde criança, gostava de brincar de teatrinho com suas amigas. Essa “brincatividade” lúdica a inaugurou atriz , ainda menina.

Então, ela me indagou sobre meu “inauguramento”, e respondi mais ou menos o seguinte:

Quando eu tinha cerca de sete anos , à noite eu gostava de me deitar no chão do quintal de casa e ficar “contemplando” o céu. Àquela época, o céu do subúrbio era límpido, dava para ver até a poeira cósmica!

A palavra “contemplar” significa: “entrar no templo”. Templo é onde habita o divino. Heráclito dizia que o divino habita o fogo; Tales afirmava que o divino mora nas águas;  Lucrécio poetizava dizendo  que o divino mora nos átomos e no intervalo  entre os átomos; já Espinosa ensinava que o divino mora nele mesmo, e que nada há fora dele mesmo, pois a casa do divino é a infinita Natureza.

Creio que foi assim que me inaugurei   filósofo: interrogando as estrelas, assim me celestando . “Poesia é celestar as coisas do chão”, ensina o poeta Manoel de Barros.

Segundo Deleuze,  há dois tipos de pergunta/interrogação. O primeiro tipo é o que faz o professor numa prova. O professor interroga, porém ele já sabe a resposta. Se o aluno responder corretamente, a resposta será verdadeira; do contrário, será falsa.

Mas há um tipo de pergunta-interrogação mais originária. Enquanto a pergunta do professor é buscada em livros e teorias, essa interrogação  originária deve ser buscada  diretamente no Livro da Natureza, onde o “aprender vem antes do ensinar”.

Essa interrogação originária lembra um poema de Fernando Pessoa no qual ele diz que não são  pés e pernas que nos  põem  de pé; o que nos  põe de pé é a coluna cervical. Inclusive, é a coluna cervical que liga o cérebro às mãos e pernas, para que as ideias que pensamos se tornem corpo e ação sobre  o mundo.

Segundo Pessoa, originariamente o ser humano  ficou de pé quando seus olhos, até então cativos de restos e rastros no chão, foram atraídos pelo céu aberto e estrelado, “horizontando-se” .

Tanto “cervical” quanto “acervo” vem de “cérvix”: “o que sustenta”. Assim como a coluna cervical sustenta nossa cabeça pensante, os livros de uma biblioteca são acervo que sustentam  em pé as ideias.

Se olharmos a coluna cervical de lado, ela se assemelha a um ponto de interrogação (?).

Enquanto a pergunta  do professor é feita em razão de uma resposta teórica, a interrogação  originária é para nos pôr de pé  diante dos que nos querem prostrados.

Esta é a  resposta verdadeira  à pergunta-interrogação  originária :  pôr-se de pé existencialmente, estendendo  a mão para que os outros também se ponham.









sexta-feira, 18 de março de 2022

só a arte salva

 

O filósofo Heidegger dizia que  uma coisa é  “diminuir a distância” , outra  bem diferente é “criar proximidade”. A tecnologia diminui as distâncias, sem dúvida. Mas uma coisa é diminuir a distância entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido daquilo que nos é mais essencial e indispensável.  Esse sentido nem sempre está dado, às vezes ele precisa ser descoberto ou mesmo criado.

Enquanto instrumento técnico, o telescópio diminui a distância entre a lua e nossos olhos, isso é fato. Porém, quando lemos num poema  a lua em versos, o poeta não põe a lua perto de nós no espaço, porém ele a põe  tão próximo que, empoemando-nos, experimentamos seu sentido também em nós, no "devir-lunar" que nos tornamos.

 E quando a lua está mais viva e cheia de luz , como na potente lua cheia de hoje  , o devir-lunar pode se tornar ainda mais vivo e intenso ,  e assim fazer   recuar a noite : a de fora e , quem sabe, a de dentro.

Esses momentos de isolamento social nos colocaram longe espacialmente, porém nunca estaremos sozinhos existencial e politicamente se mantivermos viva e intensificarmos a  proximidade com as ideias e valores  que nos fazem seres pensantes e solidários.  Mantendo-nos próximos dessas ideias, estaremos próximos de nós mesmos.

A arte serve para nos ensinar a aprendermos criar proximidade com tudo aquilo que,  para existir e se tornar real, precisa ser criado, pessoal ou coletivamente. A ideia de liberdade, por exemplo, só existe ser for  produzida em um devir-libertário.

No céu de hoje à noite, a lua cheia surgirá plena  para quem  levantar a cabeça e a encontrar. Ela durará um tempo, depois passará, como tudo.

Mas no poema ela estará salva e pode ser sempre reencontrada  : sempre nova e a brilhar, para que algo em nós  a brilhar a gente também  possa encontrar , apesar dessa noite espessa.

 

 

 “Só a arte salva.” (Deleuze)











quarta-feira, 16 de março de 2022

o lápis do poeta

 

Manoel de Barros só escrevia à mão sua poesia, e sempre a lápis. Nunca lapiseira de plástico, sempre lápis de madeira.

Curiosamente, “digitar” é um ato que faz parte da atividade de “bater”, “golpear”. Quem digita, bate com os dedos nas teclas. Já escrever à mão expressa outro tipo de movimento: desenhar.

Quem escreve agencia sua mão com o corpo do lápis, e por intermédio deste é nosso corpo que também escreve, com seus nervos e fibras, incluindo as do coração. Quem escreve à mão desenha, parecendo às vezes que o lápis também dança na ponta de seu grafite, como a bailarina equilibrada na ponta dos pés.

Para que na palavra também se expresse a vida, mais adequado é o lápis do que a caneta: a tinta que sai desta é coisa química, mas o grafite que o lápis liberta veio da imanência da terra, é vida.

O cérebro não funciona da mesma maneira quando se digita e quando se escreve à mão, quando se bate e quando se desenha, quando se golpeia e quando se dança. Há certa violência em bater-digitar. Talvez essa seja uma das razões que explique porque os fascistas gostam tanto de violentar também as teclas e, por intermédio destas, as ideias, encontrando no meio digital um ampliador de suas violências físicas e simbólicas.

 Além disso, sem que saibamos, há o risco de tudo o que digitarmos nas redes sociais o capital cibernético reduzir a algoritmos , para assim nos oferecer como mercadoria aos novos mercadores de gente, sempre ávidos por inescrupulosos lucros.

Na madeira do lápis do poeta ainda vive e resiste a árvore que um dia fez parte do Pantanal que os criminosos hoje incendeiam , para tudo reduzir a pasto de gado obediente .

Por intermédio do lápis do poeta continuam a falar as árvores, as florestas, os bichos, as plantas, os pássaros , as paisagens, os verdes e seus infinitos tons, o azul e seus horizontes... Enfim, fala tudo aquilo que os destruidores da vida querem calar e matar.

Nada contra o digitar, porém escrever à mão, a lápis, é ato mais afim ao poema que , como gente, também nasce: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve o poeta.

 

( imagem: Manoel , seu Pantanal e montagem com lápis. O verso gravado no lápis e o desenho são do próprio poeta)






segunda-feira, 14 de março de 2022

HÁ QUATRO ANOS ( 14/03/2018) QUE ESTA PERGUNTA CONTINUA SEM RESPOSTA: QUEM MANDOU MATAR MARIELLE E ANDERSON ?

 

No Museu da Maré há um espaço dedicado a Marielle Franco. Na exposição que leva seu nome, foi escolhido um objeto singular para nos fazer lembrar a vereadora: a porta do seu gabinete .Em sua atuação política, Marielle costumava colar mensagens nessa porta , além de sempre mantê-la aberta àqueles que vinham procurar por sua ajuda.

Pela ação de Marielle , aquela porta continha uma potencialidade de sentidos. E “potencialidade de sentidos” é o outro nome pelo qual atende a poesia enquanto prática de ressignificar as coisas e o mundo.

Pois poesia não é só versos: poesia também é produção de sentidos que podem transformar uma simples porta em um agente coletivo de enunciação .

Transportada então para o interior do Museu da Maré, aquela porta se tornou um símbolo-mensagem do próprio ser de Marielle: porta aberta, receptiva, como seu sorriso.

Não por acaso, na mitologia era sob uma porta aberta, espaço de travessias, que se manifestava Hermes, a divindade associada à comunicação das mensagens que requerem a prática da interpretação.

Em grego, “interpretação” se escreve “hermenêutica”: “arte relativa a Hermes”. Mensagem não é a mesma coisa que informação. “A capital do Brasil é Brasília”, “dois mais dois é igual a quatro”, tais coisas não são mensagens.

Mensagem é tudo aquilo cujo sentido requer a atividade de interpretação: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”, este verso de Manoel de Barros não é informação, é mensagem. “O homem é um ser político”, outra mensagem. Mensagens não são para se decorar ou reproduzir, mensagens existem para despertarem nosso pensar e nosso sentir , para assim aprendermos a ler mais do que frases ou palavras: crítica e criativamente, aprendermos a ler também o mundo.

Nem sempre mensagens se vestem com palavras, às vezes as mensagens vêm inscritas nas coisas ou são as próprias coisas portando sentidos a serem interpretados.

A porta de Marielle é mensagem que simboliza o sentido da travessia e da abertura ao outro, sobretudo ao outro que é marginalizado, injustiçado, explorado, perseguido.

Os Museus Casa são espaços que já foram residência, quase sempre palácios e mansões (em geral de gente oriunda da elite) . O museu Casa de Rui Barbosa, por exemplo, foi a casa de verdade de Rui Barbosa. Mas pessoas do povo como Cartola, Nelson Sargento, Lima Barreto, Maria Carolina de Jesus, e tantos outros, não tiveram casa para ser patrimônio musealizado. A casa deles é a favela, a cultura popular, a criatividade e a inventividade do povo que luta.

A porta de Marielle é parte de uma casa assim: uma casa plural, aberta, heterogênea...espaço de resistência à Casa-grande fascista.

Os assassinos de Marielle obstruíram covardemente seus passos. Mas a porta que ela simboliza , enquanto abertura à justiça, à educação e à cultura, esta porta nós não podemos deixar fechar.





- A porta do gabinete de Marielle ( hoje parte do acervo do Museu da Maré): 



domingo, 13 de março de 2022

Kant, Espinosa e a questão da paz

 

Kant foi um dos principais   Iluministas. O Iluminismo  acreditava que a Razão é uma Luz que destroi as trevas : o Direito, enquanto fruto dessa Luz  , é antídoto contra as trevas da força bruta; a Cultura, também fruto da Razão, é meio para se vencer as trevas da inumanidade; o Conhecimento, fruto maior da Luz da Razão, é arma para se vencer as piores trevas: as da ignorância( em suas formas variadas ) .

Enfim, o Iluminismo acreditava  que a Razão ,  e somente ela, garantia o progresso do homem e das sociedades. E que a História era o palco desse “progresso”.

Kant expôs essas ideias no livro “À paz perpétua”, obra que influenciou a criação da ONU após a trágica Segunda Guerra.

Contudo,  o grande desafio dos Iluministas era explicar a guerra: como justificar  tal monstruosidade da perspectiva “racional”?

Kant se vale então de uma imagem: não só os “espertos” têm astúcia, a Razão também tem sua própria “astúcia”. A “astúcia da Razão” se revela quando ela se vale dos meios aparentemente pouco racionais para fazer prevalecer seus fins racionais. Até mesmo na guerra a Razão encontra um meio para prevalecer, pensava Kant.

Este é o argumento de Kant: num primeiro momento,  as  guerras dispersam os homens sobre a superfície da terra. Como a terra é finita, chega um momento no qual não é mais possível fugir. Então, para  sobreviverem os homens são obrigados a fazerem pactos e contratos, isto é , serem racionais.

São esses pactos que , além de trazerem a paz, tornam possível depois  o comércio dos povos, incrementando assim o progresso, que é o fim buscado pela própria Razão. Desse modo, em busca de realizar seus fins , a “Razão Astuta”  encontra até mesmo no ódio e na  guerra um meio.

Porém, na época de  Kant  as guerras eram travadas  com canhões apenas . E o planeta terra , nossa Mãe Arquetípica, era somente  o palco das guerras.

Kant talvez tenha superestimado a Razão, ou então subestimado o tamanho das trevas que se esconde dentro da alma sombria de certos homens, sobretudo os ávidos por poder e destruição.

Se Kant tivesse dimensionado adequadamente , creio que ele não diria que  guerra e ódio  podem estar a serviço da razão. Ao contrário, a guerra dos homens serve exclusivamente à destruição sem a menor “astúcia”, uma destruição bruta mesmo, expressão visível de uma “pulsão de morte”  antivida.

Nas guerras que Kant presenciou, a terra em sua imensidão oferecia abrigo e proteção aos vitimados pelo horror da brutalidade dos homens.  Mas a treva hoje é tamanha, que a própria terra corre riscos , assim como seus filhos e filhas atônitos diante desses seres das trevas.

Mas como ensina Espinosa, o pensamento realmente libertário nunca é “astuto”, pois ele se mostra sobretudo nos meios que emprega para afirmar a si mesmo. É  afirmando a si mesma que a luz fica mais potente e pode vencer  as trevas, e nunca  fazendo das trevas  do ódio um meio.




sábado, 12 de março de 2022

pequeno vocabulário de Manoel de Barros

 

Mesmal: o mesmal é uma vida, pessoal ou coletiva, que se acostumou com aquilo que a impede de ser diferente. O mesmal é a antipoesia.

Velhez: a velhez não é a velhice, a velhez não é uma idade. A velhez é o mesmal com outro nome. A velhez pode dominar uma pessoa ou parte da sociedade,  que então se torna  mesmal-conservadora-reacionária.

Ignorãça : Espinosa dizia que “ninguém sabe tudo o que pode um corpo”. Esse não saber não é a ignorância negacionista , e sim uma forma de pensar criativo que Manoel pôs em prática escrevendo com o corpo. A ignorãça é poesia-pensante   que cria saber novo.

Empoemar: o empoemar-se não é apenas ler versos. Empoemar-se é viver intensamente uma ideia libertária, até que ela esteja em cada ação nossa, por mais simples que seja , não importa onde ou diante de quem.

Desabrir: o desabrir-se é mais do que o mero abrir-se ; desabrir-se é desfazer os limites do ego, até fazer comunhão com a natureza, a mesma natureza de que fala  Espinosa.

Agroval: o agroval é uma multiplicidade heterogênea onde se agenciam singularidades livres, como um Quilombo onde se resiste e luta pela liberdade.

Horizontamento: horizontar-se é conectar-se em todas as direções, em todos os sentidos, desfazendo fronteiras, cercas, nãos.

Criançamento: o criançamento não é voltar à infância de forma infantil; o criançamento é o antídoto à velhez . Criançar a linguagem é dizer com ela algo que nunca foi dito, ou dizer diferente o já muito dito, assim reinventando o sentido e subvertendo as cartilhas.

Agramaticalidade: a agramaticalidade não é errar nas regras da gramática; a agramaticalidade é produzir um dizer que , de tão potente , reinventa outras gramáticas. A gramática é poder, a agramaticalidade é potência.

Delírio ôntico: Manoel diz que “poesia é delírio ôntico”. A palavra “delírio” vem de “lira” , o instrumento musical do poeta Orfeu. “Lira” também é o nome dos sulcos feitos na terra para plantar as sementes. “De-lirar” é : “lançar a semente fora dos sulcos”. Mas há dois sentidos de delírio: o poético e o sombrio, o da saúde do espírito e o da mente doentia. O delírio mórbido lança a semente fora do sulco , e assim a nega e destroi; já o delírio ôntico lança a semente fora dos sulcos costumeiros, porém  cria sulco novo para a semente ser plantada e dela  germinar ideia nova. “Ôntico” vem da palavra grega  “on” : “ser”. Delírio ôntico é criar novos sentidos para o ser, ao passo que o delírio mórbido é mera fantasia doentia   de  poder.

Natência: a natência é a perseverança  da vida em renascer ainda mais viva  onde a querem derrotada e morta.






sexta-feira, 11 de março de 2022

as Graças

 

Na mitologia, as Graças eram três irmãs que nunca se separavam. Delas vêm “gratidão” e “gratuito”. As outras divindades se tornavam ainda mais potentes e generosas quando buscavam a companhia das Graças.

Quando Atena, a deusa da sabedoria , andava na companhia das Graças, o conhecimento que vinha dela não apenas instruía  teoricamente , mas deixava também  quem aprendia  em graça, aumentando a potência da vida.

Eros igualmente buscava a companhia das Graças quando queria que o amor que ele dava fosse também um estado de graça: afeto que se dá e recebe , sem cobranças.

E quando os deuses queriam saber quem entre os seres humanos eram gratos, eles ofereciam seus dons junto com as Graças, e assim sabiam quem, aos recebê-los, ficava agradecido . Pois quem é agradecido é confiável.

As Graças não são exatamente a alegria ou a felicidade, pois elas vêm antes desses estados, e muitas vezes são as Graças que nos amparam nos momentos de tristeza e infelicidade.

As Graças são o contrário das Moiras, que também eram três irmãs. Enquanto as Moiras querem nos impor um Destino férreo que se paga com o preço da morte, as Graças ofertam mais  vida de graça, mesmo quando nos julgavam vencidos e mortos. E por esse sopro de vida a mais as Graças nada cobram, apenas esperam  que  nos tornemos gratos. Pois daquilo que se recebe de graça ninguém é o dono ou proprietário: o que se recebe das Graças é para ser partilhado.

Certa vez, Orfeu acordou de manhã e percebeu que Eurídice, seu par, já estava desperta. Ela estava diante de uma penteadeira penteando-se, enquanto cantarolava baixinho uma canção. Ela não cantava a canção inteira, apenas o ritornelo, o refrão.

De repente, Eurídice viu, pelo espelho,  a expressão de Orfeu a olhá-la. Admirado, parecia que o poeta via uma obra de arte a qual não faltava nada.

Eurídice  perguntou: “O que foi!?” E o  poeta pediu: “Não pare, faça de novo o que você estava fazendo!” “Mas o que eu estava fazendo?” “Você estava se olhando, mas sem se julgar ou comparar; você estava cantando sem razão ou motivo, mas como fazia sentido o seu cantar!” “Ah, então era isso!? Farei de novo...”

Porém, por mais que Eurídice tentasse fazer de forma calculada o que fizera de maneira espontânea, ela não conseguia repetir o que vivera de forma gratuita e com graça, sem distanciamento com a vida.

Na Grécia, “Eurídice” é um dos nomes da Alma,  como “Psiquê” e “Pneuma”. Assim, quando o poeta  canta a vida em graça, é porque  sua Alma-Eurídice foi despertada   à vida pelas  próprias  Graças.

O contrário da vida não é a morte. O contrário da vida é a existência in-grata de seres   sem-graça  que atraem  e produzem  des-graças.

Que as Graças nos amparem ,  deem força e nos  protejam  de seres assim.  

 

 

 

“(...)uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...” (Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)

 

 

 

( imagem: "As três Graças"  / Delaunay)








quinta-feira, 10 de março de 2022

pensar não é uma posse, é como as asas que se entregam ao voo

 

Segundo Espinosa, quanto mais realidade possui um ser, mais ele atrai os outros seres de modo semelhante a como o amado atrai o amante. Ao contrário, quanto mais impotente  é um ser , mais ele precisa da mera força bruta para agir sobre os outros seres, sempre encontrando a resistência desses. 

Mas quem ama o pensamento não resiste: entrega-se inteiro  , como as asas que , para serem livres, entregam-se ao voo.

Ainda não descobriu tudo o que pensamento pode quem imagina que ele age sobre nós tal como um bruto nos obrigando à força.

Na verdade, o pensamento é como o amado que nos torna amantes dele quanto mais pelo pensar nos afetamos, desde que ele seja descoberto.

Quem sabe amar, sabe que nunca sabe tudo o que  amor pode. Quem ama o pensamento, não ama apenas o pensamento, ama igualmente tudo aquilo que o pensamento compreende.

Não há ódio pior do que o ódio ao pensamento. Esse ódio recebe o nome  de “ignorância” (em suas diversas formas). E quem odeia o pensamento não odeia apenas o pensamento, também odeia a compreensão e tudo o que pode  alimentar-se dela.

Quem ama o pensamento também ama a realidade que o pensamento conhece e pensa. Quem odeia o pensamento apenas opina sobre a realidade, sendo tal opinião a expressão reativa de um  ódio à realidade e à vida.


"Poesia é voar fora da asa."(Manoel de Barros)

quarta-feira, 9 de março de 2022

ato pela Terra

 

Na mitologia, Gaia, a Mãe-Terra, foi a primeira divindade a surgir: ela emergiu do Caos, tal como uma ilha que sobe do fundo do oceano.

Em seu sentido originário, “Caos” não é a mesma coisa que “desordem”, pois a “desordem” é a negação de uma “ordem estabelecida" , ao passo que o Caos é uma realidade primeira que antecede toda ordem.

O Caos nada destroi: ao contrário, tudo dele nasce. E a primeira realidade a nascer dele foi exatamente Gaia, que os povos originários da nossa América chamam de “Pachamama” ou “Pindorama” ( a nossa "Mátria").

Depois, de Gaia-Terra nasceu Uranos-Céu  e todas as suas incontáveis estrelas.

A Gaia-Terra  permanecia ligada ao Caos por intermédio de suas cavernas. E foi de uma dessas cavernas da Terra, transformada em útero cósmico,  que veio ao mundo Eros, o Amor.

O Amor tem por característica desfazer as fronteiras que individuam e separam  os seres: sob a força do Amor, o dois vira um ( mas sem subtrair , e sim potencializando, o que cada um tem de único).

Assim, sob a força do Amor a Terra e o Céu se uniram: as estrelas do Céu se plantaram no seio da Terra, tornando-se sementes celestes das quais brotaram novas divindades:  Cronos ( o Tempo) ,  Mnemosyne ( a Memória) e  Thêmis ( a Justiça).






terça-feira, 8 de março de 2022

Liliths

 

Adão entrava na escuridão  do sono toda vez que dormia. Certa vez, porém, surgiu no meio do sono  uma imagem difusa que aos poucos foi tomando forma, uma forma de mulher: era Eva.

Um dia  Deus viu Adão falando sozinho enquanto dormia. Deus entrou na alma de Adão e percebeu  que era com Eva que ele falava.

Tomando como modelo o que Adão via em sua fantasia , Deus esculpiu tal imagem  numa das costelas de Adão. E assim ganhou corpo  Eva: a mulher surgida  da fantasia solitária de Adão.

Porém , antes de Eva houve Lilith, que existia  em igualdade com Adão.  Lilith foi expulsa do jardim adâmico por não  aceitar  submeter-se  ao poder de Adão.

E foi assim que Adão sonhou  alguém para moldar à sua maneira e suprir seu desejo de dominação frustrado  .

Eva nasceu do desejo de Adão, ao passo que Lilith era outro desejo tão real quanto o de Adão : Lilith era  plena realidade , e não mero apêndice do homem.  Lilith não nasceu do sonho de poder de Adão, pois ela era a realidade de outro desejo em sua liberdade.

Antes de Eva não havia apenas Adão e Lilith,  também existia  o Amor.  Mas julgando que o Amor inspirava em Lilith o desejo de liberdade e igualdade, Adão estigmatizou o Amor com a  culpa.

Lilith foi  então expulsa  , para que   da  costela do homem fosse  esculpida a mulher dos sonhos de todo patriarcado : “bela, recatada e do lar”.

Mas Lilith  , tal como Afrodite, fazia nascer flores onde pisava:   mesmo quando atravessava desertos ,  nasciam jardins de suas pegadas, pois  o Amor a fecundou antes de ela ser , como Espinosa, excomungada.

Por isso, onde quer que Lilith vá , um jardim libertário nasce dela e cobre de vida a terra. Desse jardim brotam  mais do que flores:  nascem lutas por direitos.

Desse  jardim lilithiano  nasceram  flores singulares com  nomes variados  :  Rosa de Luxemburgo, Frida Kahlo , Lhasa de Sela, Lou Salomé, Nina Simone,  Josephine Baker, Simone de Beauvoir, Tia Ciata, Dandara, Carolina de Jesus, Elza, Marielle... E outras  continuam a florescer , Lilith mais viva do que nunca.






domingo, 6 de março de 2022

HUMANITÁ

 

A palavra “estoico” vem de “stöa”: “porta” ou “portal”. Isso porque os estoicos escolhiam abrir suas escolas de filosofia bem no portal das cidades, perto de sua abertura.

Àquela época, as cidades eram muradas. No centro delas ficavam a praça e o mercado. Platão , fundador da Academia, e Aristóteles, criador do Liceu, estabeleceram suas escolas próximo  ao mercado e guardadas por muros.

Mas os estoicos preferiam dizer que sua filosofia estava a serviço daquilo que não podia ser cercado e murado. Os estoicos queriam  ir além não só dos muros físicos, mas sobretudo dos muros que cercam a alma e a põem prisioneira de si mesma.

A razão em Aristóteles é identificada  ao homem . Mas os estoicos diziam que o pensar é abertura à Terra, aquela que nenhum muro , nem os muros da falocrática razão, separa do cosmos, esse horizonte infinito.

Em vez de glorificar o “Homem”, os estoicos introduzem uma nova ideia: a “humanitá”, palavra feminina. A humanitá não pertence a uma pólis isolada, a humanitá habita a Terra.

Falar no “Homem” como ideia universal é escamotear os seres diferentes dos homens, seres esses que o homem reprime e explora, colocando-se como “Modelo” e “Padrão”. Por isso, a  humanitá não é um Modelo ou Padrão.

O Homem  é definido por Aristóteles como “Animal Racional”, embora tanta irracionalidade vemos na conduta do Homem, na guerra contra outros homens e na predação da natureza. A humanitá não é o “Homem”, ela é comunidade planetária vital.

A humanitá não é uma ideia abstrata , pois ela é também uma prática ética e política de defender a humanidade em nós, protegendo-nos  dos homens que querem destruí-la. A humanidade não é um “Padrão”, ele é uma comunidade aberta e heterogênea.

O Homem tem um rosto: o  do homem hétero,  branco, proprietário, conservador . Esse rosto muitas vezes se coloca  atrás da religião para esconder sua desumanidade contra as mulheres, contra os que não têm a cor de sua pele , contra os que vivem outras formas de amor, contra   os explorados pelo Capital, enfim, contra os que são e pensam diferente.

Mas qual o rosto da humanidade? Em quem podemos ver sua face? O rosto da humanidade somente se expressa em quem se faz singularidade. Singularidade não é a mesma coisa que indivíduo. Uma singularidade é sempre parte de uma multiplicidade. E nenhuma multiplicidade pode ser contida pelos muros excludentes de um Padrão.

 Toda singularidade se torna mais potente quanto mais sua  diferença se amplia em múltiplas e variadas conexões e agenciamentos. Singularidade não é apenas razão, singularidade  também é desejo, criatividade, sensibilidade, corpo  e ação.

Sobretudo, singularidade não é o eu ou o ego, ela é o que em nós se coloca à porta de nós mesmos, abertos à natureza, ao mundo, ao outro, à diferença, no seio aberto da Terra.

A “humanitá”  estoico-latina corresponde  à “paideia” grega, ambas expressando a prática de uma educação não apenas teórica, mas  libertária.

( imagem: “Árvore da vida”/ Klimt)