sexta-feira, 30 de abril de 2021

a educação libertadora e seus inimigos...

 

Segundo o filósofo Espinosa, a pior fase da vida é a infância. Não em razão de haver algo ruim em ser criança. A infância é uma fase difícil  porque é nela que mais dependemos da qualidade dos adultos e instituições que nos cercam: se o adulto for um tolhedor, correm sérios riscos de serem amputadas as asas com as quais toda criança nasce. E às vezes essas asas são cortadas antes mesmo de se abrirem... O adulto pode fugir dos maus encontros, mas as crianças são mais vulneráveis a esses  maus encontros, de tal modo que o tolhedor pode passar  para dentro da criança,  fazendo  crescer nela  um adulto ressentido de tesoura na mão também. Mas se os adultos e instituições que cercam a criança potencializam e encorajam seus voos e descobertas, ser criança se torna a experiência mais rica que pode existir, e dela nascerá de fato um adulto que não deixará morrer seus devires-criança, devires esses que são incapazes de viver os adultos infantilizados pelo Poder Autoritário, Pai e Padrasto dos ressentidos e vingativos.

O filme “A língua das mariposas” fala do encontro de um menino com a educação que lhe abre e potencializa as asas. Como o filme é espanhol, nessa língua “mariposa” é o que nós chamamos de “borboleta”. Dessa forma, o título correto é “A língua das borboletas”.

Às vezes a sensibilidade da criança está enrolada dentro dela  como a língua da borboleta enrolada em torno de si mesma. Assim como a  língua da borboleta se desenrola quando se vê diante do néctar, a sensibilidade da criança se desenrola e se torna exploratória do mundo quando é apresentada ao néctar das ideias. Pois as ideias que abrem a criança para o mundo são  também ideias para serem sentidas, provadas, saboreadas. Não por acaso, “saber” e “sabor” são palavras primas com origem comum : aprender  é “tomar gosto” pelo conhecer.

O filme se passa durante a ascensão do fascismo na Espanha. E a ascensão do fascismo é igual em toda época e lugar : lá como aqui, coturnos do ódio ameaçando pisotear os jardins onde crescem as flores multicoloridas e seus néctares. Mas antes de pisotearam os jardins, os coturnos da ignorância ameaçam os jardineiros, que são os artistas, os pensadores, os educadores, os libertários.

 A primeira vez que passei esse filme foi num curso para formação de professores. Era uma turma só com professores aprendendo a ensinar. Como diz Deleuze, “o aprender vem antes do ensinar”. Poucos filmes nos ensinam tanto acerca da potência libertadora da educação. E também poucos  filmes nos  mostram com tanta indignação e dor  o horror que se torna  a face fascista quando ela se encarna na face cotidiana do vizinho, do parente, enfim, de quem se diz “homem de bem”.






 

- Comentando o texto da postagem, recebi este excelente  vídeo do Prof. Eduardo Maia:




- O premiado roteiro do filme é baseado neste livro, que apresenta várias histórias/contos  cujo personagem é o menino do filme, no livro  representado mais crescido, como um jovem. O diretor do filme costurou esses contos com certa liberdade, então há aspectos do filme que não estão no livro, e há passagens do livro que explicam melhor certas cenas cujo sentido no filme é apenas sugerido de forma  implícita.



- Outros dois livros  citados na narrativa ajudam a compreender certas passagens e acontecimentos:






terça-feira, 27 de abril de 2021

os pães

 

Uma das palavras mais bonitas em grego é “eudaimonia”. No coração dessa palavra está o nome “Daimon”, pois “eudaimonia” é : “estar na companhia de um bom Daimon”.  Em português,  “eudaimonia” é traduzida pela palavra  “felicidade”. Para os gregos, felicidade não é andar sozinho, mesmo que seja em carruagem de ouro; felicidade é andar na companhia de um “bom Daimon”. Na mitologia, o Daimon não mora no inacessível e aristocrático Olimpo, o Daimon mora onde houver a necessidade de uma travessia, pois ele é a divindade dos caminhos, sobretudo  dos caminhos que precisam ser criados, mesmo que no deserto  ou para escapar de labirintos.   Para os gregos, a felicidade não é propriedade egoica de um indivíduo, a felicidade é agenciamento coletivo: impossível o indivíduo ser feliz se a pólis está triste, tampouco pode o indivíduo ter saúde com a pólis  doente.

Mas o Daimon só nos faz companhia se aprendermos a ser companhia. Nietzsche diz que certa vez um Daimon soprou esta lição em seu ouvido: “Odeio tanto seguir como ser seguido: para me acompanhar aonde vou, é preciso aprender a amar andar ao lado”. 

“Companhia” vem de “com-panis”. E “panis” é, em português, “pão”. Assim, fazer companhia é  saber “dividir o pão”. Companheiros: “aqueles que dividem o pão”. Há o pão que alimenta o corpo, como aquele que faltou ao povo e trouxe o sofrimento  da fome. A elitista Maria Antonieta, zombando, disse: “Não têm pão? Que comam brioches!” ( as “Marias Antonietas” casagrandistas de hoje dizem: “estão com fome, estão sem pão? Tomem 150 reais e digam amém!”).

Quando um povo não aceita  ser rebanho de tiranos,  nasce nele    a fome por outro pão: o pão da dignidade e da justiça, pão que  tem o fermento da arte, da educação e da poesia,   pão que alimenta a luta.

 

“O andarilho abastece de pernas as distâncias.” (Manoel de Barros)

 

( no livro “1984”, de George Orwell, uma das táticas do poder tirano é apagar certas palavras, para assim tentar apagar também da realidade seu sentido e prática. Parece estar acontecendo isso com a palavra “trabalhador”, que o poder do Capital tenta apagar colocando no lugar “colaborador” ,isto é,  colaborador do Capital   ou “empreendedor”; com isso,  propaga-se  a ideologia de que o outro não é um companheiro, mas um “competidor”. Nessa semana em que se comemora o “Dia do Trabalhador”, este filme é uma boa dica. Em “Pão e Rosas”, as “rosas” são a  cultura, as artes, a educação, a poesia )



- cena do filme:






domingo, 25 de abril de 2021

as ameaças à liberdade

 

Em seu Artigo 5º , a  Constituição Brasileira  afirma “a igualdade de todos perante a lei”,  e também garante “o direito à vida e à liberdade (...)”. Depois, no  Inciso VI desse mesmo Artigo,  a ideia de liberdade é desdobrada em “liberdade de consciência” e “liberdade religiosa”. Esse Inciso também protege o “exercício de culto e seu local”. Ou seja, a liberdade de consciência não é a mesma coisa que liberdade religiosa, pois a liberdade de consciência diz respeito ao âmbito ético, que pode ou não estar presente na consciência religiosa.  E quando a Constituição fala em “local de culto”, ela evita usar os termos  “templo” ou “igreja” , pois há religiosidades que se expressam em terreiros, não em templos ou igrejas, e os terreiros são  lugares de culto tanto  quanto templos e igrejas ( “templo”: “casa onde mora o Deus”; “terreiro” : “terra ou chão onde o divino se manifesta”, inclusive cantando e dançando).

A Constituição fala em “liberdade religiosa”, ela não fala nesta ou naquela religião determinada como superior às outras.   E no Inciso VIII é defendida a “liberdade de convicção filosófica e política”. Convicção filosófica é  uma “visão de mundo”: todas as visões de mundo são permitidas, incluindo  o ateísmo, se  for a convicção de uma pessoa no uso de sua liberdade. Já a liberdade de convicção política compreende todos os matizes do espectro  político, do branco e azul liberal  ao vermelho socialista/comunista, passando pelo preto com a letra “A”  da bandeira anarquista. Só não há e nem pode haver liberdade para o  fascismo, pois fascismo não é convicção política, fascismo  é negação  da política e da própria liberdade.  Assim, querer negar e criminalizar uma determinada  convicção política fere a própria norma que garante a liberdade e todas as suas faces políticas. E nenhuma liberdade é mais livre do que a outra, ou tem o direito de querer anular uma liberdade dela diferente, a  não ser empregando  a força dos tanques, rasgando a Constituição e  cultuando  a barbárie.  

E o mais importante : o Artigo 19 estabelece que a União, os Estados, os Munícipios e o Distrito Federal não podem favorecer ou aparelhar uma igreja  e colocá-la a seu serviço , buscando assim extrair mais valia teológico-política. O Estado não pode ser laico apenas em palavras, e na prática ser um poder teológico-político  que favorece determinada igreja ( e ao  falar aqui em “igreja”,  e não em “religiosidade”, a Constituição quer se referir à instituição religião enquanto forma de poder). A religião não pode ser o critério para alguém ser indicado como  ministro do Supremo , advogado da União ou procurador da República. Isso também é uma forma de corrupção que nega a própria  Constituição e a ameaça.  

sábado, 24 de abril de 2021

a visita inesperada

 

Ontem , no meio de uma linda tarde de outono, olhei pro céu e vi a lua. Foi  curioso  vê-la assim em pleno dia.  Mas o dia não desfez o seu mistério: ao contrário, o aumentou mais  ainda . Brilhava ela suavemente  no claro céu azul ,  quieta, na dela, sem precisar fazer força para chamar a atenção.  Ela parecia saber que somente os fiéis a ela iriam notá-la e agradecer por aquela inesperada  visita ,  presença silenciosa que melhora o dia. Já o sol nunca poderia visitar a noite sem que a mesma noite ele apagasse. O sol não aceita o mistério  : ele é a razão autocentrada, masculina , que apenas  em torno de si gira, como  Narciso . Mas a lua  , sem negar  o sol e seu dia, às vezes aparece no meio da tarde, como ontem,  para nos lembrar  dela e de sua poesia . Ela   parece  dizer : “apareci para não deixar sem minha luz aqueles que, apesar dos pesares, ainda creem   que o mundo pode ser mudado;  senti que os que são assim  precisavam hoje  de minha companhia e cuidados, embora não seja meu horário. Não inspiro só os poetas, também posso ser enfermeira na hora do desamparo . As estrelas não puderam vir comigo , o sol não deixa, mas mandaram um infinito  abraço”. 

(esta experiência com a lua ontem me lembrou este belo filme de Fellini; no texto de apresentação do DVD está escrito: “O filme A voz da lua  é um poema contra a intolerância.” Fica aqui a sugestão)



Tentei fotografar a lua que vi ontem à tarde , infelizmente a foto não ficou boa. Esta não foi tirada por mim, peguei na internet, mas dá para ter uma ideia:











sexta-feira, 23 de abril de 2021

rosebud, a mônada e o tempo

 

O filme “Cidadão Kane”, considerado o melhor filme de todos os tempos, inicia-se com a seguinte cena: um homem envelhecido está deitado numa imensa cama , porém  sozinho. O quarto é amplo e  luxuoso , mas não há ninguém ao seu lado, parentes ou amigos. Há apenas uma enfermeira ao longe aguardando que aconteça o que está prestes a acontecer : a morte daquele homem . Ele segura com a mão uma pequena esfera de cristal, imagem simbólica de sua alma-mônada. No interior da esfera vemos uma paisagem com uma casa simples  toda coberta de neve. De repente, ele arranja forças e pronuncia sua última palavra em vida : “Rosebud” (  “botão de rosa”, da rosa se abrindo). Após isso , o homem deixa cair a esfera de cristal, que vai ao chão e se quebra.  Um jornalista quer saber quais foram as últimas palavras dele. Quem informa é a enfermeira: “O Srº Kane apenas disse: Rosebud”. Esse jornalista resolve investigar quem    foi “Rosebud”, imagina ser o apelido de alguém marcante  afetivamente para Kane. Assim, a narrativa mergulha no passado daquele homem biliardário, considerado     o “dono do mundo” .

A primeira cena que  surge é  uma paisagem toda coberta de neve, como aquela  aprisionada no interior da mônada  de cristal. Mas agora a paisagem está livre  , é parte do mundo real. E vemos um garotinho  com seu pequeno trenó. Um trenó artesanal e simples, porém valioso para o menino em seu brincar inocente e lúdico, como se de nada mais precisasse. Perto dali, da janela de um casebre modesto uma senhora chama: “Kane!”. Era a mãe do menino , aquele que se tornará o poderoso , invejado e temido Cidadão Kane. No interior do casebre também estava  um endinheirado  banqueiro. Na pequena mina da família foi descoberta uma imensa jazida de ouro.  O banqueiro se oferecia para gerenciar  o ouro  e a educação do menino, prometendo lucros, poder, prosperidade.  Embora o menino resistisse   golpeando com o trenó o capitalista-banqueiro, a mãe é convencida a entregar o filho para ser criado pelo homem do dinheiro.  Então , o menino cresceu nesse ambiente onde tudo parece ter seu preço :  coisas,  afetos, homens.  

Durante a história, o jornalista  entrevista  ex-namoradas e  ex-esposas de Kane , porém nenhuma  é ou sabe quem foi “Rosebud”. Desistindo da procura, o jornalista conclui ser “Rosebud” um mistério  que  morreu com seu dono. Embora rico, Kane  deixou  dívidas imensas. Os executores dessas dívidas fizeram  um inventário no castelo de Kane para separar o que tinha valor do que não tinha. O que não tinha valor era lançado numa fogueira . Eles encontraram aquele antigo trenó do menino Kane,  guardado como se fosse um tesouro . Não compreendendo  tanto cuidado com um brinquedo  velho e barato, deram de ombros e disseram: “Isso não vale nada, joga no fogo!”. Quando  caiu no fogo e começou a ser devorado pelas  chamas, o lado de baixo do trenó  ficou visível, e nele estava bordada a seguinte palavra: “Rosebud”.




Revi este filme ontem, e fica a dica para quem ainda não o viu ou pensa em rever. Creio que mesmo para quem ainda não assistiu  ao filme,  o relato que fiz não tira a grande descoberta que é ver diretamente a narrativa, cuja força está nas imagens, direção e edição de Orson Welles. Nenhuma interpretação em palavras desse grande filme consegue esgotar os vários sentidos latentes da obra. Além disso, é um dos maiores filmes sobre o tempo, a “imagem-tempo” ( como diz Deleuze ao escrever sobre o filme). E mesmo quem já o assistiu, sem dúvida pode ter uma interpretação diferente da  que tive, já que o filme é uma “Obra Aberta”, sobretudo o final.




quarta-feira, 21 de abril de 2021

sociedade fechada e sociedade aberta

 

Segundo o filósofo Bergson, existem dois tipos de sociedade: a fechada e a aberta. A sociedade fechada é representada sobretudo pela ideia de “pátria”, extensão simbólica da família patriarcal ,  uma microssociedade igualmente  fechada . Muito se fala em “amor à pátria”, porém  inúmeras vezes esse amor se alimenta  do ódio às outras pátrias: incontáveis guerras foram deflagradas em nome do “amor à pátria”. E há ainda  os que se acham “donos da pátria”, paranoicamente  sempre  perseguindo  aqueles  que eles consideram  “inimigos internos da pátria”.  Os pretensos “donos da pátria” consideram “inimigos internos da pátria”   aqueles  que agem por  uma sociedade mais igualitária e plural, uma Mátria não patriarcal.

 a sociedade aberta, segundo Bergson,  não é nenhuma pátria, por maior que uma pátria seja. A diferença entre a sociedade fechada e a sociedade aberta é a mesma que há entre o finito e o infinito, ou entre a  cerca que limita e o horizonte que amplia. Existem muitas sociedades fechadas, porém a sociedade aberta é uma só, ao mesmo tempo una e múltipla. A sociedade aberta é a humanidade. O inimigo de uma pátria  pode ser outra pátria, mas o inimigo da humanidade é quem governa com insanidade uma pátria pondo em risco não só os que moram nela,  mas toda a humanidade . Toda pátria é um recorte feito sobre a humanidade, de tal modo que todo habitante de uma pátria também o é, primeiro , da humanidade. Quando uma pátria se acha superior ao restante da humanidade, surge  então a pátria nazifascista cujo poder se alimenta  da  desumanidade. O amor à pátria se torna excludente e negacionista  se não for inserido no amor à humanidade enquanto prática ética e política de proteção da humanidade de cada um. Os defensores de toda   pátria vestem uniformes militares  e pegam em armas, mas os defensores da humanidade seguram  livros, pincéis, lápis... sem largar a mão daqueles que os donos da pátria perseguem ou deixam sem teto, sem terra, sem justiça, sem dignidade, com fome.

Pertencer a uma sociedade fechada é falar uma língua determinada e ocupar determinado território. Mas pertencer à humanidade é se reconhecer em toda fala que , fazendo-se ação, potencializa  a  vida e a  liberdade,  não importando a nacionalidade. Nenhuma pátria pode ser realmente livre e independente se o culto do “amor à  pátria” encobre crimes contra a humanidade.









segunda-feira, 19 de abril de 2021

HOJE, 19/04: DIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS ( E DO DEVIR-ÍNDIO QUE EXISTE EM NÓS)

 

Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um índio e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca  como se fosse um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros. Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura autointitulada “civilizada”. O antropólogo nada perguntou ao índio, e retornou   a Londres para tentar entender aquele ato que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto.

 O antropólogo   consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que explicasse   o gesto do índio.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como objeto artístico...Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o índio fez com a máquina de escrever... Graças ao ato artístico-subversivo do índio, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos.  O índio era o outro do branco, mas o branco também era o outro do índio. Nem todos são brancos, nem todos são índios, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal. É esta universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele sempre quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( como diz Manoel de Barros).

O índio da narrativa  nos ensina que talvez a arte comece no olhar, um olhar que interroga e recria, também criticamente, o sentido de nós mesmos e do mundo .

 

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios”. (Manoel de Barros)








vida, instinto, inteligência e arte

 

Segundo Bergson, a vida tem dois jorros ou impulsos : o instinto e a inteligência. Na fonte original desses dois  jorros, instinto e inteligência   coincidiam, como dois virtuais rios que ainda não se separaram da nascente . Quando se separaram, porém, um não desapareceu  totalmente  do outro, e sim um se tornou o  “inconsciente” do outro . Por exemplo, mesmo a formiga, cujo vida é governada pelo instinto, mesmo ela possui um halo de inteligência, essa porém lhe é inconsciente. No homem, ao contrário, é o instinto que lhe é inconsciente, ao passo que a inteligência é a voz de sua individualidade.  Enquanto o instinto é uma força que une o indivíduo ao todo, pois o instinto é a voz do todo, a inteligência é uma força que se expressa e se desenvolve no indivíduo.

Tanto o instinto como a inteligência têm um aspecto em comum: ambos são produtores de instrumentos. A pinça da lagosta, invenção do instinto, equivale à invenção , feita pela inteligência , da tesoura. A pinça é imutável/invariável, ao passo que a tesoura pode ser reinventada de mil maneiras. O instinto inventou asas e as deu ao morcego, já  a inteligência inventou asas que fazem as toneladas de ferro e aço do avião se erguerem no ar. As asas  do morcego , invenção do instinto, ligam o indivíduo à espécie, enquanto as asas do avião trazem a marca da individualidade que a inventou.

Para que a inteligência não se volte contra o todo da sociedade, que é seu inconsciente, a vida pôs no indivíduo o equivalente à necessidade do instinto: a vida pôs o hábito. Essa palavra vem do grego “ethos”, raiz igualmente do termo “ética”. Hábito é aquilo que é adquirido. A pinça da lagosta não é adquirida, ela é inata à espécie. Já o hábito é um comportamento que se repete tendo como base a liberdade. As regras sociais são hábitos socialmente objetivados como imperativos, isto é,  comandos que expressam  o todo da sociedade, todo esse ao qual adere a inteligência individual . Os homens se diferem individualmente pela maior ou menor inteligência , porém todos se igualam  na obediência às regras sociais.

As regras variam de sociedade para sociedade, porém o que não varia é a necessidade de haver regras. Essa “necessidade” de haver regras não é uma forma , ela é uma potência: ela é o equivalente ao que é a necessidade que insere cada abelha na colmeia, cada formiga no formigueiro. Mas  essa necessidade de ter regras também significa a necessidade de criar novas regras,   quando as regras estabelecidas se tornam instrumentos de um poder que quer reduzir  o homem a uma obediente formiga, tal como acontece nas tiranias.

Então, assim como o instinto, a inteligência inventa instrumentos. Enquanto o instinto está  voltado para a  fonte da vida, a inteligência está direcionada  para o mundo de fora, ela está voltada  para a realidade externa que ela transforma com seus instrumentos, sendo os próprios instrumentos a realidade externa transformada ( na tesoura há o  ferro que já esteve abaixo da terra).

E as artes, qual a relação delas com a vida, com o todo da vida? A arte também cria instrumentos, mas são instrumentos que expressam aquele todo original no qual instinto e inteligência, necessidade e liberdade, sociedade e indivíduo, ainda não estão separados. Enquanto a inteligência inventa instrumentos para mudarem a realidade externa, a arte cria instrumentos para potencializarem a compreensão das realidades  interna e externa , individual e social, consciente e inconsciente, física e espiritual. A arte reata os jorros, redirecionando-os à fonte. E esse redirecionar também é o recriar um sentido para essa fonte. O poema também é instrumento , um instrumento da vida : ele ensina coisas que  a inteligência não capta; ele cria elos muito mais potentes do que o instinto. A arte expressa uma singularidade, uma individualidade não egoica, ao mesmo tempo que é a voz de um coletivo heterogêneo e aberto. O instinto é o inconsciente da inteligência; e a inteligência, o inconsciente do instinto. Mas a arte é a expressão do pensar da vida, um pensar que une inteligência e instinto, indivíduo e sociedade, consciente e inconsciente, liberdade e necessidade.


- o texto é um comentário a este livro:



 

sábado, 17 de abril de 2021

o poder teológico-político 2

 

Existe um tipo de “religião” no Brasil que não deveria ser chamada de religião, até para não generalizar e confundi-la com as  designações cuja fonte é Lutero. Assim, essa pretensa religião deveria ser chamada pelo seu verdadeiro nome e prática: “poder teológico-político”. Foi Espinosa quem melhor diagnosticou esse tipo de poder.

O genocida lançou-se e se manteve na política sem ter base social. Nem síndico ele foi, nunca liderou nada. Ele se lançou à vereança no Rio  com a seguinte palavra de ordem: “Bandido bom é bandido morto” ( não por acaso, lema também da milícia...).  Inimigo da pluralidade  social , desde  2016  o genocida encontrou  a “base associal”  que lhe faltava: o poder teológico-político. Desde então, a palavra de ordem completa  na verdade   é :“Deus acima de tudo, Brasil acima de todos: bandido bom é bandido morto, pátria aRmada Brazil”. Hoje, o tal “bandido” não é apenas o povo preto e pobre da favela, também são  “bandidos” para eles os “esquerdistas”, os educadores, os artistas, os constitucionalistas, os defensores das florestas, os pajés, as mães de santo, enfim, os médicos e enfermeiros  que cuidam e protegem a vida . No delírio paranoico-teológico-político, todos esses são “comunistas”.

O poder teológico-político cresce com a mesma lógica predadora de uma  doença. Segundo Espinosa, o que caracteriza toda doença, tanto as do corpo quanto as da mente, tanto as individuais quanto as sociais, é que a doença é um “mau encontro”, um “mau encontro” que gera tristeza no enfermo. Tristeza é enfraquecimento da potência vital. A doença avança pelo corpo como um exército invasor se apoderando da pátria que invadiu: o que antes pertencia ao todo do organismo, a doença vai tomando conta e colocando a seu serviço destruidor , como se criasse, dentro do organismo original, um organismo paralelo-parasita sufocante.  Assim procede o poder teológico-político, base associal do genocida: extrapolando os templos, esse poder se infiltrou   no organismo  social comprando televisões, rádios, jornais, almas. Esse poder  tem sua polícia ( literalmente...), seu parlamento, sua música, suas novelas, seus filmes, seu “Messias-presidente” e até suas drogas ( no Rio há uma associação macabra entre pastores-bolsonaristas  e o tráfico para perseguir e destruir terreiros de religiões afro-brasileiras). Enfim, esse poder tem até mesmo a “sua” realidade, realidade essa onde a terra não é redonda, mas plana; na qual o vírus não é um evento da natureza, mas um castigo de Deus contra os “ímpios” ( os “ímpios” são aqueles que não fazem parte do projeto de poder teológico-político deles).Contra os ímpios se pode odiar , perseguir e ameaçar apontando  arminha com a mão. Hoje, não basta a arminha simbólica com a mão, esse poder teológico-político   também quer a seu serviço os tanques do exército. Quando  esses “vendilhões do templo”  apontam sua arminha com a mão contra quem eles demonizam ,  acertam primeiro com sua ignorância o próprio Cristo, vindo   à frente protegendo os injustiçados e oprimidos.     

( imagem: "Cristo sem-teto", do artista-escultor  Timothy P. Schmalz)





quinta-feira, 15 de abril de 2021

as poetas da tribo

 

Sempre que se pensa em mitologia, surgem os nomes de  Homero e Hesíodo. Mas esses poetas eram referências eruditas cultuadas pela aristocracia. Aliás, Homero e Hesíodo não criaram os mitos, eles apenas os relataram por escrito, e não foram os únicos a fazerem isso. Porém  o mito enquanto relato oral que dava sentido às práticas , quem mantinha os mitos assim vivos e imanentes à vida concreta  eram as mulheres. Mães, amas de leite ( equivalentes às  nossas “mães pretas”), poetas, educadoras...eram elas que , pela palavra falada ,inseriam o mito na vida, retirando o mito da alma e do corpo delas, como poesia que se vive e recria.  Essas mulheres não eram exatamente anônimas, elas eram “pessoas coletivas”. Esse termo, “pessoa coletiva”, é como o pensador indígena  Krenak se refere aos poetas da tribo. Mas um nome dessas “contadoras de história” é conhecido: Diotima, a sábia que Platão cita ao recontar um mito que ouvira da boca dela. Essas contadores de histórias também eram professoras, poetas , pensadoras, filósofas. E era com elas que a poesia se tornava a base efetiva da educação grega, a Paideia.

Quando o racionalismo falocrático triunfou na Grécia, houve uma perseguição à  poesia e à mitologia como base da Paideia. Mas a motivação  dessa perseguição também era política : reprimir e calar  o feminino, ou o devir-feminino,  enquanto produção de sentido não patriarcal e macho-centrado.

A Grécia também teve seus “Sultões”, como aquele que quis calar Sherazade. Mas Sherazade  não se calou e produziu sua “linha de fuga” poético-libertária ,e é nessa linha que também devemos segurar  para produzir agenciados a nossa liberdade, com pensamento, afeto, ação e poesia.


( imagem: capa do belo  livro “O amanhã não está à venda”/ de Krenak)



quarta-feira, 14 de abril de 2021

eros, afrodite e psiquê

 

Eros primeiro  amou Afrodite, achando que Afrodite era tudo; até que Eros  conheceu Psiquê, esquecendo de imediato Afrodite. No início ,   Eros foi só de Afrodite;  depois  esqueceu Afrodite e passou a ser só de Psiquê. Com isso, Eros  produziu  tristeza em Afrodite , ao mesmo tempo que mantinha Psiquê ignorante de que ele já havia amado, e muito, um outro ser. Por isso, Eros fazia de tudo para que Afrodite e Psiquê se ignorassem, como se a alegria de uma fosse a dor da outra, de tal maneira que a felicidade de ambas ele não poderia oferecer. Na mitologia, Eros é o Amor, Afrodite simboliza o Corpo, enquanto Psiquê é a Alma.  Assim, os gregos achavam que o Amor não pode amar, ao mesmo tempo, o Corpo e a Alma. O Corpo proporciona  prazer ao Amor, enquanto a Alma lhe faz nascer a Sabedoria ( Sophia). “Prazer” em grego é “hedon”, de onde nasce “hedonismo”. Ou o Hedonismo ou a Sabedoria:  essa deve ser, segundo os gregos, a escolha que a parte de nós que ama deve fazer. Platão, por exemplo, fez da escolha exclusiva do Amor pela Alma a base de sua filosofia, ao mesmo tempo condenando o Corpo como não tendo, para o pensar, nenhuma serventia. Para Platão, filosofar é aprender a morrer...

Plotino não concordava com essa visão dicotômica , nisso inspirando a Espinosa. Segundo Plotino, a função maior do Eros-Amor , a sua utilidade suprema , não é escolher entre a Alma e o Corpo, mas fazer a Alma e o Corpo unirem-se um ao outro para viverem o ato de pensar  como paixão  pelo viver.

 

“Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós.” (Manoel de Barros)


( gostaria de sugerir este filme de Kurosawa; infelizmente, não consegui achá-lo inteiro na web)



-trecho do filme "Viver a vida", de Godard:





sábado, 10 de abril de 2021

política dos afetos: a clínica

 

Certa vez, quando eu passava por um momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. Angustiado, eu pensava que não sobreviveria à operação. Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente a ser operado. De repente, adentra a sala de cirurgia o cirurgião. Ao vê-lo, meu medo desaparece, cheguei até a sorrir...Pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa! No princípio, achei estranho . Mas depois percebi que fazia sentido ser um poeta o cirurgião de um coração angustiado. Sem demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi : não sangrou , nem houve dor. Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. Somente as duas mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito : "Ele está pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o cirurgião-poeta. “O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa com o passado, a decepção com o presente , o medo do futuro e a descrença nos homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso. Quando olhei para a mão do poeta , meu coração estava minúsculo, parecendo uma semente salva de um fruto que perecia. Protestei: “poeta, com esse coração pequenino não vou sobreviver!” O cirurgião-poeta então respondeu, terminando sua arte, sua “clínica”: “Ele está assim pequeno porque deixei apenas o coração da criança.” Após ouvir isso acordei, e não apenas daquele sonho. Olhei pela janela: já amanhecia . Queria registrar o sonho e me virei para procurar  caneta e papel. Então, algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.

 

“Os delírios verbais me terapeutam.”(Manoel de Barros)

 

( obs.: Segundo Espinosa, os raciocínios são importantes, porém os raciocínios expressam apenas a potência da mente. Quando se trata de vencer os afetos que despotencializam a vida, tanto a vida individual quanto a vida coletiva, apenas raciocínios não conseguem , pois os afetos não estão apenas na mente , eles estão também  no corpo. Não apenas um indivíduo possui corpo, também o possui a sociedade, o corpo social. E o corpo social também adoece...Assim, somente um afeto é capaz de vencer outro afeto : somente um afeto afirmador da vida , da vida pessoal e coletiva, é capaz de vencer o afeto que enfraquece a vida , a nega  e a põe sob risco. Somente a alegria é capaz de vencer a tristeza, só o amor derrota o ódio. O amor ao pensamento engendra a ação que não se curva à ignorância; a alegria de querer  viver é potência e  antídoto contra os que nos querem mortos. Os afetos também pertencem ao campo da ética e da política, com afetos também se resiste e luta)








quinta-feira, 8 de abril de 2021

o poder teológico-político

 

Uma das palavras com origem mais bonita é “contemplar”. Em grego, “templo” é : “casa onde habita o divino”. Assim, “con-templar” é : “entrar onde mora o divino”. Para os gregos, o divino se traduzia em muitas coisas, incluindo a própria natureza ( “physis”, cuja origem significa: “aquilo que brota”). Quando cobravam de Sócrates que ele nunca era visto nos templos da cidade como “todo homem de bem”, Sócrates dizia que o templo onde realmente o divino mora é o coração, e nesse templo Sócrates se dizia assíduo, para assim não ter a pretensão de se achar superior aos outros homens. Pois  aqueles nos quais o coração está vazio , dissimulam construindo   e frequentando templos de ouro ( para a construção dos quais sabem com lábia esperta sugar dinheiro dos ingenuamente  crédulos). Esses cultuadores  de templos de ouro,  muitos deles também juízes e advogados, por ressentimento , esperteza e vingança,  armaram contra Sócrates e o condenaram à morte. Viam nele um perigo... Havia também na Grécia um templo cujo altar ficava à porta, ninguém precisava no templo entrar. Era o templo ao “deus desconhecido” ( Nietzsche tem um belo poema exatamente com este título: “Ao deus desconhecido”). Em vez de estátuas ou imagens, no centro do altar havia um mármore com superfície espelhada, que mostrava refletido  o rosto de quem nele olhava. “O deus desconhecido”, dizia a frase abaixo do espelho,  “ou mora dentro de você ou não mora”. Para Espinosa, por sua vez, a natureza inteira é divina. É a imaginação delirante e as pretensões de poder que levam o negacionista a negar esse templo-infinito, colocando-se à parte da natureza, a tal ponto que  a destrói  com ódio ou a demoniza, a natureza fora e dentro do homem.  Espinosa deu um nome a essa forma de negacionismo: “poder teológico-político”, pois essa forma de negacionismo da natureza sempre busca o poder político, para assim se assenhorar  do Estado e suas fontes de poder , repressão, censura e dinheiro.


- poema de Solano Trindade: "Tem gente com fome".







quarta-feira, 7 de abril de 2021

o carrasco e aqueles que ainda se iludem

 

Segundo Espinosa, é uma ilusão imaginar que um homem autoritário  poderia se tornar um homem justo se assim o quisesse, como se a passagem da tirania  à justiça   dependesse  de um ato de vontade de tal homem. É ilusão ainda maior imaginar que quem promove a morte e a ignorância um dia mudará e passará a cultivar a vida e o conhecimento. Esse tipo  de ilusão é comum aos que se colocam  como “neutros” politicamente, além de ser a máscara esperta  dos dissimulados que tiram proveito comercial da morte , porém posam de indignados em “notas de repúdio”. Essa ilusão psicológica, que se torna trágica no campo da política, nasce da  crença que se alimenta de uma passionalidade emotiva, que abdica de agir e passa a “esperar” que, enfim, o carrasco se tornará um amigo empático ao nosso sofrimento. Publicamente o carrasco até finge que mudará, mas entre os seus ele ri e zomba enquanto afia seus instrumentos de tortura. Se um homem autoritário , perverso e torturador   não consegue se tornar alguém diferente,  é porque disso ele não é capaz, ou seja, essa incapacidade é uma amostra pública não da  impotência  de sua  vontade, mas da natureza vil de seu caráter, um caráter de torturador sádico. Se olharmos para aquilo que ele de fato  é,  e  não com  esperanças cegas  de como ele deveria ser, veremos que o torturador tem uma vontade bem determinada. Determinada não em mudar, e sim  determinada em continuar a  torturar: a nós, aos doentes, a democracia. Se um homem alcançou o poder por intermédio do voto não escondendo  de ninguém que é autoritário, genocida, preconceituoso, misógino...é uma ilusão achar que ele mudaria de natureza exatamente quando chega ao poder ( como pensavam que  mudaria,  e ainda pensam que  vai mudar  , setores da mídia golpista e parte do judiciário que apoiaram e ainda apoiam , por cumplicidade, covardia  ou conveniência,  o genocida). Ao contrário, a obtenção de  poder tornará esse homem ainda mais despudorado  em ser como ele é , ao mesmo tempo que conseguirá reunir com mais submissão gente ao redor dele, gente que é como ele  , mas que tinha vergonha de assumir sua ignorância e baixeza  em público. Por outro lado, isso também deixará mais evidente quem é diferente dele e de seu rebanho, e a eles resistirá.

domingo, 4 de abril de 2021

livro: poesia pode ser que seja fazer outro mundo

 (trecho da Apresentação do livro)

Este livro nasceu de evento-homenagem ao poeta acontecido em outubro de 2016, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tal como no evento, quisemos fazer um livro-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo filósofos, poetas, pesquisadores, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para a invenção de ideias. Manoel foi para nós um intercessor.O intercessor-Manoel nos colocou em “estado de embrião”, como “forma em rascunho”, no limite de nós mesmos, desabrindo-nos. Somente dessa maneira pudemos, com Manoel, ousar um “afloramento de falas”.
Os artigos aqui presentes são testemunhos desse pôr-se em rascunho. Apenas assim, “deslimitados”, podemos tentar dizer, sendo muitos, o que Manoel disse sendo único.
                                                                                                                                            
(“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, título do livro,  é um verso do próprio Manoel. Livro lançado em abril/2018, pela Editora 7letras. A orelha do livro apresenta também precioso texto do escritor  Paulo Vasconcelos)








- trecho do filme "Língua de Brincar", de Gabraz Sanna ( um dos autores do livro):



LAUTRÉAMONT


 

As geleiras são mares congelados;  

e o oceano, geleiras que descongelaram.

As nuvens são rios que transpiraram, 

e que de novo descem quando o céu chora.

Sessenta por cento de meu  corpo é feito dessa água,

que sempre ferve quando pelo meu coração passa.






sábado, 3 de abril de 2021

heráclito e o eterno retorno

 

Às vezes, uma mesma realidade pode ter sentidos simbólicos diferentes e até mesmo  opostos. Por exemplo, o fogo. Quando é fonte de luz, tal como se vê no sol, o fogo é símbolo de uma força cósmica que traz vida e desfaz as trevas, tanto as trevas de fora como as de dentro do homem (  chamadas por Jung  de “sombras”). Em Platão, por exemplo, o fogo do sol é o símbolo do espírito, gema irradiante da alma. Quando é empregado para transformar a natureza, seja cozinhando o alimento ou como chama  metalúrgica  que fabrica ferramentas, o fogo é o símbolo da inteligência, isto é, da ciência. Na mitologia, Prometeu ofertou  esse fogo-inteligência  ao homem, porém faltou ao homem iluminar-se por dentro com a luz do sol-espírito. Pois com o fogo recebido o homem fabricou não apenas ferramentas, fabricou também destruidoras  armas que logo se tornaram instrumentos a serviço das sombras  internas do homem. E aqui vem a terceira simbologia do fogo: quando é empregado para destruir a natureza ou ao outro homem. Esse fogo-destruidor é o símbolo da ignorância:  fogo que ameaça o espírito e nega a ciência.  Segundo o poeta Goethe, a fonte desse fogo-destruidor   não é o sol que brilha no céu, a fonte do fogo-destruidor   é o mundo subterrâneo onde reina    Mefistófeles e sua lúgubre  fogueira.  Uma das materializações desse fogo-destruidor é  a “arma de fogo”,     hoje  transformada em objeto de culto dos fascistas-milicianos.

Somente em um caso o  fogo cósmico  também destrói, porém  destrói para construir. Trata-se do  fogo cuja luz  também é escultora, pintora, compositora, enfim, artista. Esse fogo-artista  foi pensado e descrito  por Heráclito em suas intuições filosóficas expressas como poesia. Esse fogo-artista não está apenas no sol, ele também está na infinita e variada luz das estrelas. Ele também vive  na luz misteriosa da lua. Heráclito dizia que esse infinito  fogo-artista , potência  cósmica inapagável,  a tudo constrói, porém também destrói para depois construir de novo, eternamente: sem culpa , maldade ou  ressentimento, o fogo-artista  é o Eterno Retorno de uma Vida  Inesgotável e  Infinita. Seu destruir não é ódio, assemelha-se mais ao brincar inocente da criança que , à beira da praia, brinca de construir e dar forma à areia, para logo depois destruir o que se enrijeceu , para   reinventar a vida de outra maneira.


“Só podemos destruir sendo criadores”. ( Nietzsche)


“Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol”. (Manoel de Barros)


(Imagem: “O ovo cósmico” / Salvador Dalí)



 "Sol e vida"/Frida Kahlo:



"O sol" / Staël:



"O sol" / Munch: