terça-feira, 29 de dezembro de 2020

auroras...

 

Manoel de Barros dizia que “tudo aquilo que é verdadeiramente novo  nunca vira sucata.” Se 2020 está virando sucata , é porque não está nele o tempo novo. Onde então está o tempo novo? O poeta assim responde: o tempo novo é sempre como uma aurora , para nos inspirar a  fazer também  uma.

Desejo às amigas e amigos  mais do que um Ano Novo, desejo-lhes  auroras  sempre novas, pois  cada aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é dia novo, e não apenas o 1º de janeiro.  Que nos inspirem  a “não velhez” manoelina ,   o “esperançar” freireano e a    perseverança que nos ensina o libertário  Espinosa.

Certa vez acordei, na alta madrugada, de um sonho ruim.  Esse sonho ruim   que tive não foi  pior, porém,  do que esse pesadelo fascista que diuturnamente estamos vivendo ( e  para vencer esse pesadelo político também é preciso que , juntos e agenciados, acordemos ). Quando fui à janela respirar um pouco, também me trouxe  ar esta cena que vi e registrei nesta foto:







- letra da música cantada no vídeo:







sábado, 26 de dezembro de 2020

o pensar-pulsante

 

O coração é o primeiro dos órgãos a se formar. Ele se forma antes do cérebro, antes dos pulmões, antes do estômago. O coração é o órgão primogênito nascido após o encontro amoroso das células sexuais vindas da mãe e do pai. Quando o coração surge, o ventre  , parte do ser da mulher, torna-se  também útero: espaço que gera um ser novo .  No feto, o coração começa a bater  por volta do décimo sexto dia. Essa primeira batida é como um micro “Big Bang”  que inaugura o universo de uma nova vida. A vida  começa como  uma pulsada música ,  o ritmo   vivo de cada um .  Alguns filósofos antigos  achavam que era o coração , e não o cérebro, a sede dos pensamentos. Talvez eles não estivessem  errados , movidos que estavam pela intuição de um pensamento originário, um pensar-pulsante,  do qual o coração é a sede e o agente. O pensar nascido do coração é tão originário, tão afirmador da vida, que mesmo quando o cérebro de um paciente terminal  para de funcionar , o coração prossegue pulsando como o último fio de vida .

Quando estamos tristes ou nos imaginando  derrotados  , nosso cérebro  parece que perde a vontade de pensar, deixando-nos resignados; porém  o pensar do coração tem uma força maior que toda vontade :estejamos alegres ou tristes, saudáveis ou doentes, o coração  pulsa não por escolha, mas por vital necessidade.  O pensar do cérebro tem por sujeito o “eu”, já  o pensar do coração é criação da vida , sua arte originária .  Ideias como “ O Nada” e “A Morte” são fantasmas engendrados pelo cérebro, ao passo que o pulsar do coração é a vida afirmando  a sua continuidade frente ao   “Nada” e  resistindo à “Morte”. As ideias que o cérebro pensa dependem   dos neurônios; porém os neurônios  não conseguiriam respirar não fosse  o oxigênio que o coração lhes envia no fluxo do sangue: antes de os neurônios pensarem, o coração pensa neles antes. 

Creio que todas as ideias que o cérebro pensa o coração é capaz de senti-las, para assim avaliar o quanto tais ideias enfraquecem ou fortalecem a vida, se são veneno ou remédio.  Mas por virem  antes e terem  primazia, as ideias originárias do coração somente ele é capaz de pensar :são ideias não teóricas, ideias para serem sentidas também com o corpo,  como as ideias da poesia.  São essas ideias pensadas-sentidas  que dão sentido à vida , e fornecem à vida que avança um perseverante “sopro” .


“Por mais longe que a razão nos leve,

leva-nos mais longe o coração". (Goethe)


( o livro de Clarice é uma sugestão de leitura, pois poucos chegaram tão perto desse pensar originário , um pensar que também se sente, na dor ou na alegria, quanto Clarice)






terça-feira, 22 de dezembro de 2020

o presente

 

Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do natal, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que  papai noel deixou sobre minha cama: uma bola. Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria mesmo  era ver o papai noel! Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!” Eles me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?” Mas eu só via as estrelas... Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais : “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre foi velho ou um dia foi criança?” Porém  meus pais acabavam indo embora para cuidarem da ceia, deixando sem resposta meus interrogares  poético-metafísicos. Após um bom tempo olhando o infinito , eu  me lembrava do presente  e voltava correndo para brincar  até tarde. Eu terminava  indo dormir abraçado à bola...

No ano seguinte mudamos para  nova residência. Na noite do nosso primeiro natal no apartamento novo, fiquei de soslaio espreitando a janela.  “Ainda não é meia-noite, papai noel  ainda não veio”, dizia meu pai. Houve um momento em que vi meu pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que eu notei aquela comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo. Meu pai saiu de fininho, enquanto minha mãe tentava me distrair  e aos meus irmãos  com o panetone. Mas eu só fingia olhar para o panetone, eu queria é surpreender o papai noel entrando sorrateiro pela janela. Se meus queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas. Eu nem fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as respostas às questões poético-filosóficas. Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei estranho...Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito sombra: meu pai carregava pacotes de presentes ...

Foi instantânea a minha compreensão do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco desiludido .Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros, porém começava a ler o mundo . Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e nada disse . Senti ali uma solidão diferente : um estar só sem ficar triste. Enquanto meus irmãos corriam para o quarto, fui à janela para receber outro tipo de presente: olhei para o imenso céu e me horizontei, com uma intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa.  Hoje sei que o interrogar não vinha de mim, vinha do próprio infinito oferecendo-se como presente , para nunca deixar morrer aquela criança questionadora dentro da gente.





-  imagem da postagem :"Noite estrelada sobre o Ródano", de Van Gogh; o texto que compus com a imagem é um trecho de um soneto de John Keats dedicado a Homero ( no poema , Keats descreve a sensação que teve ao ler Homero durante uma noite inteira , indo depois ver o céu).












sábado, 19 de dezembro de 2020

HOJE, 19 DE DEZEMBRO : DIA DO NASCIMENTO DO POETA MANOEL DE BARROS

 

O poeta Manoel de Barros já passava dos 80 anos quando um editor pediu que ele escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. Imaginava o editor que o longevo poeta teria  muito a falar de si, sobretudo de seus prêmios , sucesso e  fama ( que vieram para Manoel somente após idade avançada). Talvez se esperasse que Manoel  , numa volumosa  “Memória da Velhice”, desse  conselhos e proferisse palavras de sabedoria nascidas de sua  avançada idade.

Depois de algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro: “Memórias da primeira infância”, um livro maravilhoso , livro da “verdez das coisas”. Meses depois, o poeta deu à luz nova publicação: “Memórias da segunda infância”, um rejúbilo , um “ir à origem que renova”.  Após novo intervalo, outra obra nasceu: “Memórias da terceira infância”, livro de “natências”  , reinvenções , horizontamentos. Como as memórias da vida adulta e sobretudo da velhice não apareciam, o editor tomou coragem e indagou Manoel a respeito, e assim o poeta respondeu: “ só tive infância, não tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

 A palavra “velhez” é uma invenção do poeta, um neologismo. “Velhez” não é uma idade, “velhez” é quando os dias vividos se tornam um peso curvando as costas, não importando a idade que se tenha. “Velhez”   é a  vida  prostrada, de joelhos, sem forças para caminhar e avançar. Às vezes, é a própria sociedade que sofre de “velhez” : quando seu futuro , ainda nem chegado, já parece extinto...

“A única coisa que carrego é meu chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel nomeia as ideias que protegem os pensamentos que dão caminho às pernas : “O poeta-andarilho abastece de pernas as distâncias”. Sobre o  chapéu do poeta  um casal de pardais fez um ninho: há nele ovos sendo chocados, assim como dentro do poeta  dias novos.

O poeta também diz que  "velhez" é um tipo de vida  que se perdeu de seu "embrião", de seu começo e “minadouro” . O embrião nunca  está num passado remoto e morto. Mesmo o imenso rio amazonas tem seu embrião lá no alto dos Andes: mesmo há muitos anos a correr , o rio ainda está a nascer agora, umbilicado às águas novas. O que para o rio são as águas, para o poeta são as fontanas palavras de seu “devir-criança”: “A palavra até hoje me encontra na infância ; não avanço para o fim, avanço para o começo: para a Origem que renova ” (Manoel de Barros).






E ontem se foi Dona Stella Barros, esposa e companheira do poeta. Se na ponta do lápis do poeta havia tanta vida, é porque sobre a mão dele, enquanto ele escrevia, havia também a mão de Dona Stella. Ela se foi na véspera do dia em que Manoel chegou; porém  os dois se encontraram , para nunca mais se separarem, em cada poema que o poeta criou, sempre afirmando e celebrando a Vida.



sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

sobre os doentios...

 

Sempre associamos os vírus às doenças. Na Idade Média se achava que as doenças  eram odiosos demônios. Por extensão, os ignorantes daquela época acabavam por odiar não apenas as doenças, eles odiavam também  o próprio doente, lançando-o à fogueira... Com o desenvolvimento do conhecimento descobrimos que o vírus age como age não por ódio a nós, tampouco ele é o enviado de demônios. O vírus  age como age porque ele busca a sua saúde própria. Para o vírus, sua saúde é reproduzir-se e multiplicar-se  enquanto ente vivo. E ele faz isso nos usando como meio. A saúde do vírus é a nossa doença. O que chamamos de doença é a saúde do vírus vista sob nossa perspectiva. Não foi odiando ou demonizando os vírus que conseguimos vencê-los, mas sim adquirindo amor ao conhecimento. Pois o conhecimento é o instrumento da nossa saúde enquanto humanidade civilizada. O conhecimento nos levou a compreender não somente como o vírus pode nos matar, mas também  como ele vive. Pelo conhecimento, passamos a conhecer sua maneira de ser e agir. Vencemos  os vírus não os matando totalmente, mas os usando a nosso favor, pois as vacinas são feitas com fragmentos de vírus , para assim fortalecer nossa capacidade de nos defender. É afirmando a si mesmo, potencializando-se, que nosso  sistema imunológico vence o vírus, e não  simplesmente o negando ou demonizando .  Quando olhamos a vida de uma perspectiva mais ampla, compreendemos que não existe doença em si, existe apenas saúde. “Saúde” significa “potência”. O conhecimento é a nossa saúde maior, dizia o médico-filósofo Espinosa.

Mas acontece algo diferente com aquilo que é “doentio”. O doentio é uma mentalidade que existe  em certo tipo de gente,  o doentio não vem de nenhum vírus. O doentio, sim, é doença: uma doença que põe em risco o próprio conhecimento que nos faz vencer os vírus. Muitos desses que têm mente doentia até louvam os vírus que trazem as doenças, pois isso lhes permite pregar suas ideias doentias de que estamos no fim do mundo e que a doença é um castigo enviado por um Deus vingativo que nos odeia.

Precisamos fortalecer nossa saúde, agenciar nas ruas a nossa potência .  As mentes doentias odeiam as vacinas, por isso odeiam  a  ciência, o conhecimento, a cultura  e a educação, pois essas coisas também são vacinas que nos protegem das mentes doentias.

 

“Mesmo muito doente, jamais fui doentio. ” (Nietzsche)




quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

o arco e flecha da tribo

 

Certa vez, um antropólogo inglês visitou a tribo de um povo habitante da África. Ao entrar na habitação do pajé  da tribo , o antropólogo viu a seguinte cena:  havia uma máquina de escrever pendurada na parede, como se fosse um enfeite, um objeto artístico. O antropólogo nada perguntou ou disse. De volta a Londres, o antropólogo consultou livros e tratados para ver se achava explicação teórica para a  ação subversiva do pajé . De repente, o antropólogo  olha para a parede de sua biblioteca e vê um arco e flecha pendurados como enfeite...Então, ele compreendeu que o ato que o pajé fizera explica de forma criativa e crítica, mais do que toda teoria, o ato eurocêntrico que o próprio antropólogo fez com o arco e flecha raptados daquela cultura. Àquela época, a máquina de escrever era um dos principais frutos da inteligência técnica. Porém, o ato do pajé fez o antropólogo pensar em coisas que ele nunca pensou e  escreveu em sua própria máquina de escrever.

Graças ao ato artístico-subversivo do pajé-feiticeiro-bruxo, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos.  Todo objeto é fruto de uma prática social-simbólica. Por trás de todo objeto, mesmo de um celular de último tipo, existe uma prática social que o mercado escamoteia ao transformar o celular , ou qualquer outro objeto, em mero objeto de culto consumista, que “humaniza” o objeto ao mesmo tempo que “coisifica” o homem. Não apenas os objetos são resultados de uma prática social-simbólica: os conceitos e ideias  com os quais pensamos o mundo e  a nós  mesmos também o são.

Cada habitante daquela tribo  era o outro do branco, mas o branco também era o outro do povo da tribo. Nem todos são brancos, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal. É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( “mesmal” é como  o poeta Manoel de Barros define a “antipoesia”). Pensar essa Diferença é  fazer dela um “devir-outro” de nós mesmos . Há  um devir-pajé-bruxo  em todo poeta, em todo libertário e pensador cujas palavras são arcos e flechas em ação de resistência e defesa da tribo, e não como mero enfeite teórico. Para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a barbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  o olhar ancestral que também é subversivo, crítico e  criativo.

 

“Nós, os bruxos.” (Deleuze & Guattari)




-  este livro-dicionário é uma excelente leitura : https://contrapoder.net/wp-content/uploads/2020/04/SCHWARCZ-_-GOMES-2018.-Dicion%C3%A1rio-da-escravid%C3%A3o-e-liberdade.pdf







segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

cláudio, o tordo , o ipê e gonzagão

 

Dia desses conversava com a querida Sílvia Ulpiano acerca de uma belíssima aula de Cláudio Ulpiano na qual ele narrava algo extraordinário que fazia não um poeta , um educador ou  um libertário, mas a reunião de um poeta, de um educador e de um libertário  num único ser alado e canoro: o passarinho tordo. Quando vem o fim da tarde, esse poeta da natureza sobe ao galho mais elevado de sua árvore e canta para o sol que lhe dera um dia. É um canto de gratidão, resistência  e afirmação da vida, um canto de “Amor Fati”. Quando o sol se põe, na borda do céu perto do horizonte tudo fica colorido de púrpura. O púrpura nasce da composição da cor azul, a cor dos celestamentos ( diria   Manoel de Barros) , com o vermelho, cor da vida, cor do sangue ( não enquanto este é derramado na violência e barbárie, mas quando corre nas veias e irriga o corpo de oxigênio, alimento e vida ). Quando o tordo assim canta, ele corre riscos. Pois soturnas aves de rapina ficam  à espreita para predar o tordo-libertário. Mesmo correndo  riscos, o tordo não se cala e , cantando, se horizonta ao céu-púrpura aberto e ilimitado.

Essa prática do tordo e seu céu púrpura  me lembrou o ipê, cuja floração também pode ser púrpura. Tentei segurar a imaginação, porém não consegui...Fabulei então criarmos um novo país, um país que seria construído  onde hoje fica o Nordeste, incorporando também o Maranhão ( agora livre da oligarquia medieval que ali dominou). Esse país receberia novo nome: Pindorama. A bandeira teria as  cores do ipê: o branco, o amarelo , o rosa e o púrpura. No centro da bandeira teria um tordo cantando nos galhos de um ipê, sua plural e multicolorida casa. Que esse tordo  nos proteja dos predadores, dos tucanos , das víboras,  das hienas , dos obscurantistas e seu doentio culto à morte e às armas. Como hino, nada de marchas militares falocráticas . Nosso hino seria um baião de Gonzagão acompanhando o canto do tordo.

( ontem, 13 de dezembro : data de nascimento de Luiz Gonzaga, o “Gonzagão”)






      ( no vídeo, o grande maestro Messiaen vai à floresta aprender lições de um tordo)






sábado, 12 de dezembro de 2020

o anel de giges

 

Há um livro de Platão no qual ele narra a história de um anel que tinha o poder  de deixar seu portador “invisível”  aos olhos dos outros. Trata-se do “Anel de Giges”. Mas o sentido simbólico dessa história é mais do que o mero se tornar invisível fisicamente. Pois não era apenas seu portador que desaparecia fisicamente frente ao olhar do outro, era o outro também ( enquanto valor ético e político) que desaparecia para o portador do anel.  A posse de tal anel se tornava uma prova ética e política para saber o que alguém pensava realmente do outro , das regras e  do elo social. Muitos aproveitavam a invisibilidade provocada pelo anel para dar vazão a seus impulsos bárbaros : furtavam, roubavam, torturavam e  ofendiam  os outros. Creio que essa história do Anel de Giges simboliza também o que propaga o  discurso fascista: deixar o fascista “invisível” aos olhos dos  valores éticos e democráticos, para  que seu comportamento não se paute mais pelas regras que organizam , democraticamente, a visibilidade política. Não havendo mais regras que o freiem, tendo-se furtado aos valores que visibilizavam o conviver democrático,  o fascista imagina que ser livre é não ter mais barreiras éticas , jurídicas e políticas para destruir o outro. Se ele tiver o poder do Estado, usará esse mesmo poder para se imaginar invisível e assim favorecer seus parentes e amigos, além de perseguir seus adversários. Na verdade, o Anel de Giges não ocultava quem o colocava; ao contrário,    ele tornava público, política e eticamente,  o que cada um traz dentro de si: se saúde ou doença, se amizade ou ódio, se vida ou morte, se humanidade ou barbárie.

( o livro da Hannah Arendt é apenas uma sugestão de leitura)





quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

centenário de clarice

 

Dia desses li a notícia de que  o governo norte-americano comemorava um acordo de  redução das bombas atômicas existentes no mundo. Antes do tal acordo, as bombas atômicas tinham capacidade para destruir a terra 12 vezes!!!! Agora, após o acordo, o poder de destruição das bombas  “caiu” : elas agora podem destruir o planeta “apenas”  5 vezes!!! E o governo norte-americano comemorava alegremente isso como prova de que são civilizados... Isso me lembrou Espinosa, que dizia existir uma estranha alegria :a alegria dos delirantes se imaginando sensatos.... No mesmo jornal , na seção de economia, havia outra notícia envolvendo essa  mesma mentalidade  insana :  a quantidade de capital especulativo circulando pelo planeta é cinco vezes maior do que a riqueza real que existe na terra. Capital não é riqueza. Riqueza é terra, trabalho, criatividade, floresta, tempo, enfim, vida. Riqueza também não é o número estampado na nota ou na moeda, riqueza é o níquel de que é feita a moeda e a árvore sem a qual não há  papel-moeda:  riqueza é o minério e a árvore como potência e bem comum da terra, da qual ninguém é o proprietário ou dono. Aplica-se  aqui aquela  imagem : a riqueza é  sangue, ao passo que o capital especulativo financeiro se assemelha mais a um vampiro. Esses vampiros  sobrevoam a terra como aves de rapina  de olho nas florestas, nos rios, nos minerais...e também em nosso tempo, em nosso desejo, em nosso corpo, enfim, em nossa vida e sangue. Enquanto as bombas podem destruir  a terra 5 vezes, o capital predatório é vampiro que quer sugar nosso sangue cinco vezes mais do que todo o sangue que circula em nosso corpo.  Essas  notícias   também me lembraram aquela crônica de Clarice Lispector na qual ela narra a morte de um procurado pela polícia “abatido” , diria o protofascista Witzel,  por vários tiros disparados pelas forças repressivas: “ a primeira bala já o acertou e matou. A segunda bala foi por vingança, a terceira por preconceito, a quarta por ódio aos pobres, a quinta por pura barbárie mesmo ...e a última bala me acertou”.

Contra os vampiros,  sangue nas veias , ideias na mente e ação coletiva  que mude uma situação.









domingo, 6 de dezembro de 2020

o museu de bacurau

 

Na mitologia, “Museu” é filho de “Orfeu”, e é  poeta como o pai. Quando as “Fúrias”, divindades do ódio e da vingança, despedaçaram Orfeu, mesmo arrancada pela violência bárbara   a cabeça do poeta resistiu e continuou cantando. Em cada poema, em cada música, em cada livro e obra de arte que resiste à barbárie, nessas obras a cabeça do poeta ainda pensa e canta. Foi Museu quem recolheu os fragmentos de seu pai e os reuniu num único lugar, criando assim a primeira exposição do mundo.

No filme Bacurau vemos essa simbologia do Museu  ganhar corpo e ação quando a comunidade se vê ameaçada por aqueles que a querem fazer de presa e alvo de uma fascista caçada. No centro de Bacurau, em sua ágora, não estão igreja ou  prefeitura do poder teológico-político, no centro da ágora está o Museu.  E é no Museu de Bacurau que ainda se pode ouvir o canto do Poeta reunindo  o povo para lutar contra quem os ameaça. No Museu de Bacurau estava guardada a memória de um povo que já lutou contra a tirania do poder excludente, luta essa que a “História Oficial” não conta ou tenta esconder. No Museu de Bacurau  estavam as armas que já defenderam quilombos e outras resistências populares, e aquele sangue ancestral ainda corre nas veias dos que defendem Bacurau agora . Enquanto as armas dos neocolonizadores caçam o povo, as armas guardadas no Museu já foram usadas para defender o povo da servidão, sendo então necessárias quando a tirania  novamente  ameaça. E a maior das armas que o Museu guarda é o conhecimento que serve de esteio para a  ação libertária.

Quando os tiranos , de ontem e de hoje,  separam  a cabeça do poeta de seu corpo imaginando que assim  o matam e calam , é do povo que vem o novo corpo , corpo coletivo e plural, que fará o canto de liberdade do poeta renascer de novo.










quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

amendoeiras & ipês

 

Há árvores que são mais do que árvores: elas   também podem ser , para nós,  símbolos e ideias. Por exemplo , a amendoeira e o ipê.  Toda a multiplicidade de amendoeiras que hoje vemos se originou de uma semente única, singular, que veio clandestina  da Índia e atravessou os oceanos  encrustada no casco de uma nau portuguesa. A amendoeira é prima das oliveiras e era conhecida na Índia como a “árvore mais resistente”. Assim deve ser cada ideia que vale a pena ser ensinada e aprendida: uma resistente singular da qual germina uma multiplicidade de novas vidas.

A flor do ipê é uma das poucas que floresce colorida durante todo o ano, resistindo até  mesmo  ao  cinza do inverno. A flor do ipê assim nos mostra que é possível ser forte e resistente  sem perder  a arte de criar beleza. Antes de os colonizadores aqui chegarem, os índios acreditavam que o ipê era a  própria expressão da força fértil de Pindorama, nossa Terra-Mãe ancestral . Na mitologia tupi-guarani, um dos sentidos de Pindorama é: “terra onde os maus são vencidos”. As flores do ipê são sempre de cores múltiplas, combinando o púrpura, o rosa, o branco e o amarelo . Os antigos colonizadores tentaram acabar com o ipê, porém não conseguiram, encontrando forte e corajosa resistência dos índios na defesa do ipê. Então, os colonizadores descobriram que podiam ganhar dinheiro  sangrando  uma árvore chamada pau-brasil, cuja resina avermelhada corre no tronco da árvore como em nossas veias o sangue. Foi a partir do comércio  dessa resina cor de sangue  que a  terra explorada  ganhou novo nome, sendo então chamada de “Brasil” pelos seus algozes. Por debaixo do culto fascista e pseudonacionalista ao  verde e amarelo existe ainda a mesma mentalidade criminosa  que sangrou e ainda sangra   nossa Terra-Mãe, mátria  ancestral. Essa  mentalidade predadora novamente se volta contra o  ipê, fazendo “vista grossa” para a derrubada e exportação ilegal de sua madeira, quase sempre sequestrada  de terras indígenas. Por trás desse crime contra o ipê existe algo ainda mais sombrio:  também  move essa gente um ódio niilista  às cores , à natureza,  à multiplicidade e arte que o ipê simboliza como imagem  que nos liga aos nossos ancestrais povos da floresta. Que a potência  do  ipê, sua ancestral resistência,  permaneça de pé e também  nos fortaleça  frente  às  forças destruidoras que sangraram a árvore cujo nome designa o país que essas mesmas forças ainda continuam a sangrar.

( em Brasília , os ipês são patrimônio ecológico ,  não podem ser derrubados; essa decisão protetiva antecede a subida ao poder dos exterminadores que lá estão)


                                    ( foto: Walter Arruda)


https://www.hrw.org/pt/news/2019/09/17/333774