domingo, 26 de fevereiro de 2012

trechos do livro "Manoel de Barros:a poética do deslimite"(Editora 7letras/Faperj)


Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança*, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério
.


De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda ( como Miró também o fez). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,

A poesia tem a função de pregar a prática
da infância entre os homens.


***
[ *Nota sobre o devir-criança:Quando alguém se torna adulto, a criança que ele foi está no passado;quando tal adulto era criança, o ser adulto era seu futuro.O adulto é o futuro da criança enquanto esta é um estado com uma identidade que lhe prescreve uma definição, um contorno; de maneira análoga, a criança é o passado do adulto enquanto este representa a si mesmo como um estado circunscrito por uma identidade.Sob esta perspectiva,"criança" e "adulto" são estados que se opõem pelas suas respectivas identidades.O devir não possui passado ou futuro: ele é, como dizem Deleuze e Guattari,antimemória. Ou Melhor, se ele nos dota de uma memória, trata-se de uma memória como a que têm os anjos : memória que nos liga à eternidade.O devir está sempre no meio: ele não é uma linha que liga dois pontos, ele é linha que passa entre dois pontos, uma linha transversal( as linhas transversais nunca se fecham em contornos).O devir não é exatamente a diferença entre o adulto e a criança,mas Diferença que está entre o adulto e a criança, e que os faz se comunicarem pelas suas diferenças, criando um contágio, um Afeto. É a História ( pessoal ou coletiva) que possui o passado e o futuro como pontos que o presente liga, ao passo que o devir está sempre no meio. Porém, ele não é uma média, ele é meio : ele é zona indiscernível que constitui a vizinhança entre o adulto e a criança. O presente do devir não é o presente cujos termos complementares são o passado e o futuro, uma vez que o presente do devir é o presente da metamorfose: esquecimento que cura dos fantasmas do passado, criação do novo que nos liberta de todo sentimento de esperança em relação a um futuro que nos deixa passivos.A criança do devir-criança não está no passado: ela co-existe com o adulto, mas não é feita de lembranças psicológicas deste.Ela é uma "criança molecular", imperceptível à percepção que só vê o já visto.Segundo Deleuze-Guattari,molecular é aquilo que é, ao mesmo tempo, elementar e cósmico:elementos mínimos, heterogêneos,conectados ao absoluto.Intensos, tais elementos singulares não podem estar contidos em uma forma:seus limites são limiares trabalhados por dentro por uma Vida que de si mesma transborda.O devir-criança não é uma regressão ao estado de criança, tampouco ele é um mero imitar, infantilmente, uma criança.Quando devimos criança, tornamo-nos algo que a "forma adulto" nos impede de ser, ao mesmo tempo que a criança torna-se outra coisa que a criança definida em oposição ao adulto.No pintor Klee, por exemplo, a criança do devir-criança que ele inventa torna-se uma criança feita de linhas e cores,ao mesmo tempo que ele próprio se torna outra coisa , coisa esta que a obra testemunha e dar a ver.Esta criança que vemos na tela, e que é o produto de uma metamorfose, de um devir, não é menos real do que a criança que vive na nossa memória pessoal.Sua realidade é aquela que a arte engendra, libertando a Vida dos limites estreitos de nossas vivências pessoais. Quando devimos criança, captamos o que na criança há de intempestivo e eterno, cujo futuro não é virar adulto, mas produzir no adulto uma criança que não é a que ele foi. A criança do devir-criança não está no passado, tampouco somos o futuro dela: ela co-existe com nosso presente, libertando este do passado que ele imagina prolongar e do futuro em relação ao qual ele crê ser uma continuação daquilo que hoje é.Como dizia Espinosa, a criança do devir-criança não é um estado, mas uma atividade de re-generar-se, isto é, de nascer de novo para o novo.Devir é revir. Devir é retornar.Mas o retornar do devir não é um revir ao passado. Trata-se de retornar ao hoje, a este mesmo hoje do qual a imaginatio sempre nos afasta. Devir é retornar ao hoje para nele intuir o eterno que nunca é o mesmo a cada vez que a ele retornamos: muda ele, mudamos nós nele, como parte dele.]

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O deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

da amizade

"Odeio quem rouba minha solidão sem oferecer verdadeira companhia."
Nietzsche


É preciso ler essa frase de Nietzsche de uma perspectiva que não seja a de um ego, seja a do ego de Nietzsche ou a do nosso.Se não tomarmos essa cautela, corremos o risco de confundir Nietzsche com um pedante, um esnobe, um misantropo ou, o que é pior , com um ressentido; e o mesmo se aplica a nós mesmos se interpretarmos egoicamente a frase em epígrafe.Parece-nos que o entendimento adequado de Nietzsche exige que nos coloquemos no lugar daquele que vai ao encontro de alguém. Primeiramente, devemos evitar projetar sobre o outro, seja o outro quem for, ideias confusas acerca de sua maneira de ser: é preciso reconhecer o outro em sua diferença, e que esta diferença é uma virtude dele, esteja ele consciente ou não dela .Em segundo lugar, devemos considerá-lo como alguém que tem algo a dizer,mesmo que este algo seja seu silêncio, o que nos exige uma disposição de escuta.Enfim, devemos nos esforçar para sermos uma verdadeira companhia para o outro, o que pressupõe que o sejamos , antes de tudo,para nós mesmos. Dessa forma, venceremos os respectivos monólogos ( estes , sim, tristes exercícios de uma solidão a dois...), fazendo nascer, se possível, um bom encontro , como dizia Espinosa, no qual possa existir uma conversação, um diálogo.
Deleuze dizia que em certas horas é preciso desconfiar até mesmo dos amigos.Essa desconfiança é o efeito de uma confiança maior: a confiança nos intercessores. Destes não há desconfiança:sabe-o quem na vida necessitou mudar. Somente os intercessores nos mudam, e nós a eles. Os amigos nos querem o mesmo.Como vencer essa aparente incompatibilidade? Aprendendo a fazer do intercessor um amigo e, se possível, do amigo um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões comuns, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer um "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando.Um nós não nasce da intercessão de conjuntos com contornos delimitados, pois o intercessor é um "outsider", um "lado de fora" que incorporamos lá onde deveria estar um contorno, para assim inventarmos limiares.O "lado de fora" não é um fora que se opõe a um dentro, mas abertura para o fora que se faz de dentro, encontrando um intercessor . Um intercessor é "aquele que intercede a nosso favor". Mas intercede em relação a quais assuntos e diante de quem?Os assuntos que pedem intercessores são sempre aqueles verdadeiramente essenciais para que nós possamos , como dizia Nietzsche, "nos tornar nós mesmos".O intercessor intercede por nós diante da vida, diante do cosmos, diante daquilo que não podemos conhecer; ele é mão estendida que sempre puxa para cima: não exatamente para cima de um palco ou de um pódio, mas para um ponto onde nos distanciamos de nós mesmos, para assim aumentar nosso horizonte e perspectiva. Ele intercede sobretudo diante de nós mesmos, tornando-se a ponte entre nós e aquilo que verdadeiramente somos. Contudo, um intercessor não existe com uma etiqueta nos avisando:"Eu sou seu intercessor". Não raro, o intercessor está imperceptível aos olhos daqueles que olham mais para os outros do que para si : embora o intercessor possa estar maduro para eles, são eles que ainda não estão maduros para encontrar o intercessor. De certa maneira, somos nós mesmos que produzimos nossos intercessores quando,ativa e singularmente, desejamos produzir a nós mesmos, fato este que expressa não apenas discernimento e virtude, mas também arte. Assim, todo verdadeiro amigo é um intercessor. Descubra isso, ouse isso, creia nisso: produza-o e , antes de tudo, seja-o.

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