sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

o que não vira sucata

“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” (Manoel de Barros). Se 2016 está virando sucata, não era ele verdadeiramente o tempo novo. Se 2017 também vai virar sucata, tampouco está nele o novo que desejamos. Mas onde viverá o novo? Sem teorizar ou fazer promessas, a aurora de não importa qual dia nos dá a resposta, sem exigir champanhe ou fogos em troca. 
Uma aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é novo.
                                          

Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite.
Homero, Ilíada.

Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.
                                                                                                                                                                    Manoel de Barros



segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

monumentar passarinhos

Quem canta
ora duas vezes.
(Santo Agostinho)
                                                                                    
São Francisco monumentou os passarinhos.
(Manoel de Barros)

De pés descalços,
ele dançou diante do Papa.
(Deleuze)

Pedras viravam rouxinóis...
(Manoel de Barros)



Monumentar passarinhos

Em meio às ruínas de um templo
nu de  portas, paredes   e teto,
extintas preces se foram sem deixarem eco,
apenas húmus e pó ali tomavam assento.
                                                       
Foi nesse templo ao vento aberto,
chão da chuva e do sol caídos do céu,
foi na ruína do altar deserto
que Francisco viu pousado um rouxinol.

Na madeira da cruz  um ninho ele fizera,
para ali guardar sua cria  inocente.
E a cruz se fez de novo  árvore vivente,
para ser o lar da  vida em primavera.

Então, o rouxinol cantou a Francisco...

Sem precisar de sermão ou palavra,
Francisco ouviu, com o coração,
 a aleluia dos vivos poetizada.

Calçando nos pés as estradas,
pôs como chapéu o firmamento.
Em diferentes seres aprendeu a ler uma diferente página,
do infinito Livro cuja Lei é o encantamento.









domingo, 25 de dezembro de 2016

os "achadouros" do poeta

                                                 (jardim de primavera)



Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari





                                                    OS ACHADOUROS


                                                               Quando o sábio se vê reduzido à necessidade,
mesmo aí ele acha mais ocasiões de ofertar do que de receber,
pois ele possui um tesouro que nunca se esgota:
o de possuir a si mesmo.
Epicuro


No poema Achadouros Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro...
O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha um mundo ainda por descobrir.  Em meio ao barro,  ao húmus, o poeta  acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.




sábado, 24 de dezembro de 2016

o que é verdadeiramente novo nunca vira sucata




O que é verdadeiramente novo
nunca vira sucata.
Manoel de Barros



Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição.
Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo: e que este seja como uma aurora a raiar.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.



***   ***


O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre os seus vários brinquedos,
o sempre  novo é a esperança.






segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

manoel - 100

"Na ponta do meu lápis há apenas nascimento".
Manoel de Barros
(Há exatamente cem anos nascia Manoel de Barros, para nunca mais morrer!)






                     (São Francisco, desenho de Manoel)

sábado, 17 de dezembro de 2016

regeneratio

Dentro do casulo, parece que a lagarta está morta. E, de fato, ela está.Ela não se move, ela está parada: ela é o passado que morre.Para a lagarta, o casulo é um túmulo.Mas algo ali acontece, e para ver esse processo poucos têm os olhos. Pois o que chamamos morte da lagarta, como fim ou término, é apenas o começo do nascer da borboleta. Não é a morte da lagarta que cria o nascer da borboleta. Ao contrário, é o nascer da borboleta que dá à morte da lagarta um outro sentido. O casulo , na verdade, nunca foi um túmulo: ele sempre foi um útero, um escuro ou treva, em razão da metamorfose que produz o que há de nascer.





sábado, 10 de dezembro de 2016

o sabiá com trevas


(trecho de livro a sair )


Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Manoel de Barros

No livro Arranjos para assobio, Manoel de Barros define a si mesmo, e aos poetas feito ele, como um sabiá com trevas. Um "sabiá de terreiro", diz ele, que aprendeu a ciscar a terra. Ele canta, ele voa, mas também sabe, com perseverança espinosista, ciscar a terra. Isso faz do poeta um artesão, um experimentador,  um metafísico - sem deixar de ser poeta.
      O sabiá com trevas é um empírico-delirante, um ser atual repleto de virtualidade, um hoje cheio de amanhãs: singular palavra que expressa  infinitos sentidos. 
      O sabiá-poeta é um corpo terreno, corpo de terreiro,  unido a um espírito celestante, cujo canto a vida celebra. Por intermédio do poeta,  o celeste se torna corpo, enquanto o terreno devém chão para o espírito nômade, andaleço.
O sabiá-poeta cisca na terra seu alimento, sobretudo onde há raízes. Grãos de sol é o que ele come - e se ilumina por dentro.  O sabiá-poeta também se desterritorializa: voa fora da asa. Quando retorna e pousa, seja na terra ou na linguagem, seu canto é o meio de reterritorialização em um território novo, como inauguramentos - de vida e de linguagem.
O terreiro não é só um meio físico, extenso. Ele é ,sobretudo,um meio expressivo: chão  da expressão , matéria de poesia . O terreiro do poeta é uma casa estendida, sem paredes ou teto, com portas de entrada que dão para fora, vez que  suas janelas coincidem com uma visão fontana que amplia o horizonte, celestando-nos.
O poeta é um sabiá com trevas. Ele não maldiz as trevas, tampouco as demoniza. Pelo canto o poeta  inventa um mundo, um cosmos, porém a treva ainda lhe acompanha, como ao recém nascido a placenta. O poeta é um caosmos : síntese de caos e cosmos, uma absurdidez . Sua lucidez  é olho divinatório umbilicado  a um inconsciente cósmico.
Somente sendo sabiá com trevas  o poeta  “vê semente germinar e engole céu”, pois “Ninguém é pai de um poema sem morrer”. Sendo o pai, ele morre, para devir  filho do poema que o inventa outro, “Ninguém”.
Sabiá com trevas, o poeta  traz o seu caos, as trevas,  feito uma  morte que seu canto venceu. Por isso,essa treva não é como a de um túmulo ou caverna, mais parece a treva de um útero , seja o de uma fêmea ou o de um monturo, pois começa na treva todo germinar: de gente, de planta, de bicho, de poema. O poeta é a aurora da noite que ele também é.
    A proximidade junto ao caos-trevas não é tão somente física, ela é também mental. Essa proximidade é um "crivo", uma "distância minimamente próxima do caos", como diz Deleuze. O crivo  não é a luz apolínia do  dia já adulto, o crivo é o momento onde a luz pode mais, embora disso não se gabe, faz: tornando-se a claridade ainda em embrião de uma luz-criança ,como a verdez da alvorada de um dia novo. A proximidade-crivo  é  “antesmente verbal”, embora seja dela que nasce o poético sentido, como  “iluminura”.
O poeta nos diz que sua poesia não nasce de inspirações românticas ou de engenharia com letras. Sua poesia surge de iluminuras. A iluminura é uma canção, mas uma canção do ver. O velho Aristóteles já dizia em sua Poética que música e poesia são artes irmãs: elas são irmanadas pelo ritmo. Os ritmos do poeta-sabiá são ritmos de uma canção que se vê, de uma paisagem que se ouve. A luz da iluminura não é apenas para os olhos; ela também o é para os ouvidos, para o tato, para o olfato , para o gosto - sobretudo para este.
     A iluminura é  a síntese disjuntiva Apolo-Dioniso: a iluminura não é totalmente luz, nem totalmente coisa escura. Iluminura é canto de sabiá, é canto de Orfeu a vencer a treva de todos os  Hades, os de fora e os de dentro, os do passado e os do presente, estes tristemente entrevados. Pois sem o canto do poeta, a treva é apenas treva mesmo: caos sem cosmos - cegueira de horizonte e surdez de canto.
É por isso que poesia talvez seja fazer outro mundo.Não desejar ir para outro mundo , aqui ou alhures;  mas fazer outro, aqui e agora, e sermos outros naquilo que inventamos. O sabiá-poeta é  o outro , a diferença e o  crivo das trevas.


                                                (flautista Antônio Rocha)







quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

evento em homenagem ao centenário de Manoel de Barros


Com Artur Gouvêa e Isabela Barakat, do Duo Musaion, e a jornalista Katy Navarro. Programa Antena Rádio Mec FM - Livraria da Travessa. Programa em homenagem ao centenário de Manoel de Barros.





(fotos : Andreia Luchesi)

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
(Manoel de Barros)

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

a fonte do (des)saber

                                                 


                                                 A palavra abriu o roupão para mim:
                                                                                          ela quer que eu a seja.                   
                                                                         Manoel de Barros


O maior adivinho da Grécia foi Tirésias, o cego.O maior adivinho da terra da sabedoria era , no entanto, um cego.  Ele assim ficou por ter visto o que nenhum homem pode ver, a não ser pagando um alto preço.Tirésias  viu Atena nua. Ele viu a deusa despida das vestes e das convenções, ele a viu de corpo nu e inteiro, sem os véus e tecidos que a disfarçam.
 Atena é a deusa da Sabedoria. Tirésias viu a Sabedoria nua, sem disfarces, sem obstáculos, sem  coberturas, sem maquiagens. Ele a viu enquanto ela se banhava, pois mesmo a Sabedoria necessita do fluxo para renovar-se,para limpar-se do que já é antigo e se acumula.Ele viu  a Sabedoria diretamente, sem ser por intermédio de livros ou relatos.
Sabe-se que Atena se paramentava toda e se adornava antes de ir à Academia, para ali ser vista  e adorada pelos doutos,que adoravam apenas o brilho e luxo dos panos que a cobriam, e com estes se satisfaziam,vez que ignoravam  que mais riqueza e beleza havia em seu corpo nu. Mas a deusa não se paramentava  por exigência ou gosto dela, mas pelos ritos dos homens acadêmicos.Todavia,  estes nunca a viram como Tirésias a viu: nua, sem fazer poses, sem artifícios.Ele a viu sem ser por intermédio de signos. E nunca a deusa viu tanto amor na fala e discursos dos doutos  quanto viu nos olhos de Tirésias , que a viu nua, sob a “luz natural” do seu corpo .

Então, ela o cegou enquanto ele a via.Mas não por ódio ou punição, tampouco para manter-se em segredo. Ela o cegou  para protegê-lo.Para protegê-lo de si mesmo e dos homens,incluindo os doutos.  Na verdade, ela lhe cegou os olhos de constatar , para que sempre a visse os olhos de descobrir, pois apenas para estes ela se permite aparecer nua, desde que neles também viva a paixão e o desejo . Ele a viu a se banhar em uma fonte, em uma nascente. E esta foi a sabedoria que a deusa lhe concedeu: a de ver sempre nascer e renascer em si uma visão  fontana, uma visão que é fonte do que vê. Quando enfim se despe, é como poesia que a sabedoria se mostra.



quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

homenagem ao poeta na Rádio Mec FM

Manoel de Barros é homenageado com música e bate-papo na Livraria da Travessa

Antena MEC FM recebe convidados na quarta-feira (7) para celebrar o centenário do poeta
Manoel de Barros
Manoel de Barros Secretaria de Cultura do Rio da Janeiro
No mês de dezembro, o #AntenaNaTravessa homenageia os 100 anos do poeta Manoel de Barros. O programa convida o violonista Artur Gouvêa e a cantora Isabela Bakaratpara tocar, ao vivo, na Livraria da Travessa de Botafogo, com repertório inspirado nas obras do autor.

O programa especial será na quarta-feira (07) e conta com a participação de Bianca Ramoneda, escritora e atriz da peça "Inutilezas", montagem baseada no trabalho de Manoel de Barros, e Elton Luiz, professor e autor do livro "Manoel de Barros: A Poética do Deslimite", que apresenta o programa.

O endereço da Livraria da Travessa é Rua Voluntários da Pátria, 97, Botafogo. A entrada é franca. O programa começa às 18h, participe!

sábado, 26 de novembro de 2016

manoel : o chão é um ensino







poesia é delírio ôntico
Manoel de Barros


(trecho do livro)

No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como voo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.
"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".



segunda-feira, 21 de novembro de 2016

o simbólico e o diabólico

Por mais longe que a razão nos leve,
leva-nos mais longe o coração.
Goethe

Poeta é ser que vê semente germinar.
***   ***   ***
A criança, o andarilho e o passarinho têm o dom de ser poesia. 
Manoel de Barros

Não se descobre nenhuma verdade,
não se aprende nada,
se não por decifração e interpretação.
Gilles Deleuze


Na Grécia antiga, quando duas pessoas por algum motivo eram obrigadas a se separar, e desejando manter o elo, a aliança, elas pegavam então um pedaço de madeira, um galho de oliveira, e o fendiam em duas partes. Cada um ficava com uma parte: esta era guardada como testemunho daquela aliança. Mesmo transcorridos anos, o pedaço de madeira era mantido e preservado. Ele se transformava em posse coletiva, passando a pertencer então a um grupo, a uma comunidade. Se alguém de determinada comunidade desejasse saber se havia alguma aliança entre ele e uma diferente pessoa de outra comunidade, cada um mostrava o pedaço de madeira que portava. Havendo a composição de tais partes, novamente era celebrado o encontro, a amizade, a aliança, que assim vencia o tempo e o espaço, além de possibilitar um futuro.
Esse encontro ou composição das partes era chamado de “symbolos”. “Sym” significa “união”; e “bolos” é, em grego, “partes”. Símbolo: união ou composição das partes. Simbólico é tudo aquilo cujo sentido somente nasce em um encontro, pois o simbólico nunca existe como algo em si, como um fim em si. O simbólico celebra encontros, afirma composições. O simbólico é fruto de uma prática, mais do que de uma teoria: ele une prática à teoria, ideia à ação.Ele é o agente de relações: sua identidade é agenciar diferenças. O simbólico é de natureza social, embora ele pressuponha relações entre os indivíduos. 
Mais do que ser a representante ou a representação de um referente, toda palavra é uma parte que somente se completa quando se lhe une uma alma que a lê ou escuta. Sozinha, a alma também é uma parte incompleta: a outra parte é o sentido que a amplia, sentido este que ela mesma inventa, pondo-o na palavra, na tinta, no som.Dessa maneira, a alma inventa a si própria, encontrando-se naquilo que ela cria.
A linguagem é simbólica porque, antes de tudo, ela une o homem ao homem, e depois une o homem ao cosmos. O rio, a planta, a semente, o céu, o vento, o horizonte, o passarinho, o andarilho, a criança...também podem ser  símbolos ou partes que completam o homem, e é isso que nos ensina poeticamente Manoel de Barros, desde que o homem se veja e se compreenda como parte que completa o rio, o horizonte, a semente, a criança...isto é, desde que ele se veja formando um todo com esses seres, um todo poético, de tal modo que ele aprenda a se compor com o universo, o de fora e o de dentro dele mesmo. Nesse sentido da palavra, simbólico não se confunde ou se reduz ao mero “metafórico” por oposição ao conceitual, pois mesmo os conceitos possuem uma natureza simbólica, na medida em que eles são elos que nos agenciam com o conhecimento enquanto prática humana, social.
Tudo pode ser simbólico, desde que o vejamos como uma porta, uma janela, uma passagem, um elo, um agente, e não como coisa em si, fechada nela mesma (como se possuísse uma identidade fixa, imutável, imaculada).Em uma exposição, por exemplo, os objetos não valem apenas pela sua natureza tangível, material, mensurável: eles também são símbolos. Enquanto tal, eles comunicam. Comunicar é tornar comum um sentido que não pertence exclusivamente àquele que produz a exposição ou àquele que a visita, já que o sentido nasce do elo entre essas partes em relação. Por ser símbolo, um símbolo cultural, um objeto exposto também existe para despertar, e unir, o conhecer e o sentir, para assim potencializar nosso agir sobre o mundo. 
“Dia-bólico” significa: a parte separada do todo, a parte dividida. O diabólico é o que nos separa, isola, divide. O diabólico é a ausência de composição, de elo. O diabólico faz cada coisa existir isolada, imaginando-se um todo à parte .O diabólico destrói as pontes, cerra as janelas, interdita as portas, apaga as sendas, fecha os olhos, obstrui o coração. 


No mito, foi algo diabólico que ,com violência, reduziu o poeta  Orfeu a pedaços; mas foi a sua reconstrução simbólica , realizada por seu filho Museu, poeta como o pai, que o tornou vivo novamente, como objeto de conhecimento e afeto. Dioniso foi diabolicamente despedaçado pelas Fúrias. Contudo, Zeus recriou Dioniso fazendo-o renascer de uma parte que é sempre símbolo de vida: o coração. 
O simbólico nasce quando as partes são compostas: cada uma se aumenta na outra em razão de um todo que as amplia. O diabólico , por sua vez, não é a divisão da madeira em duas partes, mas a imaginação de cada parte de que nunca foi antes uma madeira comum  com outra parte, com outra diferença. Assim, diabólico é cada parte se considerar o próprio todo, e obrigar a outra parte a se submeter a essa verdade. Estabelece-se então uma guerra por domínio, por reconhecimento, por poder.
Em uma visão diabólica do mundo (que também pode ser  uma visão cientificista, objetivista, "técnica", enfim) o rio não é mais então símbolo ou elo ( como parte de um parque natural, por exemplo), ele é apenas rio, coisa, objeto. Assim também já não são mais símbolos, símbolos poéticos, o horizonte, o passarinho, a folha, o bicho, o chão e  o céu...pois já não é mais para si o homem um símbolo. Diabólicos se tornam então seu conhecimento, seus instrumentos e até mesmo sua razão.


Referências:

DAVALLON, Jean. L’exposition à l’ouvre: stratégies de comunication et médiation symbolique. Paris:L’Harmattan,1999.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2002.

SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, S/D.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.










domingo, 13 de novembro de 2016

a singularidade






As intensidades do girassol são forças do tempo?
Cláudio Ulpiano

Um girassol se apropriou de Deus:
foi em Van Gogh.
Manoel de Barros



O vídeo acima é a abertura do filme Os girassóis da Rússia , de Vittorio de Sica. O plano geral mostra uma realidade ampla, aberta ao  horizonte. Vemos incontáveis girassóis, um campo de girassóis. Difícil determinar os limites onde termina essa multitudo que parece não ter contornos, apenas limiares (que se estendem  ao azul do céu). Englobando a multitudo, mas sem encerrá-la em limites ou cercas, vemos um todo que a tudo horizonta. O todo é um plano de imanência, uma abertura, sem a qual não pode haver um chão, um território.
Então , da perspectiva desse todo a câmera parece que  vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto apenas olhávamos para o todo.À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um  vento , ora suave ora mais forte, que toca e agita a vida de alguns girassóis . Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos esses acontecimentos que atingem apenas parte da multitudo. Um mesmo acontecimento, o vento, provoca reações diferentes em cada girassol distinto, conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta o vento de forma firme; outro se curva e parece que vai se quebrar, triste.
Começamos a ver então que a multiplicidade é heterogênea, posto que composta de partes diferentes, singulares. Cada vez mais essas partes vão perdendo a relação exterior e extensiva com o todo , e começam a realçar seu estilo, sua assinatura, o seu ser um, sua existência única. Já não vemos mais o todo, o horizonte. Percebemos agora três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol.O girassol preenche toda a tela, que outrora era preenchida pelo todo. Vemos que uma singularidade pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos se explica por cores, texturas, molecularidades. Saímos de uma realidade extensiva e entramos em uma realidade expressiva.Entramos, enfim, em nós.
O girassol em sua singularidade continua a comunicar-se com o todo, porém através de sua diferença, de sua singularidade. O todo está inserido nele ( como essência íntima, diria Espinosa, como minadouro, complementaria Manoel) e ele está inserido no todo, no horizonte.Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não víamos a realidade intensa do afeto que o singular expressa.
Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que coloquemos, esse ser assim ampliado torna-se um rosto. Ele não ganha um rosto: ele se torna , por inteiro, um rosto. Ele devém uma superfície que  se explica apenas por valores expressivos, intensos. Em toda expressão há algo implicado. Toda expressão é uma explicação. A expressão explica, traz para fora, o que está implicado nela, o que lhe é imanente.A expressão é esse duplo movimento onde o dentro e o fora enfim se conjugam, potencializados em uma singularidade viva. Pois é isto que é um rosto : a vida colocada em um primeiro plano expressivo.
Então, o girassol parece viver/expressar alegrias, dramas, afetos, desejos: embora não possua cérebro e nervos, um girassol também pensa e sente.





sábado, 12 de novembro de 2016

o devir-imperceptível do poeta





A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um sujeito coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento 
 O verbo tem que pegar delírio.

Este “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

manoel de barros, a semente e o monturo






Poeta é o ser que vê semente germinar.

Manoel de Barros
                                                                                  




No poema O guardador de águas*, Manoel de Barros descreve o seguinte acontecimento: sob um  monturo de restos de ossos , de folhas  apodrecidas,  de cacos de vidro   e farrapos do que outrora respirou e foi vivo, sob tal monturo que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no ventre desse casulo úmido uma semente despertou: libertou-se dela um pequeno dedo, que virou mão tateando, depois braço que achou o caminho. Uma fuga foi-se desenhando, e o que era obstáculo tornou-se escada e sinalização para a vida ir para fora , fazendo-se impulso para a vida que se expandia. Movia esta vida o desejo de ver o sol, o sol que ela nunca viu. Esse desejo perfurou o monturo, abriu-lhe uma porta  e uma janela, pela qual saiu a pequena planta cantando a potência  de existir.

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O guardador de águas, guardador de fluxos. O fluxos  somente podem ser guardados em um espaço aberto, sem limites determinados, cujas margens sejam limiares que por dentro se podem expandir. Guardar os fluxos é cuidar também deles, a começar pelos fluxos que nos constituem: caute,como recomendava Espinosa; cuidado: como ato  ético e também  clínico. Em Manoel de Barros, a essência não é uma "forma fixa", ela é um "minadouro": dela brota e mina inauguramentos.Guardar os fluxos só o podemos em um espaço múltiplo, ao mesmo tempo subjetivo ( lírico) e objetivo ( prosaico).Guardar as águas é guardar-se nelas, como larva, rascunho, desabrimentos:"estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir"( Clarice Lispector, A descoberta do mundo).A fonte guarda as águas que por ela fluem, que por ela fogem, que a ela afetam. Ela guarda doando,e por isso é fonte, uma vez que guarda as águas que recebeu e recebe do fluxo infinito.A fonte é a indistinção entre o receber e o ofertar.












(Van Gogh, O semeador)

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

amanhã, ao som de billie & nina


Até a lua hoje apareceu mais cedo.
E o sol se foi sem fazer a barba.
No frio calendário,
o amanhã mal aguenta ficar em  casa:
ele quer logo amanhecer,
para ser o dia em que vou te rever.

No rosto trarei um pouco de passado,
é inevitável,
não repare nisso por favor.

Vai ser só te ver
para ele se desentristecer,
e ser de novo expressão do amor.