sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

o poder e seus lugares


Como se sabe, a diferença de posicionamento político entre direita, centro e esquerda vem da Revolução Francesa. Tomando como referência a mesa  na qual se sentavam os dirigentes que comandavam  as assembleias, eram “de direita” então  os que ficavam  à direita da mesa, “de esquerda” os que se situavam à esquerda e “de centro” os posicionados à frente da mesa. Mas e a própria mesa, em qual lugar ela fica ? Alguns com pretensão à “neutralidade” dirão: a mesa não é de esquerda, de direita ou de centro, ela seria  um lugar politicamente neutro, como uma espécie de divindade pairando “acima de todos”, transcendentemente . Mas será mesmo isso possível? A mesa a partir da qual se exerce o comando da política é mesmo neutra? Tanto Deleuze quanto Foucault chamam de “lugar do poder” a esse pretenso lugar neutro da mesa. Espinosa, por sua vez, designava de “potestas” (poder) a esse lugar da mesa  para diferenciá-lo da “potentia” ( potência) enquanto heterogeneidade social.  Esse lugar da mesa, portanto, nada tem de neutro: ele  simboliza toda forma de poder, sobretudo o poder do Estado. Assim, a diferença  entre a direita e a esquerda somente aparece de verdade quando uma delas, vitoriosa no voto,  vem ocupar o lugar da mesa-poder para assim governar. A direita manterá o mito ideológico de que o lugar da mesa é neutro, para assim dissimular os interesses egoístas aos quais serve, alardeando  que age “sem viés ideológico”. Já a esquerda deve assumir que o lugar da mesa não é neutro, para assim  escolher governar para os mais pobres e injustiçados, potencializando as minorias e cuidando para que tenha voz também à mesa a diversidade dos que não estão sentados nela, os marginalizados. A direita cultua as  mesas retangulares , como aquelas que ocupavam o centro  da sala da Casa Grande, nas quais os poderosos se sentavam à cabeceira para serem servidos e se locupletarem ; já a esquerda precisa amar as mesas circulares , isto é,  mesas sem cabeceira e lugares privilegiados, para que nelas se sentem    e sejam alimentados  os que têm fome. Não apenas fome de alimento, como também   fome de justiça, fome de dignidade, fome de conhecimento, fome de arte.






"É nessa multidão que penso quando me refiro à maneira pela qual Gilles Deleuze caracterizava a diferença entre esquerda e direita - uma diferença de natureza, ele salientava, não de convicção , porque a esquerda ( no sentido sempre traído pelos partidos ditos de esquerda ) tem necessidade , necessidade vital, de que as pessoas pensem , ou seja , imaginem , sintam, formulem suas próprias questões e suas próprias exigências, determinem as incógnitas de sua própria situação." Trecho do livro "No tempo das catástrofes : resistir à barbárie que se aproxima", de Isabelle Stengers:






quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

a desobediência necessária


A servidão involuntária é aquela na qual um tirano impõe à força sua vontade a alguém ou a um povo , cuja liberdade é assim roubada. Acontece algo diferente com a servidão voluntária: ela não é a liberdade roubada, ela é a liberdade alienada . A servidão voluntária tem várias formas e maneiras de acontecer. Ela ocorre quando alguém se submete a um tirano por livre vontade , porém com a expectativa de também poder ser tirano e exercer poder autoritário sobre a vida dos outros. Muitas coisas podem servir de tirano para os que têm pendão para a servidão voluntária, mas nada faz hoje tantos servos quanto o cassino financeiro e seus juros, o protofascismo e a ignorância digitalizada. Há ainda os que se dizem “servos de Deus” somente para ter poder político e exercer tirania sobre os outros. O mecanismo psicológico e político da servidão voluntária não é querer ser servo , e sim tirano. Todo tirano imagina que ser forte é encontrar alguém mais servil e medíocre que se ponha de joelho diante de sua opinião, credo ou farda. A tirania é , no fundo, uma fraqueza de ideias, de argumentos, enfim, uma fraqueza de vida que muitas vezes se esconde atrás da violência e da intolerância. Desconfiem sempre daqueles que dizem “sou servo da Lei” ou “ sou servo da Verdade” , pois o que estes querem na realidade é ser tiranos de toga ou de dogmas. Além disso , dizer-se servo da Lei ou da Verdade não significa a mesma coisa que ter amor à Justiça ou às ideias, pois amar o que liberta  é  o que dá força e justifica o desobedecer que enfrenta a servidão.

“É servo aquele que não se pertence. É aos escravos, e não aos homens livres, que se dá um prêmio para os recompensar por se terem comportado bem.” (Espinosa)




Espinosa dizia que ninguém é livre apenas pensando teoricamente , sem agir ; tampouco é livre quem imagina que pode  agir livremente sem pensar o que faz. Para Espinosa, quando a gente pensa de forma livre ( isto é, potente) desse pensar nasce necessariamente um agir que não tem por  motor apenas a vontade, mas todo o corpo, incluindo nosso desejo e aquilo que em nós ainda tem força para se indignar. Quem apenas pensa ideias libertárias porém não age a partir delas, na verdade não pensa: apenas imagina que pensa.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

diferença entre crença legítima e ilegítima, segundo david hume


O filósofo Hume distinguia dois tipos de crença: a “legítima” e a “ilegítima”. Segundo ele, não é a razão o alicerce do conhecimento, o alicerce é a crença. Em palavras simples, assim Hume explica seu argumento : temos a memória do que aconteceu ontem e a percepção  do que acontece hoje, agora. Por exemplo, ontem o sol se levantou: esse fato vive  em nossa memória. Hoje, vemos o sol se levantar, conforme atesta nossa percepção. Porém, não podemos ter experiência do que vai acontecer amanhã: o futuro não pode ser experimentado. O que nos leva então a ter a expectativa  de que o sol nascerá amanhã e tratar essa expectativa como se ela fosse uma certeza inquestionável? Segundo Hume, não são apenas  a memória do passado  e a percepção  do presente que sustentam essa nossa expectativa, pois tal expectativa  é determinada por um mecanismo psicológico profundo : a crença. A crença é o fundamento de todo conhecimento, e não a “Razão” ou a “Verdade”. Existe a crença porque a mente está sempre voltada para o futuro , para o que vai acontecer, gerando nela expectativas. A crença deixa de ser uma expectativa de nossa mente e se torna um fato quando a natureza comprova nossas expectativas: vem um novo dia, e o sol nasce. Não é nossa mente que faz o sol nascer, quem o faz nascer é a natureza: pela ação da natureza, a expectativa se torna então realidade. Para Hume, mesmo a ciência está apoiada na crença. Porém a ciência é uma crença legítima: a autoridade a qual ela obedece é a natureza e nada mais. Ou seja, a crença legítima pode ser refutada. E quem a comprova ou refuta é a mesma autoridade: a natureza. Pois toda lei científica nasceu de uma hipótese que a natureza confirmou ( e inúmeras hipóteses não viraram leis porque a natureza as refutou).Já a crença ilegítima é aquela que se apoia em “verdades” que prescindem da comprovação da natureza. São verdades, portanto, que ninguém pode refutar: nem a natureza, tampouco a ciência. Tais “Verdades” não se sustentam na argumentação ou na experiência: elas se impõem exigindo  obediência . Como toda crença, a ilegítima também se explica pela mente humana , quando a mente humana  ignora  seus limites , imaginações e fantasias. Ela se torna ilegítima  não por ser uma crença, mas por usurpar  o limite que lhe é próprio, querendo tomar o lugar da filosofia e da ciência.  Segundo Hume, não há problema em si na crença ilegítima, desde que ela se limite a um espaço privado de culto e pratique como sua verdade   o  amor ao próximo . O problema é quando as autoridades cujo poder vem da crença ilegítima querem também ser autoridade política. Nesse caso, correrá risco não apenas a democracia, cuja essência é o debate público e livre, também correrá perigo a própria ciência. Quando a crença ilegítima se apodera do poder do Estado e sua polícia, as consequências disso serão a censura, as perseguições, a intolerância  e a estigmatização  de quem pensa diferente .

(imagem da capa: “A primavera”, de  Botticelli )







domingo, 26 de janeiro de 2020

Caetano Veloso denuncia fascismo de Bolsonaro




O AMOR (poema de Maiakóvski adaptado por  Caetano Veloso)

Talvez quem sabe um dia
Por uma alameda do zoológico
Ela também chegará
Ela que também amava os animais
Entrará sorridente assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não podemos amar na vida
Com o estelar das noites inumeráveis
Ressuscita-me ainda que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando contra as misérias do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe
Minha vida para que não mais existam amores servis
Ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se
por uma casa, um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja pelo menos o Universo
E a mãe
Seja no mínimo a Terra
A Terra
A Terra





"E ENTÃO, QUE QUEREIS?..."( poema de Maiakóvski)

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.



subúrbio

- Você já reparou: os pardais estão sumindo...
-Também estão sumindo a beleza, a justiça , a honra , a dignidade...e outras ideias assim.
- Talvez tenham ido em bando, juntos, os pardais e as ideias: foram atrás de jardins que aqui já não florescem  mais.
- Quem sabe se nas amendoeiras das ruas suburbanas ou no interior das almas das pequenas crianças   possamos encontrar o ninho dos pardais e das ideias. Vamos procurar? 
- Começaremos  por onde?
- Por dentro de nós mesmos, onde em nós houver subúrbios e crianças...Quem sabe se  aí não encontraremos  também ,   ainda que dentro do ovo, embriões de ideias e rascunhos novos de nós mesmos .


sábado, 25 de janeiro de 2020

alegoria sobre nossos dias

O escritor argentino Jorge Luís Borges conta  a seguinte história (que interpreto mais do que reproduzo): havia uma aldeia que era parte de um país. Nessa aldeia existia uma corporação poderosíssima de cartógrafos. Eles faziam mapas, isto é, cópias ou representações  da realidade.  Mas eles eram poderosos apenas para imitarem ou simularem algo já dado ; para criarem algo novo , como faz o artista, eles eram impotentes. Eles eram tão poderosos em simularem que certa vez fizeram um mapa da aldeia do tamanho da aldeia. Não satisfeitos , depois fizeram  um mapa do país do tamanho do próprio  país... A confusão então se instalou : muitos trocavam a realidade pela  mera simulação dela. Parecia já acontecer ali o que hoje se chama de “pós-verdade do mundo digital”. A simulação  era tão perfeita que os passarinhos no início se confundiam e  voavam para as árvores de mentira do mapa. Mas rapidamente os passarinhos descobriam, graças ao tino de que lhes dotou a vida , o logro daquela realidade fingida,  e nela não construíam seus ninhos. Porém o mesmo não aconteceu com certos  homens que , depreciadores da vida e suas mudanças, deliravam   encontrar uma realidade enfim estática  . Assim,  eles  tomaram  por verdade uma  realidade artificialmente fabricada , como aqueles que hoje creem em realidades fakes na tela de seus  celulares . Mas logo o mapa se tornou passado, como um retrato estático em relação à pessoa viva da qual ele foi tirado. As pessoas mudam e se transformam, ficam diferentes, como tudo o que vive sob o tempo, mas os retratos, assim como os mapas, permanecem sempre os mesmos. Porém  os homens conservadores viam nisso uma virtude, pois consideravam a  mudança um demoníaco pecado. E era de lá, desse país na mentira  conservado, que eles condenavam   toda realidade nova não aprisionada  naquele mapa .  Eles só não  esperavam que tal realidade fake, tida por eles como  “Verdade Eterna”,  começasse tão cedo  a rasgar...






sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

a semente e a floresta 2

- Nem tudo na vida se pode medir... Como alguns já disseram,talvez as coisas mais essenciais fujam ao que podem medir as réguas e números...
- Como assim?
- Pense numa semente: a de um abacate, por exemplo.
- Estou pensando... E daí?
- Você diria que a semente em questão é una ou múltipla?
- Como assim!? É evidente que ela é una!
- Mas será que é mesmo evidente?...
- O que você quer dizer exatamente?
- Se essa semente for plantada, nascerá dela um abacateiro, certo?
- Como não dizer que isso é evidente!?
- Calma, prossigamos... Quantos abacates nascerão desse abacateiro?
- Impossível precisar: serão muitos...
- Mas não há dúvidas de que em cada novo abacate uma nova semente surgirá...
- Acho que já sei o próximo passo que você quer dar: se essas novas sementes forem plantadas...
- Pois é...novos abacateiros nascerão.
- Isso faz sentido, mas é muito irreal e abstrato!
- Irreal talvez seja o pensamento que só vê o abacate e o abacateiro,porém é cego para ver o processo que os produziu. O que quero dizer é que não existe o indivíduo de forma isolada com uma identidade que nunca muda. Dentro de cada semente existe uma floresta inteira: o finito é prenhe do infinito. Mas este só nasce se a semente for plantada e cultivada.
- Acho que compreendi, embora seja muito difícil de entender...
- E digo mais: a alma individual também é uma semente. Potencialmente, dentro de cada alma está a alma da humanidade inteira... Talvez esteja até mesmo a alma daquilo que não é humano. A alma infinita não é feita da mera soma matemática de almas finitas, pois ela já está presente, inteira, na mais simples alma singular. Mas para essa alma maior nascer, é preciso que a alma individual seja plantada e cultivada. Assim, de certo modo, é morrendo que ela, a alma/semente finita, renasce (pois talvez o verdadeiro morrer , e do qual não se renasce,seja aquele de uma alma/semente que nunca foi plantada e cultivada, e que deixa definhar dentro de si as múltiplas possibilidades que ela mesmo desconhece). Dentro da mais simples alma, a de um garoto de rua por exemplo, está a alma de um Machado, de um Cartola, de um Gláuber, de um Guimarães ,de um Pessoa...e, também, a minha alma e a tua na alma do garoto de rua estão.  Sobretudo, está em todos a alma infinita que não tem nome, e que só se torna íntima daqueles que conseguiram ir além de sua própria pessoa. E estes só foram o que foram porque souberam encontrar dentro de suas almas a pequena alma de uma criança de rua, ou a alma de um povo inteiro, ou a de um louco, ou a de um índio, ou a dos que os saberes constituídos e opiniões estabelecidas dizem não possuírem alma... Ao encontrarem essa alma infinita dentro de si, após talvez vários desencontros não destituídos de dores, sofrimentos e descrenças , encontraram por fim a si mesmos, de tal modo que conseguiram expressar, com suas respectivas almas , a infinita alma que faz a alma finita germinar. Souberam, antes de tudo, se tornar a terra onde a alma infinita pôde se plantar; e assim se plantaram eles mesmos nessa alma que se plantou neles : cultivando-a, cultivaram-se, mesmo sabendo que seus frutos não seriam para eles mesmos.
- E as almas de um Hitler, de um Mussollini, de um assassino... também estão dentro da alma individual de cada um?
- Mas dentro da semente também não estão as forças que querem destruí-la? A semente também pode ser alimento para o mal, mas este não tem semente.
- Como o inseto que devora a semente?
-Pode-se dizer que sim.
- Como você sabe que cada alma finita tem a alma infinita?
- Procure-a nos olhos de quem você olha; olhe para cada um com os olhos dela.




o diabólico...


A palavra “Símbolo”   significa: “união das partes”. “Sim” tem o sentido de “união”, “composição”, “agenciamento”; e “bolos” significa “partes”. Tudo o que é autenticamente  simbólico vive do agenciamento de partes em razão de um todo. A Constituição, por exemplo, deveria ser uma realidade simbólica na medida em que ela não é  apenas forma jurídica,  nem suas verdadeiras partes são  apenas letras no papel ou os ministros do supremo:  suas partes de verdade são os cidadãos que lutam pela justiça e igualdade.  Um símbolo é um agente de um agenciamento. Tudo o que é autenticamente um símbolo não tem valor em si mesmo, isoladamente, pois sua função é servir de elo ou ponte para que  façamos parte de um todo, mesmo que seja um todo aberto, a fazer-se ( como realidade comum livremente instituída). Quando os indivíduos agem  movidos apenas  por seus interesses, eles somente  empreendem : tornam-se  apenas “empreendedores” ou “indivíduos econômicos”  alienados da política. Mas quando agem ativamente como partes de um todo, cada um se torna um  agente da economia política .   O contrário de “simbólico” é “diabólico”, que significa: “separar a parte do todo”. Também pode significar “esquartejamento” ou “despedaçamento”, como gostavam de fazer os torturadores idolatrados por esse governo energúmeno. Assim, diabólico é tudo aquilo que separa, divide , esquarteja, põe existindo sozinho, isolado, como um  ego ou gado. O diabólico impede os agenciamentos, obstrui os caminhos, impede as trocas e contágios. Porém  nada é mais diabólico do que um poder que separa a sociedade daquilo que ela pode , reduzindo-a ao pior dela  mesma , como faz esse governo obscurantista , este sim diabólico...

 









quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

diferença entre poder e potência



Há forças dominantes e dominadas. A diferença entre dominante e dominada se estabelece em razão da quantidade de força. As dominantes têm mais força, as dominadas o  têm menos. Força em relação a quê? Força como capacidade de dominar outra força, fazendo-se “vencedora”. Assim, o estado natural das forças é estarem em luta.  Esse modelo quantitativista  vale para tudo o que é força, incluindo  as forças políticas e até mesmo as forças psíquicas, pois certas ideias dominam nossa mente pela força que têm em vencer outras ideias. Mas uma ideia que vence pela força , como “ideia fixa”, não significa exatamente que ela nos torna pensadores...
Dessa diferença quantitativa entre as forças surge uma distinção qualitativa: as forças dominantes serão chamadas de “ativas”, ao passo que as dominadas serão as “reativas”. Mas as   reativas-dominadas  podem enfraquecer  as ativas-dominantes , contaminando-as com reatividade : é o que acontece na política quando um partido que se pretende libertário  é  dominado pelos partidos reacionários com os quais negocia “alianças”. A busca pelo poder alterna, às vezes com tons de comédia noutras de tragédia, dominantes e dominados.
Seria  isto então ser “poderoso”: ser dominante a todo custo, não importando por quais meios? A  potência não  é a mera força. Para que a força se metamorfoseie em potência é preciso que nela nasça um querer,  um “minadouro do criar”, como diz Manoel de Barros. A potência  não é  quantidade ou qualidade: ela é intensidade, e aprende a doar força aos que não a tem,  sem pedir força-obediência em troca, pois força não lhe falta, transborda. Esse querer que metamorfoseia o mero poder em potência  precisa ser , no entanto, conquistado: ao modo como um pintor conquista as tintas, ou um músico os sons, ou o albatroz o ar sobre o qual aprende a voar. Não raro, é ao preço de derrotas que se conquista essa força-potência : "A força de um artista vem das suas derrotas", ensina Manoel de Barros.



“Na democracia, o povo elege seus governantes; e esse mesmo povo, ou seus representantes, tem o poder de dissolver um governo . Nos totalitarismos, quem está no governo elege apenas parte do povo como sendo o 'seu' povo , e tenta dissolver o restante da maioria do povo  .” (Brecht)


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

os fluxos do poeta


Virou uma opinião comum hoje falar em “amores líquidos”, “amizades líquidas” e até mesmo em “ensino líquido”... Nostálgicos de "valores sólidos", os conservadores de toda espécie atacam a "volubilidade" desses nossos dias, e bradam por uma ordem rígida a qualquer custo. Porém, esse “líquido volúvel” nada tem a ver com a água poetizada por Manoel de Barros: “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”. Tal fluxo poético-existencial é fluido, mas não é sem força ou volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade, andarilho, mas sabe aonde ir, “horizontando-se”. Ele é o fluxo da liberdade criativa que os obstáculos, físicos ou simbólicos, não conseguem reprimir ou deter, por mais que tentem. Nem todo líquido é fluxo. Os líquidos se amoldam à forma de seus recipientes, e assim são “capturados”; já os fluxos ou inventam seus caminhos ou secam e morrem.
Em “O guardador de águas”, Manoel diz que “guarda águas”. Guardar também é cuidar. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é o oposto de construir represas, muros, gramáticas, ordens rígidas. Não se pode "passar régua" nos fluxos. Só se pode guardar fluxos sendo também um. O rio amazonas nasceu da geleira no alto dos Andes, mas da geleira devindo fluxo, correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos, "horizontados"; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente , o coração ou a pólis democrática.
O sólido talvez nada mais seja do que um líquido que enrijeceu dogmaticamente até virar uma identidade que não aceita a diferença; o líquido talvez seja um fluxo que perdeu sua consistência, sua crença em si mesmo, e vai tanto para lá como para cá,  como as águas de um lago sob a ação do vento.

( imagem da capa: “Passeio no Azul”, de Martha Barros) 

                       






domingo, 19 de janeiro de 2020

a lápide

Ali onde cresce o perigo,
brota também o que salva.
   Hördelin

Espinosa dizia que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, a pluralidade e potência  da  vida. Então, me esforçando para seguir o que prescreve Espinosa, penso sempre na continuidade da vida, mesmo quando  ela parece ter tido um fim. A minha vida, por exemplo, gostaria que ela continuasse, mas não em outra vida no “Além”, e sim numa vida que vicejasse aqui, como a vida verdejante de uma árvore. Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: pois o  papel que um dia foi árvore no livro ele ganha as asas da palavra  .Nos livros , porém, para quem escreve um , a continuidade conquistada é apenas “letral”, ao passo que  devir uma árvore é fazer parte do  livro da Vida. Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é um verbo criado por Manoel de Barros ). Mas quando ele vier, não desejo  ir para debaixo da terra. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da própria Vida . Assim, não é ao nada das cinzas  que serei reduzido, e sim ao que houver  em  mim de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira e ser sorvido por ela. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto. A amendoeira é prima das oliveiras, e dizem que veio clandestina do oriente , com uma semente sua incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou os oceanos. Lá no oriente a amendoeira era conhecida como a “árvore mais resistente”.    Não quero ser lançado , porém,  nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos e apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira inalcançável e isolada. Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo sem cercados. Não queria que fosse  , contudo,   uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam explorar: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .
Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles.E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

"Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular."(Espinosa)



-Crônica de Drummond:

FALA, AMENDOEIRA

(Carlos Drummond de Andrade )

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma.Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta,companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse – fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
- E vais outoneando sozinha?
- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
- Somos todos assim.
- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
- Não me entristeças.
- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.











sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

os inimigos da democracia...


Os piores inimigos da democracia, segundo os gregos, não eram os Persas ( a antiga Pérsia ficava  onde hoje está o Irã). Os piores inimigos da democracia estavam na própria Grécia.  O pilar da democracia era a seguinte ideia: o homem é um “animal político”, um “ser da pólis”. A palavra “pólis” é mais do que a mera cidade enquanto espaço físico.  A pólis é a  comunidade humana  na qual quem é comandado também comanda, diretamente ou por intermédio de um representante seu, que pode ser destituído caso não respeite as regras estabelecidas em comum. Mas os inimigos da democracia não aceitavam tal “igualdade natural” entre os homens. Para esses inimigos, o homem não seria um ser  capaz de autogovernar-se ; o homem seria, segundo eles,  um “animal de rebanho”. Como todo animal de rebanho, o homem precisaria de um “pastor” ( na Grécia, a ideia de pastor simbolizava uma forma de poder político não democrático que almeja  submeter a praça pública ao templo). É o pastor quem ordenaria  o que o homem deveria fazer, pensar, dizer, enfim, ser. Sem o pastor, o homem se perderia: precisaria estar então nas mãos de um pastor o comando da política.  Ao ouvir certa vez um crítico da democracia defendendo que o melhor governante não é a Constituição mas um  pastor, um filósofo que  apreciava mais as praças e ruas do que a teórica academia ,  assim indagou: “na democracia, podemos destituir um mau governante, mas o rebanho não pode destituir um mau pastor. Na democracia, é a defesa da liberdade e da justiça o que une os homens livres; já o pastor mantém  o rebanho  unido  fomentando o medo e o ódio aos lobos. Mas  o pastor cuida do rebanho  porque tem um interesse que escamoteia : ele quer   tosquiar o rebanho  e depois vender sua carne no mercado.  Quem é o pior predador: o que preda apenas o corpo , como o lobo, ou o que preda o corpo e a alma?” . Ameaçando, o antidemocrata perguntou: “qual teu nome!?”  O filósofo respondeu: “Sou Diógenes, a quem chamam ‘Cão’, pois farejo toda espécie de lobo, mas minha especialidade é achar os lobos dissimulados que se vestem de pastor para enganar e explorar o povo.”



- propostas nazistas para a cultura : ontem e hoje...





quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

a terceira margem do rio


As duas margens do rio prendem e limitam o fluxo das águas.  Mas o rio possui ainda uma terceira margem . Essa terceira margem ora é nascente , “minadouro”, do qual o rio nasce, ora é o oceano no qual o rio se torna. A terceira margem nos mostra que rio, oceano, chuva, suor e lágrima...tudo é metamorfose diferente de uma mesma  água fontana. 
A gramática é  as duas margens que contêm a palavra. Porém  a poesia é nascente da qual o sentido jorra, fluindo até o aberto onde se horizonta.

A cisterna contém,

a fonte transborda.

W. Blake


Poeta é quem possui visão fontana.
Manoel de Barros









O tempo e a eternidade são radicalmente diferentes, porém não estão separados. O tempo é um rio que corre entre duas margens: o futuro e o passado . O presente que passa liga as duas margens, ao mesmo tempo que as separa. A eternidade é a terceira margem do rio: quem vai daqui para lá a atravessa , mas quem está lá já não pode para cá atravessar. O outro lado da terceira margem parece às vezes o passado, como  um retrato que não recebe mais retoque ou novo traço. O outro lado da terceira margem às vezes parece o futuro , como a terra nova com a qual sonham utópicos tratados. Mas ninguém sabe o que está do outro lado da terceira margem, tampouco sabe o barco que , imóvel,  atravessa para o outro lado. Quando se é criança, a terceira margem parece estar lá no horizonte muito distante. Quando  vêm os cabelos brancos, porém, vemos a terceira margem  cada vez mais próxima:  e do barco que um dia  também será nosso, de lá nos acenam os que nos geraram.





domingo, 12 de janeiro de 2020

linha de fuga

Virou um lugar comum falar em  “amores líquidos”, “amizades líquidas” e até mesmo em “ensino líquido”... Não são poucos os que, nostálgicos de valores sólidos, maldizem a "fluidez" desses nossos dias.Porém, esse “líquido” carente de consistência  nada tem a ver com a água manoelina que vence os obstáculos: talvez essa "água que corre entre pedras" tenha a mesma fonte que o  fluxo  poético que Heráclito chamou de eterno rio - sem começo ou fim, apenas meio. O fluxo poético, como "liberdade caçando jeito" (para inventar seu estilo e afirmar sua diferença), é fluido, mas não é sem força ou volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade, andarilho, mas sabe aonde ir. O modelo do atual  “volúvel mundo líquido” , ao contrário, é a liquidez volátil do Capital colonizando os espaços subjetivos.
Ser líquido não é ser fluxo: líquido é um estado contrário ao sólido, que nega o sólido;assim como o sólido, enquanto estado, também é uma negação do líquido. Apesar de opostos, sólido e líquido são estados, isto é , enfraquecimento ou despotencialização do fluxo: por enrijecimento de uma identidade , no caso do sólido; por tornar a diferença um clichê , no caso do líquido.
Quando a água se torna líquida, ela não é menos um estado do que quando se torna sólida ( ao virar gelo). O fluxo é mais do que o líquido: ele é o ser mesmo do que nunca é um estado ou um "acostumado" , diria Manoel de Barros.
Enfim, os líquidos às vezes se amoldam à forma de seus recipientes, e assim são “capturados”( mesmo a tela do computador pode se tornar uma fôrma ou  molde);os fluxos , ao contrário, ou inventam seus caminhos ou secam e morrem.        


sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

lua cheia arta

Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A técnica diminui as distâncias, sem dúvida. Contudo,  uma coisa é diminuir as distâncias entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido. O telescópio diminuiu a distância entre a lua e meus olhos, isso é certo. Mas quando leio um poema sobre a lua, de que lua se trata? O poema não põe a lua mais perto espacialmente  de mim, porém  ele pode pô-la a tal ponto próxima  que a descubro dentro de mim, como o devir-lunar que me torno.












quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

9/1: centenário do poeta João Cabral de Melo Neto


O cacto é a planta que possui a maior raiz. A extensão  de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão. Quem mede o cacto  apenas pela sua parte  visível, e pensa que a parte  que vê é todo o ser do cacto, por certo  ignora o que o cacto é capaz de fazer.  O cacto cria imensas raízes para sondar  o subsolo ,   não se deixando  vencer pela  aridez   que o cerca. As  raízes  do cacto tateiam  procurando  veios d’água  metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe Terra a água  que o Céu lhe nega. Quando encontra a água,   o cacto anuncia sua descoberta brotando  flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce , de água fresca ficando  grávido.  Basta um pequeno furo para a água  jorrar matando a sede dos necessitados.  Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado,  não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor    que Maria Bonita  punha no cabelo  também floresceu do  cacto. No Nordeste , o cacto é o mais forte  símbolo de resistência  da vida . E ainda matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

“Quando não pode ser  cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto”(João Cabral de Melo Neto)
                                                                                                                                             

( enfeitando a capa do livro de João , cactos do Nordeste)





quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

a "clínica"


Certa vez, quando eu passava por um momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. Eu estava angustiado, pensava que não sobreviveria à operação. Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente a ser operado. De repente, adentra a sala de cirurgia o cirurgião. Ao vê-lo, meu medo desaparece, pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa! No  princípio, achei estranho . Mas  depois percebi que fazia sentido ser um  poeta o cirurgião de um coração angustiado. Sem demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi : não sangrou , nem houve dor. Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. Somente as duas mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito : "Ele está pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o cirurgião-poeta. “O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa com o passado, a decepção com o presente , o medo do futuro e a descrença nos homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso. Quando olhei para a mão do poeta ,  meu coração estava minúsculo, parecendo a semente sem a casca do fruto. Protestei: “poeta, com esse coração pequenino não vou sobreviver!” O cirurgião-poeta então respondeu, terminando sua arte, sua “clínica”: “Ele está assim pequeno porque deixei apenas o coração da criança.” Após ouvir isso acordei, e não apenas daquele sonho,  já amanhecia . Queria registrar  o sonho e me virei para pegar caneta e papel. Então, algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.







segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

terrorismos de Estado


Conforme argumenta Espinosa em seus livros sobre política, um dos maiores inimigos da democracia é o poder teológico-político. O que caracteriza o teológico é que ele se apoia em um livro que considera sagrado: o Alcorão, para os muçulmanos; o Talmud, para os judeus; a Bíblia, para os cristãos. O que fundamenta um Estado livre, ao contrário,  é que seu poder emana  de uma Constituição laica livremente instituída , podendo ser emendada ou substituída por outra mediante uma assembleia constituinte, obra humana, fato este que não pode acontecer com o Texto que fundamenta a teologia. O poder democrático nunca é teológico, porém o poder teológico, saindo de sua esfera própria, pode ambicionar ser político, mas nunca será democrático. Ao contrário, o poder teológico-político verá na democracia um inimigo a ser destruído em nome de Deus. Mas qual Deus? De qual religião? E aqui está o que revela a impossibilidade de um poder teológico-político se manter a não ser com a força ( não a de Deus, mas a das armas bem humanas, demasiado humanas...). Na democracia, a Constituição é um texto que todos seguem , mesmo os que pensam diferente, como liberais e socialistas. Mas judeus, cristãos e muçulmanos seguem livros sagrados diferentes que lhes conferem uma identidade religiosa incomunicável com a religião diferente da sua . Então, quando um poder teológico quer se tornar também poder teológico-político, ele quer na verdade não apenas desfazer a essência da política, que é pautar-se em uma Constituição livremente instituída que preserva a diversidade, como também afirmar-se como  religião única. Assim, quando o poder teológico, saindo da esfera que lhe é própria ( a esfera subjetiva-privada) ,  quer se tornar também poder político , correm risco não apenas a democracia e os partidos, como também as outras religiões que, mais cedo ou mais tarde, também serão perseguidas . O poder teológico-político , quando alcança o poder, traz para este certos dogmas inspirados em “gurus” ou “iluminados” que se creem governados diretamente por algum Deus abstrato, vingador, um Deus cheio de ódio, nunca o Deus do amor ( como aquele que São Francisco dançou...). Além disso, tal poder exigirá a força bélica de polícias e exércitos a serviço de seu delírio, pois um dos traços do poder teológico-político é a paranoia: eles se acham “eleitos” e, ao mesmo tempo, perseguidos. São ideias delirantes e paranoicas assim que movem o governo Bolsonaro e sua “política externa” de alinhamento automático com o terrorismo de Estado de Trump.










sábado, 4 de janeiro de 2020

- sherazade...


Havia uma aldeia onde um Sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor.  Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, ele resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele juntou as mulheres em uma ampla sala . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade. Quando o Sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida: a morte te espera...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o Sultão . No dia seguinte, Sherazade  prosseguia com a história e logo a emendava com outra. O Sultão não conseguia ficar imune a esse poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos (o Sultão imaginava, ao contrário, que poderosa é a palavra que ameaça de morte) .  Naqueles momentos ao menos , o Sultão curava-se de si próprio,  desabrindo nele  um outro . Quando o dia amanhecia e Sherazade precisava interromper a narrativa, o Sultão agora lamentava  e até pedia:"Não vá se atrasar amanhã!".  Como Ariadne ,   Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, e a este estendia  como linha de fuga . A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia o poeta Manoel de Barros.  Sherazade simboliza a vida que se expressa    múltipla  nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros,  apesar dos Sultões de hoje que ameaçam calá-la:   “poesia é afloramento de falas” (Manoel de Barros).

(imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam em um mesmo fluxo, como um  rio inaprisionável :"Sou água que corre entre pedras, liberdade caça jeito”, Manoel de Barros)