terça-feira, 29 de setembro de 2020

os semeadores e a motosserra

 

O filósofo Leibniz dizia que se a gente prender uma semente na mão,  com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore nascerão incontáveis frutos : dentro de cada um, uma nova semente. Se a gente plantar essas novas sementes,  delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis frutos, cada um grávido de novas sementes. Naquela primeira semente havia virtualmente uma floresta inteira , uma floresta-potência, assim como  em uma criança está a humanidade à espera de crescer. Pois humanidade não é uma quantidade numérica afim a   rebanhos, mas uma potencialidade inseparável de nossa singularidade, e   que se cultiva com educação, afeto  e liberdade . Para uma potencialidade florescer, da semente ou de uma criança, é preciso um exercício de cuidado e um espaço aberto livre de estreitezas. Dentro de uma ideia viva  há outras ideias, infinitas ideias, pois toda ideia viva é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa.

A motosserra literal com a qual se armam os fascistas para derrubarem as florestas, essa motosserra literal é a abominável e criminosa  representante de outra motosserra,  uma motosserra simbólica com a qual os obscurantistas ameaçam as florestas virtuais ainda nem nascidas, nas crianças e em nós.  Tanto num caso como noutro, o objetivo é desertificar  a floresta, desertificar  as ideias , para assim fazer “passar a boiada”  e tudo tornar rebanho dócil.

Enquanto os obscurantistas se armam com motosserras, educadores, poetas e  artistas   plantam ideias-sementes libertárias . E sempre continuarão plantando, mesmo que em torno cresça o deserto. Indignação e resistência também são  sementes. E que não tarde a ação que precisa germinar  delas.


“Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol. ”

(Manoel de Barros)


( imagem: "O semeador" / de Van Gogh)

É interessante como que nessa obra de Van Gogh o próprio sol parece um girassol que acabou de brotar de uma semente . A semente da qual brota o sol é o próprio céu aberto ( que o sol inunda de um amarelo vivo, incontível...). O sol da pintura é sol nascente, sol que inaugura um dia novo: carpe diem. Perto desse sol, uma casinha simples, azul. Talvez seja ali que more o semeador, que escolheu fazer  morada perto do horizonte. Ele semeia em uma paisagem aberta, “horizontada”, como diria Manoel de Barros. Assim como naquela terra, algo em nós é semeado.


domingo, 27 de setembro de 2020

história do brasil

 

Um dos últimos filmes de Glauber Rocha se chama “História do Brasil”. O filme não foi concluído, infelizmente ( o cineasta faleceu antes de terminar a obra). É uma das melhores histórias do Brasil já feitas, pois narra acontecimentos que a história oficial não conta e esconde. E os fatos que a história oficial conta, Glauber os vê de uma perspectiva nova, sempre agenciando crítica e criatividade como instrumentos de um pensar inquieto, questionador, não conformado. No filme, as imagens acompanham a voz que narra os acontecimentos. Cada acontecimento narrado , portanto, é ilustrado por imagens que simbolizam aquele acontecimento, na visão de Glauber. Quando chega ao ano de 1964 e começa a abordar o golpe militar , Glauber ilustra esse abominável episódio de nossa história com as imagens do primeiro culto acontecido no Brasil de uma igreja que ,hoje, apoia Bolsonaro e faz “arminha” com a mão apontando para Cristo. Essa igreja vinha do sul dos EUA, região dominada pela mentalidade escravocrata, conservadora e segregacionista. O tal culto aconteceu na Praça da Sé, exatamente em 1964, logo após ao golpe. Essa praça foi escolhida pelo seu simbolismo político associado aos comícios que ali aconteciam reunindo trabalhadores, estudantes , enfim, gente do povo querendo gerir seu destino. A entrada desse tipo de discurso teológico-político aqui no Brasil também foi uma estratégia dos milicos para cassar a influência de setores progressistas do catolicismo, seguidores da mensagem de São Francisco. Assim, o objetivo dos militares era igualmente perseguir certas práticas religiosas que buscavam a justiça social, representada à época pela defesa da reforma agrária. Um fato chama a atenção nesse culto teológico-político: o chamariz para o culto não era falar da ajuda aos pobres ou caridade. Duas ideias moviam a fala dos pastores ( alguns estadunidenses, inclusive): a prosperidade, simbolizada pelo terno impecável dos pastores, e a "expulsão do demônio". Glauber mostra então as imagens dos pastores “tirando” o demônio daqueles que ali estavam: todos os “exorcizados” eram negros e pobres. O “demônio” era tudo aquilo que impedia adentrar no rebanho... “A obediência traz a prosperidade”, pregava o pastor enquanto dava uma piscadela de olho para o milico armado que a tudo acompanhava . Enquanto mostrava as cenas desse culto, em off Glauber falava de AI5, censura, imperialismo americano, mídia vendida, minorias perseguidas, cerceamento de direitos...

 

(Obs: a cena da piscadela do pastor teológico-político para o milico não está no filme, ela surgiu aqui na minha mente quando revi esse filme à luz do que acontece hoje neste nosso obscuro presente... Como não achei o cartaz do “História do Brasil”, coloco aqui o cartaz de outro filme imperdível de Glauber. "Teológico-político" é um expressão que vem de Espinosa. Teológico-político é todo poder que instrumentaliza a política para fins de poder religioso, instrumentalizando também a religião para fins de poder político. Poder teológico-político não é prática de uma religião específica, pois tanto o Estado Islâmico quanto o que acontece hoje no Brasil são formas de poder teológico-político)

















                            ( "São Francisco monumentou os passarinhos." / Manoel de Barros)

sábado, 26 de setembro de 2020

linhas de fuga

 

Certa vez uma pessoa me perguntou o que era a “linha de fuga” ensinada por Deleuze , Guattari e Cláudio Ulpiano. Tentei responder da seguinte maneira: uma linha de fuga não é exatamente fugir ou escapar de algo, mas fazer fugir algo que está aprisionado, cerceado , sufocado. O importante mesmo é a linha, pois muitas vezes é a linha que se encontra presa, limitada. Antes de tudo, linha de fuga não é uma ideia teórica, linha de fuga é uma prática :algo que só existe se for criado, feito, produzido, ousado. Dei então o seguinte exemplo: Arthur Bispo do Rosário vivia preso não apenas entre as paredes de um hospital psiquiátrico, pois ele também estava cerceado dentro dele mesmo. No hospital, vestiam seu corpo com um uniforme, uma vestimenta padrão que igualmente vestia os outros internos, homogeneamente. Até que certa vez Bispo do Rosário ficou nu, tal como um recém-nascido, e começou a desfazer a forma do uniforme que o poder lhe vestiu. Ele desfez a forma que dava ao uniforme um significado específico e determinado. Ele destruiu a forma porque ele queria encontrar a linha, a linha que estava presa naquela forma-uniforme, assim como ele mesmo estava preso na incomunicabilidade da exclusão radical. Nietzsche dizia que “Só podemos destruir sendo criadores.” Bispo do Rosário destruiu a forma-uniforme porque queria criar algo com a linha-fio de que o uniforme era feito. Ele também desfez as toalhas, os cobertores...até achar o fio do qual tudo é feito. Ele enrolou então os fios até formar um novelo colorido. Depois, pegou um lençol branco que até então cobria seu corpo sofrido como se fosse uma mortalha, e fez desse lençol branco uma tela para nela bordar , com os fios, uma história, a sua história, que é também a história dos explorados, dos injustiçados , enfim, a história daqueles que a História dominante apaga e torna invisível . Os fios puxados do novelo se assemelhavam ao fio de Ariadne que vence labirintos tidos por invencíveis. Arthur Bispo do Rosário desfez o uniforme padrão para dele fazer fugir uma linha para bordar sua diferença e singularidade, que assim conquistou uma fala. Com sua bordadura libertária-artística, ele expressava uma linha de fuga que é inspiração para que nunca desistamos de fazer também nossas necessárias e urgentes linhas de fuga , por maior que seja o labirinto que nos cerca , por maior que seja a ameaça dos que idolatram uniformes, rebanhos e fardas.







"Minha casa pegou fogo, o teto ruiu...Nada me esconde mais a deslumbrante lua. " ( Koan japonês)




                                                                 ( um respiro...)

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

eros, psiquê, pneuma

 

Em grego, há vários nomes para a “alma”. O mais original  deles é “Psiquê”. Não por acaso, na mitologia  Psiquê era o nome próprio de uma jovem. Diferentemente do termo  “Razão”, princípio masculino , Psiquê não é o nome  de apenas uma parte da alma, mas da alma inteira. Psiquê não era somente   raciocínio e teoria. Ela era isso também e mais sensibilidade, intensidade, beleza , generosidade , coragem, coração e poesia. Enquanto a Razão tem a pretensão de  existir e pensar sozinha ( exemplos disso são o  racionalista Descartes,  com o seu ensimesmado “Penso, logo existo”, e o rígido  Kant  com sua “Razão Pura”) , Psiquê só se viu inteira quando encontrou sua companhia. A companhia de Psiquê é Eros, o Amor. Esta palavra é a reunião da partícula “a” com função privativa ( como em “a-fasia”, “não fala”) mais a abreviação da palavra  morte ( “mor”). Assim, no seu sentido original, “amor” é “não morte” ( nos vários sentidos que a morte pode ter). Quando lutamos  pela não morte das florestas, pela não morte dos povos originários, pela não morte da educação, enfim, pela não morte de nós mesmos enquanto sociedade plural e heterogênea, lutamos  mais fortes se o amor também nos fizer companhia. É na companhia de Eros , agenciada com ele, que Psiquê resiste à morte; e  é na companhia de Psiquê que Eros aprende que ele mesmo não sabe tudo o que pode.

A  “alma” possui ainda  outro nome: “Pneuma”. Esta palavra costuma ser traduzida por “sopro”. Em latim, “spiritus”. Porém  pneuma, ou spiritus, não é  o sopro  que a gente expira  ( quando colocamos o ar para fora). Pois pneuma designa o ar  que a gente inspira, puxando o ar para dentro de nós . Quando a gente expira, é a gente que sopra; mas quando a gente inspira é a própria  vida  que sopra  dentro de nós. Quando o bebê sai do ventre e nasce,   o ato que inaugura seu respirar é o inspirar  que o desperta para a vida. Esse inspirar inaugural não é feito apenas pelo seu pequenino pulmão, mas por todo seu corpo. Este é o sentido original de “inspiração”: “encher-se de vida para intensificar a vida que vive em nós”, para assim não sufocarmos. Na verdade, a tradução mais correta de “pneuma” não é “sopro”, e sim “brisa úmida”, como aquela que , vinda do oceano, ao deserto vivifica.

 

"Por toda parte , estremecendo, sentimos o mesmo  Sopro gigantesco que, escravizado, luta por libertar-se." ( Nikos Kazantzákis)






terça-feira, 22 de setembro de 2020

perséfone

 

Segundo a mitologia, Hades é o deus que habita a região escura muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra. Certa vez, porém, Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a deusa da fertilidade. E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores. Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer no taciturno  Hades um desejo por cores. Ele raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram. Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava . Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone viveria lá embaixo com Hades : sua ausência entre nós recebeu o nome de inverno. Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe de volta  e enche de vida a terra :  tudo recomeça , renovado. Hoje, a treva não está somente lá embaixo,  treva pior  nos ameaça aqui em cima.  Apesar disso, nada detém  Perséfone: hoje, 22 de setembro, começa a  primavera, tempo em que Perséfone chega para florir de vida  a terra.

 

“O céu da teoria é cinza;

mas sempre verdejante é a árvore da vida.” (Goethe)

 

- imagem: “O abraço amoroso de Pachamama ( a Mãe-Terra )”/ de Frida Kahlo.



E ontem foi Dia da Árvore. As mentalidades obscurantistas sempre desprezam a natureza, já nos ensinava  Espinosa. Esse desprezo é um sintoma de ódio à vida. Como homenagem às árvores tão ameaçadas, assim como os povos das florestas , um devir-árvore do poeta:


 




CANÇÃO DA PRIMAVERA / de Mário Quintana

 

Primavera cruza o rio

Cruza o sonho que tu sonhas.

Na cidade adormecida

Primavera vem chegando.

 

Catavento enlouqueceu,

Ficou girando, girando.

Em torno do catavento

Dancemos todos em bando.

 

Dancemos todos, dancemos,

Amadas, Mortos, Amigos,

Dancemos todos até

Não mais saber-se o motivo…

 

Até que as paineiras tenham

Por sobre os muros florido!


sábado, 19 de setembro de 2020

o lápis do poeta

 

Manoel de Barros só escrevia à mão sua poesia, e sempre a lápis. Nunca lapiseira de plástico, sempre  lápis de madeira. Curiosamente, “digitar” é um ato que faz parte da atividade de “bater”, “golpear”. Quem digita, bate com os dedos nas teclas. Escrever à mão expressa outro tipo de movimento: desenhar. Quem escreve agencia sua mão com o corpo do lápis, e  por intermédio deste é nosso corpo que também escreve, com seus nervos e fibras, incluindo as do coração. Quem escreve à mão  desenha, parecendo às vezes que o lápis também dança na ponta de seu grafite, como a bailarina  equilibrada na ponta dos pés. Para que na palavra também se expresse a vida,  mais adequado  é o lápis do que a caneta: a tinta que sai desta é coisa química, mas o grafite que o lápis liberta veio da imanência da terra, é vida. O cérebro não funciona da mesma maneira quando se digita e quando se escreve à mão, quando se bate e quando se desenha, quando se golpeia e quando se dança. Há certa violência em bater-digitar. Talvez essa seja uma das razões que explique porque  os fascistas gostam tanto de violentar também as teclas e, por intermédio destas, as ideias, encontrando no meio digital um ampliador de suas violências físicas e simbólicas. Além disso, sem que saibamos, há o risco de  tudo o que digitarmos nas redes sociais  o capital cibernético reduzir  a algoritmos , para assim nos oferecer como mercadoria aos novos mercadores de gente, sempre ávidos por inescrupulosos lucros.

Na madeira do  lápis  do poeta ainda vive e resiste  a árvore que um dia fez parte do Pantanal que os criminosos hoje incendeiam ,  para  tudo  reduzir a  pasto de  gado obediente .  Por intermédio do  lápis do poeta continuam a  falar as árvores, as florestas, os bichos, as plantas, os pássaros , as paisagens, os horizontes ...enfim, fala tudo aquilo que os destruidores da vida querem calar e matar.  Nada contra o digitar, porém escrever à mão, a lápis, é ato mais afim ao poema que , como gente, também nasce: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve o poeta.

 

( imagem: Manoel , seu  Pantanal e montagem com lápis. O  verso  gravado no lápis e o desenho são  do próprio poeta)







- a música "Passaredo", de Chico & Francis Hime, também é uma metáfora comparando os poetas, os músicos, os cantores, enfim , os artistas em geral a passarinhos canoros. A expressão "bico calado que o homem vem aí" é uma referência aos milicos da ditadura e seus adeptos.


- o verso do poeta citado na postagem se encontra neste ( excelente ) livro:



- sobre a importância da escrita à mão no desenvolvimento mental da criança:

terça-feira, 15 de setembro de 2020

dona emília

 

Minha tia,  Dona Emília, me dizia quando eu ainda era garoto e cursar filosofia para mim era ainda apenas um desejo, um rascunho de vida futura: “meu filho, existem dois tipos de homem: o homem-mosca  e o homem-abelha. O homem-mosca , ao entrar num lugar o mais limpo que seja, sempre procurará pela sujeira, real ou imaginada, que ele supõe estar ali. Sobre essa sujeira ele vai pousar , vai construir sua casa, e daí julgará tudo por essa sujeira: a sujeira sairá pelos seus olhos maldosos; sairá pela sua boca como palavra de maledicência e ódio. O homem-abelha, mesmo diante do pântano da maior sujeira, mesmo aí ele achará uma flor onde pousar e se apoiar. Daí ele olhará ao redor, verá a sujeira, mas verá também que não é nela que ele está apoiado e, por isso mesmo, será capaz de voar sem se sujar, uma vez que nesta certeza estará apoiada sua intenção e confiança. E seu viver irá de flor em flor, mesmo que raras, e seu fazer será um esforço para aumentar os pontos de apoio para aqueles que , em meio a tanta sujeira, nela não querem pousar. O homem-abelha é fecundado e se torna instrumento de fecundar beleza, vida, dignidade, poesia, invenção. Então, meu filho, se esforce o máximo que puder para ser um homem-abelha: veja onde pousa, creia que sempre você encontrará onde pousar mesmo onde se multiplicam e mandam os homens-moscas”.

Depois, ao ler os deleuzes, os espinosas, os epicuros, os nietzsches, os lucrécios, os manoéis de barros...compreendi que minha tia, em sua sabedoria que , como diz Manoel de Barros, não “vem em tomos”, compreendi que o lugar onde pousamos é o “dentro da gente”: é o que pensamos que, antes de tudo,  constitui sujeira ou flor. Ao entrar dentro  dele, o homem-mosca só encontra sujeira : e ele mesmo põe os ovos que se multiplicarão e se alimentarão  dessa lama.  O homem-abelha, como diz Manoel de Barros, “dá o amor para que este não apodreça dentro dele”.

 

 

 

( este texto, que tenta reproduzir as palavras que ouvi dela, é uma sentida homenagem à querida Dona Emília, falecida hoje)

 

domingo, 13 de setembro de 2020

a academia, o liceu e os jardins

 

( Com a pandemia, uma certeza fica ainda mais clara: a educação pública e presencial é mais do que necessária, é insubstituível; e mostra o quanto é absurda e criminosa a proposta do poder teológico-político de acabar com a escola e professores para manter apenas educação em casa)

 

Há três modelos de educação: a Academia, o Liceu e os Jardins. Foi Platão quem inventou a Academia. Na porta da Academia Platão afixou a seguinte placa: “Só pode entrar aqui quem for geômetra”. Assim, na Academia de Platão somente eram ensinadas coisas exatas: fórmulas, dogmas, gramáticas . Os poetas eram proibidos de entrar lá. Já o Liceu é obra de Aristóteles. Este queria mostrar que há ordem não apenas na matemática, a ordem também existe na própria natureza. Para provar isso, Aristóteles recolhia flores de uma mesma espécie e dizia: “apesar de cada indivíduo ser diferente, todos nasceram de um mesmo molde : tudo o que existe se explica por uma Identidade-Padrão". Quando um aluno mais curioso ia explorar o mundo e aparecia com uma flor diferente, uma flor única e rara, Aristóteles mandava jogar a flor fora, alegando que a diferença é um erro da natureza que nos afasta da Razão. Foi Epicuro que aprendeu a fazer dos jardins salas de aula: como espaço aberto à natureza multivariada. E as flores diferentes que a Razão homogeneizante desprezava , Epicuro as acolhia em seu jardim, as plantava e regava. Ao invés de tabuada e gramática, cantos e cores; no lugar de moral e cívica, ética e artes . Não apenas a alma dizia “presente” na hora da chamada, também dizia “presente” o corpo, com a vida intensificada. A ideia de “jardim” sobreviveu ao tempo e às perseguições , e sua semente ainda vive nos nossos “jardins de infância”. Havia algo da infância nos jardins de Epicuro, como (re)invenção de um devir-criança , feito a “não velhez” do poeta Manoel de Barros . Hoje, a academia se tornou sinônimo de universidade, isso é fato. Os fascistas querem que nela se ensinem apenas cartilhas e tabuadas, ordens exatas que adestrem para o “mercado”. A universidade é composta de bibliotecas , laboratórios , refeitórios, isto é, coisas físicas, e mais os educadores, funcionários e estudantes, a sua parte viva. Quando todos se unem para proteger e intensificar essa vida, mostrando ao povo que o saber ali produzido também faz parte de sua vida, a universidade então sai dos muros da academia, ganha praças e ruas, e se torna novamente Jardim de Epicuro: conhecimento que potencializa a vida.

 

(foto partilhada da página A UFF pela Democracia. Este rapaz da foto se chama Elcimar Moreira da Silva , ele é estudante de Física da UFF )



sábado, 12 de setembro de 2020

os afetos em espinosa

 

Segundo Espinosa, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza. Depois Espinosa acrescenta mais dois afetos básicos: o amor e o ódio. O amor e o ódio vêm depois porque eles são afetos que dependem de objetos, ao passo que alegria e tristeza são processos internos ( por isso , são chamados “paixões”: paixões alegres e paixões tristes). O desejo, a alegria, a tristeza , o amor e o ódio: esses são os afetos principais dos quais todos os outros afetos decorrem . Alegria e tristeza, amor e ódio formam pares antagônicos, porém o desejo é único, ímpar. Espinosa também diz que “O desejo é a essência do homem.” Essa essência varia aumentando ou diminuindo , se potencializando ou se despotencializando, conforme a existência que levamos. A essência ( o desejo) expressa nossa singularidade, enquanto  que nossa existência se traduz nos encontros que fazemos. Amor e ódio são afetos nascidos dos encontros , encontros esses que aumentarão ou diminuirão o nosso desejo, a nossa essência. Os bons encontros geram amor e alegria: o desejo se intensifica;  os maus encontros acarretam ódio e tristeza: o desejo se enfraquece. Como o desejo é vida, é a vida que é aumentada ou diminuída conforme os encontros que fazemos. A tristeza e o ódio não fazem parte da essência , pois a essência é o desejo. Porém, como a essência em Espinosa não vive apartada da existência ( como acontece em Platão e no restante da filosofia), a tristeza e o ódio podem enfraquecer a tal ponto o desejo que este pode até mesmo desejar se submeter à tristeza e ao ódio, como se esses fossem sua essência, gerando assim a servidão. Contudo, Espinosa não demoniza a tristeza e o ódio, tais afetos fazem parte da existência humana, eles não são “pecados” , nem mais fortes que a alegria e o amor. A tristeza e o ódio fazem parte da existência humana tal como os relâmpagos e as tempestades fazem parte da existência do céu. Mas o céu não é só relâmpago e tempestade, o céu também pode ser de azul claro e translúcido: o céu também pode ser  de alegria. Em latim, “desejo” é “cupiditas”: “relativo a Cupido”. Diferentemente do “Eros” grego, que abandonou  Afrodite (o corpo) para ficar apenas com  Psiquê ( a alma), o Cupido latino é , ao mesmo tempo, alma e corpo ( e os une).  Segundo ainda Espinosa, somente um afeto afirmador da vida pode vencer um afeto que a enfraquece. Os raciocínios são importantes, porém não é racionalizando a tristeza e o ódio  que se pode vencê-los, pois os afetos também se enraízam no corpo, e o corpo é infenso a raciocínios. Quando a gente compreende as razões de existirem a tristeza e o ódio ( e compreender é mais do que racionalizar,  teorizar ou julgar), dessa compreensão nasce uma alegria que vence a própria tristeza que nos impedia de pensar e agir.









 

 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

os ipês de pindorama

 

A flor do ipê é uma das poucas que floresce colorida durante todo o ano, resistindo até mesmo ao cinza do inverno. A flor do ipê assim nos mostra que é possível ser forte e resistente sem perder a arte de criar beleza. Antes de os colonizadores aqui chegarem, os índios acreditavam que o ipê era a própria expressão da força fértil de Pindorama, nossa Terra-Mãe ancestral . Na mitologia tupi-guarani, um dos sentidos de Pindorama é: “terra onde os maus são vencidos”. As flores do ipê são sempre de cores múltiplas, combinando o púrpura, o rosa, o branco e o amarelo . Os colonizadores tentaram acabar com o ipê, porém não conseguiram. Então, descobriram que podiam ganhar dinheiro sangrando uma árvore chamada pau-brasil, cuja resina avermelhada corre no tronco da árvore como em nossas veias o sangue. Foi a partir do comércio dessa resina cor de sangue que a terra explorada ganhou novo nome, sendo então chamada de Brasil pelos seus algozes. Por debaixo do culto fascista e pseudonacionalista ao verde e amarelo existe ainda a mesma mentalidade criminosa que sangrou e ainda sangra nossa Terra-Mãe, mátria ancestral. Nunca haverá independência enquanto os maus continuarem sangrando nossa vida e dignidade. Simbolicamente, devemos aprender com a autêntica independência perseverante dos ipês de Pindorama, que resistem florescendo como vivas bandeiras pintadas pela própria natureza em púrpura, rosa, branco e amarelo.

Inspirados nas bandeiras Wiphala e Mapuche (bandeiras da luta por independência dos povos originários da América Latina), esboçamos/rascunhamos "brincativamente" uma bandeira de Pindorama ( a partir das cores do ipê). "Brincativo" é o nome que o poeta Manoel de Barros dá ao criar libertário e insubmisso que não perde o que Espinosa chama de "potente alegria".



-bandeira Mapuche:


-bandeira Wiphala:






sábado, 5 de setembro de 2020

a semente

 

Certa vez, quando eu passava por um momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. Angustiado, eu pensava que não sobreviveria à operação. Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente a ser operado. De repente, adentra a sala de cirurgia o cirurgião. Ao vê-lo, meu medo desaparece, cheguei até a  sorrir...Pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa! No  princípio, achei estranho . Mas  depois percebi que fazia sentido ser um  poeta o cirurgião de um coração  angustiado. Sem demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi : não sangrou , nem houve dor. Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. Somente as duas mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito : "Ele está pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o cirurgião-poeta. “O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa com o passado, a decepção com o presente , o medo do futuro e a descrença nos homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso. Quando olhei para a mão do poeta ,  meu coração estava minúsculo, parecendo uma semente salva de um fruto que perecia.  Protestei: “poeta, com esse coração pequenino não vou sobreviver!” O cirurgião-poeta então respondeu, terminando sua arte, sua “clínica”: “Ele está assim pequeno porque deixei apenas o coração da criança.” Após ouvir isso acordei, e não apenas daquele sonho,  já amanhecia . Queria registrar  o sonho e me virei para pegar caneta e papel. Então, algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.

 

“Os delírios verbais me terapeutam.”(Manoel de Barros)






quarta-feira, 2 de setembro de 2020

ao deus desconhecido

 

Os gregos não tinham religião com Dogmas escritos , Mandamentos , Leis ou coisas assim. Os gregos possuíam altares para vários de seus deuses: Atena, Zeus, Apolo...menos para Dioniso, pois esse deus não aceitava altares ou templos, ele morava apenas nos caminhos, como deus-itinerante, andaleço-nômade. Mas também havia um altar com este nome: “Ao Deus Desconhecido”. Tal Deus Desconhecido não era um deus que um dia seria conhecido. Também não era um deus do qual se ignorava a existência ainda. O Deus Desconhecido tinha por essência ser desconhecido eternamente, o que não impedia que fosse aceito e amado, não menos que os deuses conhecidos. Desse Deus Desconhecido não podia nascer fanatismo , nem alguém imaginando falar em nome dele para combater quem acreditava em deuses diferentes, e muito menos usá-lo para fim teológico-político. Mais do que mera questão religiosa, tal prática de tolerância também expressava a índole democrática daquele povo.

No altar dedicado ao Deus Desconhecido não havia imagem ou estátua com identidade única e padronizada. Havia apenas flores de todas as cores emoldurando uma superfície espelhada na qual cada um podia ver refletido o próprio rosto .

 

“A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.” (Deleuze)

 

( o livro abaixo é só uma indicação de leitura)