quinta-feira, 30 de novembro de 2023

em defesa da filosofia ( e da sociologia)

 

Quando alguém cobra honestidade dos políticos, este alguém está se apoiando na filosofia , pois está exigindo uma virtude ética: a honestidade. E Ética é uma disciplina da filosofia.

Quando alguém diz:  “o que esse cara fala não tem lógica! ”, também está valendo-se da filosofia, pois Lógica é uma disciplina filosófica.

Quando alguém sente: “ Gosto dessa música!”, também está dialogando com a filosofia, pois o “gosto” ( assim como o belo, o feio, o cômico, o grotesco, o sublime, etc)  é uma categoria da Estética, uma disciplina filosófica.

Quando alguém recomenda: “É preciso método para fazer bem isso”, na verdade pede um procedimento filosófico, pois Metodologia é uma matéria da filosofia.

 Quando alguém diz: “Sou pragmático, odeio teorias”, também está levantando uma questão filosófica, pois “Pragmatismo” (assim  como “Utilitarismo”) é uma  corrente da filosofia.

E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, também não escapa da filosofia , pois  indaga  sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia.

Enfim, é impossível alguém estar vivo  e não se colocar questões  como: “O que é a vida ? O que é o tempo? O que é a liberdade? O que é o amor? O que é o conhecimento? Quem eu sou?...” Não apenas para formular as perguntas, mas também para vislumbrar sentidos para elas, quem assim indaga também bate à porta da filosofia, mesmo que não tenha cursado  ou lido livros de filosofia,   pois essas são questões de uma disciplina da filosofia chamada “Metafísica”.

 Uma coisa é a filosofia, esta se encontra  registrada em livros escritos pelos filósofos;  outra é o filosofar, cujo sinônimo é pensar. Os tiranos de toda ordem sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa  descoberta do  pensar ,  ou se já o descobriram, não o exerçam  ( não importando a faculdade que tenham escolhido cursar).

  ainda  as crianças , que são filósofas /questionadoras por natureza...Infelizmente , porém, um sistema perverso de acomodação vai atrofiando suas asas para  assujeitá-las  a gaiolas, incluindo as gaiolas digitais-tecnológicas...

Enfim,  a filosofia também é condição de existência da cidadania democrática, como ensina Espinosa , e não está restrita apenas às academias.

Mesmo sem saber, quase todos se veem diante de questões filosóficas , mesmo que  não sejam  nomeadas  assim . Por exemplo,  se alguém  não aceita viver em “rebanhos” tutelados por tiranias, incluindo a tirania do “Mercado”, certamente lhe ajudará conhecer um pouco mais de filosofia política.

Mesmo sem ser nomeada, a filosofia se torna necessária quando somos  colocados diante de questões que requerem  o pensar, o sentir e o agir autênticos,  pois a isso exige a vida digna.  

 Mas para potencializar o pensar próprio,  é necessário ler os filósofos ,  assistir aulas de filosofia e nos ajudar a defendê-la dos tiranos de ontem e de hoje que sempre ameaçam o pensar com cicutas.




 

Esta abominável fala contra a Filosofia e a Sociologia  foi feita pelo  secretário Estadual da Justiça e Cidadania do governo (f-a-s-c-i-s-t-a)  de SP  , Fábio Pietro , durante a  abertura da  recente 4° Conferência Estadual de Juventude de SP. Em sua ignorância cheia de si, ele desconhece que os primeiros filósofos também eram matemáticos ( como Pitágoras e Platão, sem falar de Descartes, um dos criadores da matemática moderna); além disso, os primeiros estudos sobre a língua ( seus aspectos gramaticais e sintáticos) também foram obra de filósofos. A juventude presente, indignada, deu a devida resposta :










segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Eco e Narciso

 

          

 Eco era uma divindade feminina capaz de produzir narrativas. Eco é o equivalente de Sherazade na mitologia grega. Eco possuía  a potência de narrar e imergir em suas narrativas quem a ouvia .

Sabedor disso, e querendo fugir dos olhos de Hera, certa vez Zeus pediu para que Eco, com suas histórias, entretece sua esposa Hera. O plano de Zeus era sair do Olimpo para ir viver aventuras amorosas...

Sem saber das reais motivações de Zeus, Eco fez o combinado: encontrou Hera e a abduziu  com suas inesgotáveis histórias. Durantes horas e horas, Hera se esqueceu de tudo , absorvida que estava pelas cores e paisagens criadas pela voz e  palavras de Eco.

A noite já avançava quando Hera se deu conta da ausência de Zeus. De imediato, ela deduziu a estratégia de Zeus empregando Eco. Embora esta não tivesse culpa, Hera fez cair uma maldição sobre Eco.

Os gregos acreditavam que as palavras que chegam à boca carregadas de vivências e cores, tais palavras vêm do coração e se mantêm ligadas a ele por tênues fios, como os de Ariadne. As “cordas vocais” atestariam que as palavras que narram histórias que envolvem mantêm fios e cordas ligadas ao coração, como se este fosse um novelo.

Para alguém como Eco tão rica de palavras que afetam, Hera pensou na pior maldição possível. A pior maldição para alguém como Eco não é ficar muda. A pior maldição foi o que Hera fez: ela cortou os fios entre as palavras e o coração de Eco, de tal maneira que Eco não ficou muda, porém toda palavra por ela dita viria de fora : seria apenas palavra repetida, mera cópia do que o outro diz.

Hera atingia assim Eco em sua riqueza, uma vez que o nome dela significa que toda riqueza por ela falada, partilhada e  comunicada era eco da riqueza que ela trazia dentro dela, enquanto riqueza de ideias, de sentires, de pensares  e  imaginações...

Sentida com a terrível maldição , Eco saiu do Olimpo e veio se esconder num bosque. Foi nesse bosque que Eco viu pela primeira vez Narciso. Antes que Narciso a visse , Eco foi para trás  atrás de uma moita, pois não queria ser vista de imediato.

Ao mexer-se atrás da moita, sem querer Eco fez com que os galhos balançassem e fizessem barulho. Narciso voltou-se para moita e perguntou: “Quem está aí?”. Atrás da moita ouviu-se então a voz: “Quem está aí?”. Narciso insistiu: “Apareça agora ou vou embora". Ouvindo então da voz atrás da moita: “Apareça agora ou vou embora”.

Narciso deu de ombros e se foi... Sentindo-se rejeitada, Eco foi se esconder no fundo de uma caverna. Até hoje quando entramos numa caverna e chamamos por Eco, com nossa própria voz ela responde...


________


Obs: Narciso teve por pai um rio, o Cefiso,  que seduziu uma ninfa. Assim, Narciso é filho das águas: realidade fluida e inconstante , como o tempo que passa e a tudo arrasta. Ao serem seu espelho , as águas mostraram a Narciso a sua origem , onde nada se fixa, tudo passa. Etimologicamente, o nome “Narciso” tem por raiz o termo “nark”, que significa “entorpecido”, “anestesiado” ( tal como “narcótico”). A própria imagem entorpece Narciso, o impede de ver a realidade,  como uma droga que vicia.

 



                       ( "Narciso", de Vik Muniz. Obra feita com material retirado de um lixão)






“Narciso acha feio o que não é espelho.”

              Caetano  Veloso








domingo, 26 de novembro de 2023

Heidegger e o poetar originário

 

O filósofo Heidegger faz uma distinção fundamental entre a filosofia e a poesia. Segundo ele, o pathos do pensar filosófico é o estranhamento. “Pathos” é um afeto originário que acompanhar o pensar. “Estranhamento” é uma palavra próxima a “estrangeiro”, enquanto aquele que não mora aqui neste lugar . Por isso, o pensar filosófico é desenraizamento, desterritorialização a todo lugar costumeiro e habitual[1]. O pensar filosófico faz do filósofo um estrangeiro em relação a todo pensar habitual e costumeiro. O pensar filosófico vai além da história e da sociologia , pois busca o Ser. O pensar filosófico busca o ser mediante conceitos. Buscando o Ser, o pensar filosófico descobre a si mesmo como Abertura .

Já a poesia cria enraizamento : ela constrói um morar, um habitar a Terra. Enquanto a filosofia se vale da linguagem como um instrumento para os conceitos, a poesia habita a linguagem, fazendo da linguagem a própria terra de um povo. Homero, por exemplo, não é apenas poesia enquanto gênero épico, pois a sua poesia é a própria epopeia do povo grego para fazer do mundo a sua casa, o seu lar ( a Odisseia de Ulisses, por exemplo , é um retorno à casa, ao lar)

A filosofia nos faz estrangeiros, a poesia nos quer autóctones : autóctones da linguagem para sermos o povo da terra: Camões é o ethos português criando um lar além do oceano, para fazer do distante , próximo; Guimarães cria um sertão na linguagem, para que habitemos um sertão que não é apenas linguagem.

A poesia não se desenraíza para buscar o Ser, ela cria um lar para o Ser habitar. Esse lar não é o conceito, ele é o sentido de um poetar originário.



[1] É também o que diz Platão ao se referir ao filósofo como um “atopos”: “aquele que não está em um lugar”, isto é, aquele que não pode receber uma “etiqueta” que o defina . Indo além do que afirma Platão, podemos dizer que o filósofo não é apenas um lógico, um teórico, um pesquisador, um esteta, um epistemólogo...Esse " a mais" que ele deve ser o aproxima do artista e do poeta. 




sábado, 25 de novembro de 2023

Manoel & Espinosa: (po)ética


1- Desde menino, o filósofo Espinosa demonstrava uma capacidade impressionante para  “ler” as pessoas, possuindo   o que hoje se chama “inteligência  emocional” : um saber intuitivo acerca da natureza humana, conhecendo  o que nela há de luz e de  sombras.

Sabedor disso, o pai de Espinosa,  senhor   Miguel, que era comerciante,  sempre pedia conselhos ao seu filho acerca da índole de determinado devedor.

Embora tivesse  apenas 11 anos , com olhos penetrantes o menino Espinosa conseguia distinguir quem estava em reais dificuldades (cuja dívida era perdoada) ,  de quem fingia aperto por mera desonestidade.

Certa vez, o senhor Miguel  nutria  esse tipo de dúvida acerca de uma senhora que lhe devia  determinado valor. Ele pediu ao menino Espinosa para ir à casa de tal senhora. O menino foi.

Quando o menino Espinosa  bateu à porta da residência da devedora suspeita  , esta apenas entreabriu  a porta , mal conseguindo disfarçar certo nervosismo (  ela  já adivinhava  o motivo da visita e conhecia a fama do menino...). 

Fechando de novo a porta, falou: “Espera um instante ,  estou lendo a Bíblia, primeiro nossos deveres com Deus”.

Ela leu bem alto a Bíblia , de fora dava para ouvir. Depois, reabriu a porta já com  o dinheiro na mão.

Ao mesmo tempo em que colocava rapidamente a soma na mão do menino, ela disse: “As pessoas  de bem sempre leem a Bíblia e falam de Deus, nunca  se esqueça  disso menino. Agora vá”, e fechou abruptamente  a porta.

Após alguns segundos, ela ouviu novamente batidas à porta. Quando abriu, viu de novo o menino Espinosa, que com calma, mas firmeza, lhe falou: “Minha senhora, o valor que a senhora me deu está faltando” .

O menino Espinosa   estendeu então novamente a mão esperando  receber mais do que o dinheiro faltante , ele queria   receber, sobretudo,  outra coisa que faltava: a verdade.

 

2- Manoel de Barros se formou em Direito. No entanto, seu primeiro cliente foi também o último. Tratava-se de um comerciante   acusado de desonestidade no uso da balança : na hora de pesar a mercadoria, sorrateiramente ele apoiava o dedo para aumentar o peso de forma fraudulenta.

Uma senhora prejudicada pela desonestidade do mau comerciante    resolveu  abrir um processo contra ele. Era a palavra do comerciante   contra a da senhora que o acusava, pois não havia testemunha, embora a fama do denunciado  não fosse boa...

Na primeira vez em que esteve com o tal comerciante, Manoel pediu para conversar a sós com  ele, e indagou: “É verdade o que ela diz? Você burlou o peso?” E o dissimulado respondeu: “É verdade. Mas fique tranquilo: pagarei  bem a você.”

Manoel pediu  licença   ao farsante e foi conversar com o dono do escritório de advocacia, dizendo: "Desisto do caso, não vou me vender para defender  as mentiras  que esse desonesto inventa.  A invenção de que gosto é outra: não é invenção que nega a realidade, é invenção   que , através da poesia,  amplia o mundo ”.




 Na capa do livro de Espinosa se encontra a imagem da rosa acompanhada da palavra latina “caute”, que pode ser traduzida por “cuidado”. Essa imagem estava impressa no sinete com o qual Espinosa assinava suas cartas. Um dos sentidos dessa imagem é : tudo aquilo que é belo, raro, singular, precioso...requer cuidado para ser colhido.



Este é um dos melhores documentários sobre a vida e a poética de Manoel:



domingo, 19 de novembro de 2023

agroval

 

Na rica  fala do povo do Pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas.

O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do Pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si.

Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno Pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do Pantanal possa habitar e perseverar  , vivo.

Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo.

Migram  para debaixo das asas da arraia não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse Pantanal em rascunho  tudo o que vive devém embrião da arraia-útero.

 Sob a proteção de tal Gaia-Pachamama, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida.

Pois quando as águas do Pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros e oportunistas  lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca .

Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia antiga, “Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”.

Pneuma é o sopro que dá  vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em latim,  “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.

Apesar dos perigos em torno, nunca a arraia  se entrega ou desabraça aos que  buscam sua proteção e cuidado.

Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.

Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”?

Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?


“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.”(Manoel de Barros)


“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas.”(Manoel de Barros)


 “Toda multiplicidade é composta não por coisas prontas, mas por realidades intensivas, pré-individuais, como o embrião de uma realidade nova.” (Deleuze)


                                  Ao Dia da Consciência Negra e sua luta.


                   ( o poema “Agroval” , que aqui interpreto, faz parte do “Livro de pré-coisas”)











quinta-feira, 16 de novembro de 2023

contra o genocídio do povo palestino, em favor da paz

"Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros." 

                                                                                                (Nietzsche) 




A vespa e a orquídea : um caso de devir

 

                                                                                                  Adoro orquídeas. Já nascem arte.

                                                                                                                          Clarice Lispector

 

                                                         A arte é bem realizada quando com a natureza se parece;

                                                                                     e, por sua vez, a natureza é bem sucedida

                                                                                              quando expressa a arte em seu seio.

                                                                                                                                             Longino

 

A vespa é um inseto, isso nos ensina a ciência. A orquídea é uma planta, também a ciência a isso nos informa. "Informar" é dar uma forma, um limite. A vespa é um indivíduo membro de uma espécie. A espécie fornece a "identidade", ao passo que é graças à semelhança com a espécie que podemos reconhecer um inseto como uma vespa. Porém, apesar das aparências, o princípio de recognição, ou reconhecimento, não vai do indivíduo à espécie: ao contrário, ele vai da espécie ao indivíduo, da Identidade à semelhança. É a Identidade que vem primeiro: é a forma universal da espécie que nos permite reconhecer algo, e determiná-lo,  como isto ou aquilo. Até aqui, parece que Platão, Aristóteles e  Kant, além de Darwin,  têm razão...

O que vale para a vespa vale igualmente para a orquídea: cada orquídea que vemos é um indivíduo que pertence a uma espécie. Cada individuo é uma existência cuja essência é a espécie quem fornece. É a espécie que tem a Identidade mediante a qual os indivíduos se assemelham não apenas a ela, como também entre si .Um indivíduo vespa se assemelha à espécie vespa bem como a outro indivíduo vespa. Mas nenhum indivíduo vespa é idêntico à espécie vespa, assim como nenhum indivíduo vespa é idêntico a outro. Nenhuma vespa é "A" vespa: o artigo definido acompanha apenas a espécie ( aos indivíduos acompanha tão somente o artigo indefinido: uma vespa, uma orquídea). Somente a espécie pode ser definida, já que os indivíduos são sempre habitados por uma indefinição, ou indeterminação,  que nunca se separa totalmente deles. O que faz cada indivíduo diferir de outro é a mesma coisa que o faz não ser idêntico à espécie. Tal realidade diferenciante é a matéria ou potência. A potência é a Diferença sem identidade e semelhança.

Todavia, como mostram Deleuze e Guattari inspirando-se em Proust e na etologia, um devir  pode  acontecer entre uma  orquídea e uma vespa. Uma orquídea é diferente de outra orquídea, isso é certo. Apesar da diferença que as separa, há a semelhança que as une mediante a Identidade da espécie. Mas a diferença que há entre uma orquídea e uma vespa é completamente distinta da diferença que existe  entre os indivíduos de uma mesma espécie. Não obstante essa diferença, uma orquídea é capaz de estabelecer uma relação singularíssima com uma vespa.

Uma orquídea não tem pernas, pois a raiz a fixa ao solo. Uma orquídea não tem ouvidos ou olhos, embora ela tenha formas sutis de percepção do mundo que a rodeia. Entre as orquídeas  há uma distância que pode ser vencida nas asas de uma vespa.

 Sem sair do lugar,  sem ter olhos ou mãos, a orquídea  fabrica em suas pétalas o órgão genital de uma vespa fêmea. Diferentemente de um escultor, a orquídea esculpe sua obra em seu próprio ser, em seu próprio corpo, de tal modo que entre ela e sua arte nasce uma indistinção que suspende as leis e regras lógicas que presidem o mundo das espécies e dos indivíduos.

Ao ver o que pensa ser um outro indivíduo de sua mesma espécie, a vespa macho se une à vespa fêmea que a orquídea-artista  inventou para amar uma outra orquídea dela distante .Ao sair do seu ato de amor e ir pousar em outra  orquídea com seu corpo imantado de pólen, a vespa se torna o instrumento de amor entre as duas orquídeas que não se veem e nem se tocam, mas que se encontram e se amam por intermédio do apetite da vespa.

A orquídea inventou um devir-vespa, ao mesmo tempo em que a vespa entra em um devir-orquídea. A orquídea inventou  uma singularidade vespa. Não um indivíduo vespa, mas uma singularidade[1] vespa. Como dizem os medievais, uma hecceidade[2].

A espécie é como um molde ou fôrma, ao passo que o indivíduo é feito uma matéria que a fôrma informa, dando-lhe um limite. Mas a singularidade é uma modulação : ela é a implicação de uma forma e uma matéria na imanência das quais vive uma potência sempre em deslimite, como diria Manoel de Barros.

A orquídea inventou uma vespa feita de pétalas, assim como Van Gogh criou um girassol feito de tintas. Antes de ser a representação de uma vespa, o que a orquídea produziu foi a expressão de uma potência criativa que é imanente à vida. Enquanto a espécie é uma essência que não muda, posto que forma invariável, o devir-vespa da orquídea é uma essência enquanto "minadouro": dela minam sentidos de uma vida que se auto-inventa. O "minadouro", diz Manoel de Barros, é a fonte de onde a poesia nasce. E é dessa fonte que também nasce a vida que se afirma como processo que nenhuma forma pode reter ou conter.

A arte não é imitação da vida, ela é a vida mesma .A orquídea  inventou uma semelhança a partir de sua diferença, e fez passar uma vida que não se explica pela Identidade da espécie, mas pela potência de invenção.  Essa vida que passa "entre", que está sempre no meio e é meio de devir, nos faz compreender porque Deleuze afirma que "são os organismos que morrem, não a vida". São os organismos também que evoluem segundo um eixo paradigmático que vai do indivíduo à espécie. Porém o devir ocorre segundo um eixo horizontal sintagmático de agenciamento e conexão, uma evolução a-paralela, impensável segundo a concepção que pensa a evolução como progresso do menos perfeito ao mais perfeito. Se pensarmos a orquídea e a vespa como pontos em linhas diferentes, o devir é uma linha que passa entre esses dois pontos, na “vizinhança” de ambos, abrindo-os a um processo que os retira de suas respectivas linearidades, de tal modo que cada um se torna uma singularidade a compor um rizoma, um agenciamento.

A evolução se estabelece na relação de um indivíduo com sua espécie a partir de um meio, porém o devir acontece na relação de agenciamento entre diferenças que se tornam mútuas ( em “núpcias”), afirmando uma desterritorialização de cada uma em relação ao território determinado de suas respectivas espécies, e concomitante reterritorialização em um processo de invenção que vence as distâncias.

Em todo devir,  tanto na natureza quanto na filosofia e nas artes, o agente é o Afeto que inventa agenciamentos que potencializam a vida. Em seu devir, a orquídea produziu uma linha de fuga com as asas da vespa.

 

Referências do texto:

Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico, de Michel Tournier: páginas 106 e 107.

Diálogos, de Deleuze e Claíre Parnet: páginas 2 e 3.



[1] Há uma diferença entre as noções de “indivíduo” e “singularidade”. O indivíduo é parte de uma espécie, porém a singularidade expressa uma relação na qual ocorre um “agenciamento”, um devir. Somente nos singularizamos realmente quando fazemos parte ou entramos num devir.

[2] Hecceidade significa: qualidade que singulariza um ser, fazendo-o ser este ser.




quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Diferença entre "avaliar" e "julgar"

 

De Aristóteles a Kant, o ato de julgar é considerado o ato mais  fundamental da razão. Julgar é unir um conceito a uma realidade individual que se quer conhecer.

Não apenas um juiz julga, um médico também julga quando elabora um diagnóstico, e assim determina que os sintomas que um indivíduo apresenta são os sinais de determinada doença ( ao julgar, o médico faz com que o conceito que ele aprendeu na faculdade opere concretamente na realidade). Visto sob esse  plano ideal,  médicos e  juízes não emitem opinião ( doxa), eles julgam com a razão.

Porém, o julgamento pode se tornar mera opinião suspeita e tendenciosa quando, dentro do homem, o conceito cede lugar ao pré-conceito.Quando isso acontece, a ignorância substitui o conhecimento, o ódio toma o lugar do esclarecimento, assim turvando a atividade de julgar, que então se torna mera opinião enquanto instrumento do preconceito disfarçado de “razão”.

A história recente revela  que o obscurantismo às vezes se veste com jaleco branco de médico  ou usa toga de juiz.  Assim são  os médicos que, pondo-se a serviço da ignorância negacionista , receitam  ivermectina contra a covid; ou então os   juízes sonsos e oportunistas que “julgam” a partir de suas preferências partidárias e preconceitos de classe contra os pobres, pretos e nordestinos. Sem falar no (pré)julgamento genocida contra o povo palestino...

Por isso, pensadores como Espinosa, Nietzsche, Deleuze e Foucault preferem o termo “avaliar” em vez de “julgar”. Avaliar é construir uma  crítica , crítica inclusive da própria razão quando se arroga em discurso “neutro” e apolítico. Quanto mais a razão se crê “apolítica e neutra”, mais ela escamoteia que tem lado: o lado do poder (potestas).

“A-valiar”  é determinar o valor de determinada prática , incluindo a prática de julgar , discernindo se ela é nobre ou vil, alimento ou veneno. Quando o ato de julgar se torna refém do preconceito, somente o ato de avaliar pode   livrar  a justiça  dos juízes e jurados  parciais  cujas sentenças  são  vis, somente o ato clínico de avaliar pode   defender a medicina da ação criminosa de certos   médicos negacionistas  que receitam veneno.

Avaliar não é apenas partir de conceitos teóricos, pois em toda avaliação também devem estar presentes afetos afirmativos, sensibilidades emancipadoras e pensares criativos que , sem negarem  a razão, alcançam realidades que o mero conceito teórico não alcança.

Julgar é uma técnica, porém avaliar é uma arte. Uma arte que conecta pensamento e sensibilidade, crítica e clínica, ideia e realidade, sempre visando potencializar a nossa ação sobre o mundo, aqui e agora.

O imperdível filme “Doze homens e uma sentença”  mostra que o ato de julgar não é imune aos preconceitos. E que a resistência ao julgar suspeito somente começa quando é despertada e posta em prática a ação de avaliar  enquanto potência singular, e isso não se faz sem coragem e perseverança.

Notas:

[1] No filme, o alvo do preconceito disfarçado de julgamento é um jovem pobre latino acusado de assassinar o pai ( o filme se passa nos Estados Unidos).

[2] Há uma diferença fundamental entre poder (potestas) e potência ( potentia). Essa diferença se encontra , por exemplo, em Espinosa ( mas não apenas nele). No filme, 11 jurados exerceram o poder/potestas para julgar e condenar. Eles agiam em nome da sociedade. O poder-potestas deles implicava , portanto, que eles agiam “no lugar de”: no lugar da sociedade que lhes concedia o poder de julgar. Mas um dos personagens se apoiou na potência de pensar. Essa potência é indelegável: ela pertence a cada por direito natural. Renunciar a esse direito é renunciar a si mesmo ,  submetendo-se  à servidão voluntária.

[3] Durante o filme, percebemos  que os  preconceitos  dos jurados , revelando igualmente preconceitos de classe, estavam por trás daquilo que eles julgavam ser a “leitura objetiva” deles dos fatos. Ou seja, a maneira como eles “interpretavam” os fatos era influenciada por elementos subjetivos passionais  , tais como o ressentimento, o ódio, a ausência de empatia, o desejo de vingança... Tal como no mito de Hermes acerca da “hermenêutica” (interpretação), cada um interpretava a realidade conforme o coração que tinha.

[4] No filme, o nome do personagem principal é “David”: tal como o David de outra história que, com coragem, enfrentou e derrotou o gigante Golias, o personagem do filme  exerceu também  coragem ao enfrentar o Golias  da ignorância , cujo poder   somente se torna vitorioso  se os justos renunciarem à justiça enquanto virtude-potência ética. 


( Só consegui achar na web a versão dublada. Na imagem, as duas versões do filme, ambas excelentes)



 


- Creio ser uma boa opção de filme para este feriado, segue o link:

https://vimeo.com/812257840



- O filme também ganhou uma versão teatral:




domingo, 12 de novembro de 2023

O Fio de Ariadne e as linhas de fuga

 

“Ariadne” significa “aranha”. Como a aranha, Ariadne é produtora de um fio: o “fio de Ariadne”. Enquanto as sinistras Moiras tecem prisões   com o férreo fio do Destino, e são elas que também cortam o fio da vida para assim trazer a morte, o fio de Ariadne é meio para    quem  quiser inventar novos caminhos, novas tramas conjugando vida e arte.

O fio de Ariadne tem a cor vermelha : ele se desprende de um novelo tal como o sangue se desprende do coração que o bombeia. O fio de Ariadne não nasce de um ponto e termina em outro, como as linhas traçadas com rígida régua. O fio de Ariadne nasce de um novelo do qual é puxado pela mão de quem, com ele,  se liberta.

“Novelo” significa: “novo elo”. O  novelo é um ventre potencial para novos elos. Quem tem dentro de si um tal novelo nunca fala e age só com o ego,   mas sempre a partir de uma ancestralidade cheia de vozes unida a um berçário de falas novas que  balbuciam inaugurais idiomas.

Não que nesse novelo tudo já esteja dito: ao contrário, é esse novelo que nos faz ter o que  dizer. Esse novelo é fonte para um “afloramento de falas”, diria Manoel de Barros. Riqueza não é ter dinheiro ou propriedades, riqueza é achar dentro de nós esse novelo  para com ele  criarmos  novos elos; e assim vencermos, quem sabe, esse funesto destino no qual as Moiras de hoje propagam violência e morte.

Ariadne tinha um par: Dioniso. Ao contrário do  labirinto  do Minotauro ,  a “besta” que aprisiona , o labirinto de Dioniso era produzido  por seu deambular sempre criador de direções novas. É por isso que de seus caminhos não há mapa ou estradas prévias.  Somente o fio de Ariadne traça e acompanha a liberdade de caminhos de Dioniso-Nômade-Andarilho.

Certa vez, Teseu quis entrar no labirinto para matar o Minotauro. Teseu representa a racionalidade masculina que teme a vida e quer dominar os instintos à força, já Minotauro simboliza as pulsões  que , instrumentalizadas pela ignorância,  sobem à cabeça e se tornam fanatismo, ódio rancoroso e violência bárbara.

 A “sede de sangue”  do Minotauro não vem do herbívoro touro, essa sede de  violência vem da parte humana acéfala, essa sim a verdadeira  “besta”. A  luta de Teseu contra o Minotauro simboliza o confronto entre uma cabeça teórica sem corpo contra um corpo sem cabeça. Nessa luta,  quem  sempre  perde é a vida que está no homem: seja pela neurose , quando a cabeça que nega o corpo  vence; seja pela barbárie , quando quem vence é o acéfalo.

Ariadne simboliza o fio da Vida ; Dioniso, o avançar da arte. O agenciamento de ambos cria linhas de fuga que transmutam as energias pulsionais em impulso para a vida avançar sempre mais, tal como ensina o verso de Manoel de Barros: “O andarilho abastece de pernas as distâncias.”





A palavra latina "occursus" , que aparece  na capa do livro sugerido aqui acima , tem sua origem na "Ética" de Espinosa . “Occursus”  foi traduzida como "encontro". Espinosa dizia que existem os bons e os maus encontros. Os bons encontros nos potencializam, enquanto os maus nos entristecem e despotencializam. Mas a palavra "occursus" também significa "circuito". E esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e tiraniza. “Linha de fuga” não é um caminho que leva à liberdade, linha de fuga é a liberdade fazendo-se caminho e circuito por onde as energias vitais possam avançar.




quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Nise e o Museu de Imagens do Inconsciente

 

 

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Um dos meus museus favoritos é o Museu de Imagens do Inconsciente, projeto realizado por Nise da Silveira. Esse museu nos permite compreender também a diferença que há entre informação e comunicação ( termos que são complementares, porém distintos).

Antes de entrarmos nesse assunto, porém, é preciso fazer uma contextualização. Há três disciplinas que, embora possuam nomes semelhantes, estudam objetos diferentes. Essas disciplinas são: a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise.

A psicologia estuda o comportamento humano do ponto de vista individual e social[1] , sobretudo a partir da consciência e suas manifestações ( dentre as quais as emoções). Já a psiquiatria é uma área da medicina, e tem por objeto o cérebro. Em geral , os psiquiatras buscam explicações para os comportamentos humanos em elementos químicos ou anatômicos do cérebro. Se um paciente procura um psicólogo porque está deprimido ou ansioso, por exemplo, o psicólogo procura entender a relação do paciente com suas emoções, sua interação ou não com grupos, etc., e  prescreverá terapias que visam mudar o comportamento. Já o psiquiatra prescreverá  antidepressivos ao paciente que o procura com depressão ou ansiedade , sem investigar  em detalhes a vida emocional e social do paciente. O psicólogo considera seu paciente como sujeito, ao passo que o psiquiatra o trata como objeto. Diferente do psicólogo e do psiquiatra, o psicanalista estuda a relação do “analisando”[2] com o seu inconsciente , isto é, com um tipo de realidade que escapa à consciência e que , também, não pode ser explicado apenas pela química do cérebro.

E aqui está o ponto principal que gostaríamos de destacar: o psicanalista “acessa” os conteúdos inconscientes do seu analisando por meios de relatos verbais que este lhe faz. O psicanalista busca, no conteúdo manifesto, sentidos latentes e ocultos que escapam à consciência do analisando, sobretudo porque tais conteúdos trazem sentidos que contradizem a imagem ( idealizada ou não) que o sujeito faz de si mesmo, revelando que o sujeito desconhece a si mesmo e aos seus mais profundos desejos.  E aqui está o paradoxo: a linguagem verbal é o principal meio de acesso ao inconsciente ( porém não é o único) , mas essa mesma linguagem verbal mascara e censura esses mesmos conteúdos inconscientes. Isso exige que o psicanalista seja como uma espécie de “detetive” ( Freud amava as aventuras de Sherlock Holmes) que busca as “pistas” que o inconsciente deixa no  uso que o sujeito faz da linguagem ( os lapsos, os esquecimentos, as trocas de palavras, os silêncios, as censuras ou autocensuras, etc.).

Freud adota uma classificação das enfermidades mentais formulada pela psiquiatria positivista do século XIX, que dividia tais “enfermidades” em dois grupos : as Neuroses e as Psicoses. Explicado  de uma maneira simples, a neurose nasce de um conflito entre a consciência do sujeito e seus conteúdos inconscientes, conflito esse que se expressa  em determinados sintomas portadores de sofrimento ( melancolia, tristeza, fobias, ansiedades, manias...). Ou seja, na neurose o sujeito  mantém sua consciência e sua noção de realidade, não há perda do sentido de realidade. Para Freud, apenas a neurose pode ser tratada pelo método psicanalítico ( ancorado na linguagem verbal) . Segundo ele, somente  a psiquiatria poderia lidar com a psicose.

Há dois tipos básicos de psicose[3]: a paranoia e a esquizofrenia. Em ambas, há perda do sentido da realidade. Para  Freud, quando  há a perda do sentido de realidade, a própria realidade do eu também é perdida, como consequência[4]. No neurótico há o sentido da realidade, mesmo que esse sentido o fruste e o faça sofrer ( não só psiquicamente, mas  também fisicamente por intermédio de somatizações: uma enxaqueca, por exemplo, pode ser a somatização de uma neurose).

Por perder o sentido da realidade, o psicótico não consegue elaborar simbolicamente suas vivências por intermédio da palavra, isto é, por meio do simbólico. É essa perda do sentido da realidade que leva o psicótico a delirar. Delírio não é mesma coisa que “fantasia”. Em geral os neuróticos fantasiam bastante[5], uma vez que as fantasias funcionam como uma espécie de fuga , uma fuga temporária, da realidade frustrante. Mas o delírio é uma fantasia sem freios, na qual os produtos da imaginação delirante são tomados como se fossem realidade. De maneira geral, os delírios dos paranoicos são auditivos ( eles ouvem coisas), enquanto  que dos esquizofrênicos são visuais ( eles veem coisas). Há a possibilidade também de essas enfermidades se juntarem em uma mesma pessoa, tal como se pode ver no esquizo-paranoide[6] .

Enfim, os psicóticos são incapazes de estabelecer relações sociais, segundo Freud. Na visão  desse mesmo autor, os psicóticos são fechados neles mesmos, vivem um mundo à parte e, por essa razão, seriam incapazes de se comunicarem.

Inicialmente, Jung trabalhou com Freud. Mas divergências profundas o fizeram se afastar do pai da psicanálise para assim trilhar um caminho próprio[7].  O principal ponto de divergência era a ideia que cada um tinha acerca do inconsciente. Freud concebe o inconsciente como uma instância individual cujos conteúdos são preponderantemente de natureza sexual[8], já Jung defendia que o inconsciente é constituído por aquilo que ele designará como “arquétipos”, indo além da mera natureza sexual. Os arquétipos são construções originárias do inconsciente coletivo. “Arqué-tipos”: “tipos originários”.  

Nise da Silveira, a idealizadora do Museu de Imagens do Inconsciente, era psiquiatra de formação. Contudo, logo ela rompeu com a psiquiatria , considerando que essa ciência era mais uma forma de  poder coercitivo sobre o ser humano do que uma prática que promovia a humanização. Por outro lado, a psicanálise também não a satisfazia, uma vez que seu interesse clínico era sobre a condição psicótica ( dos internos das instituições psiquiátricas) , condição essa que a psicanálise considerava impossível de receber tratamento. Por esses e outros motivos, foi em Jung [9]que Nise encontrou um suporte teórico para empreender sua prática revolucionária na terapêutica dos psicóticos.

Ao contrário do que imaginava Freud, os psicóticos ( que o senso comum chama de “loucos”) não são ilhas incomunicáveis. Na verdade, eles perderam a capacidade de se comunicar por meio das palavras. Mas as palavras atingem apenas a ponta do iceberg da alma humana[10], elas não alcançam as camadas mais profundas , as instâncias inconscientes.

 Mas há um tipo de linguagem que consegue alcançar essas profundezas, já que essa forma de linguagem se origina  de lá. Quando sonhamos, por exemplo, mergulhamos em tal linguagem. Quando acordamos, saímos de tal mundo das imagens  oníricas e vamos viver a realidade ; porém os psicóticos são tomados por tais imagens enquanto estão acordados, de tal modo que eles sonham de olhos abertos , mas sem saberem que estão sonhando .

Nise se refere às imagens como essa linguagem originária que comunica conteúdos profundos . Mais do que as palavras, são as imagens o tipo de linguagem que mais perto chega do inconsciente coletivo. As poesias de Homero e Hesíodo, bem como toda a mitologia,  estão repletas dessas imagens-arquétipos: a imagem do sol como símbolo arquetípico do Bem, a imagem-arquetípica do navio ( ou barca) como símbolo da alma em sua viagem na existência, a imagem-arquetípica da caveira como símbolo da morte, etc. Enquanto as palavras são símbolos pertencentes a determinada língua de um povo específico, as imagens ultrapassam essas barreiras nacionais e linguísticas, tornando-se , desse modo,  a linguagem universal da humanidade.

Ao invés de manter os psicóticos presos  e o tempo todo anestesiados por psicotrópicos pesadíssimos que os faziam parecer  coisas inertes, Nise criou  um  ateliê de arte dentro da instituição psiquiátrica na qual trabalhava[11] , espaço no qual eles podiam pintar, esculpir, enfim, se expressarem  e comunicar. A prática de Nise comprovou sua teoria principal: a de que os chamados psicóticos também se comunicam, uma vez que eles falam, por imagens, a língua universal dos arquétipos. É uma comunicação rica e profunda, que dificilmente se deixa reduzir à mera informação. Nise descobriu que  mesmo nunca tendo lido Homero, Hesíodo ou mitologia, os internos pintavam e esculpiam imagens que lembravam as imagens[12] narradas por esses poetas originários, o que levou Nise a defender , conforme a teoria de Jung, que havia um inconsciente comum a Homero, a Hesíodo, aos internos, enfim, um inconsciente coletivo do qual  toda a humanidade faz parte.

Assim, ela recuperou a humanidade e dignidade dos internos, fazendo-os obter conquistas consideráveis de saúde mental , muitos parando de tomar remédios psiquiátricos.

O Museu de Imagens do Inconsciente nos ensina que um museu não apenas documenta, preserva, comunica e educa, um museu também pode ser um agente auxiliar de cura, ao mesmo tempo nos mostrando a riqueza , incomensurável em palavras,  que pode ter a comunicação humana.

 

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Nise da Silveira dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende  mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente .

Talvez  por isso  , depois de filosofar, Espinosa se dedicava a fabricar e  polir  cuidadosamente lentes, como um simples artesão empregando suas mãos.

Após abstratos raciocínios lógicos, Wittgenstein fechava  os livros para ir plantar  flores no jardim de uma escola, feito um jardineiro.

Deleuze costumava desenhar linhas de fuga entre as aulas, nisso se assemelhando a um cartógrafo.

Plotino deixava  seus solitários  estudos metafísicos para  ir alimentar com as próprias mãos pequenos órfãos, como se fosse um cozinheiro.

Depois de escrever  profundas páginas que , segundo dizem, até lhe arrancavam lágrimas ,   Heráclito construía lúdicos   brinquedos de madeira para as crianças,  reinventando-se carpinteiro.

Mas talvez ninguém tenha ido mais longe com as mãos do que Arthur Bispo do Rosário. Desfazendo a forma das roupas e uniformes com os quais o poder excludente o vestia,  Bispo do Rosário  desconstruiu  essas fôrmas , fôrmas físicas e simbólicas, até (re) descobrir o fio livre que ali estava preso.

Com sua mão sendo o instrumento para libertar criativamente sua mente,  Bispo do Rosário reinventou  um Fio de Ariadne para bordar sua  linha de fuga:  e por esse fio , Fio do Afeto,  nossa mente também se liberta , horizonta[13] e sara.

Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima.

São essas mãos solidárias que também nos protegem   da “mão invisível” do mercado (que  apenas sabe contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio); e é igualmente  de mãos dadas com essas mãos educadoras que podemos mais  do que aqueles  que, querendo nos pôr medo, só sabem usar as mãos para segurar armas.

Enfim, somente  mãos que conduzem, cuidam ,alimentam ou transformam  podem ser    a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto  para o qual sempre se desterritorializa e decola .



[1] Um ramo recente da psicologia é a psicologia social.

[2] Muitos psicanalistas não gostam da expressão “paciente”, uma vez que tal ideia conota  “passividade”, e a psicanálise objetiva tirar as pessoas da passividade.

 

[3] “Psicopata” ou “sociopata” não são o mesmo que “psicótico”. Os psicopatas estão na fronteira da psicose, mas não são psicóticos. Os psicopatas e sociopatas têm o sentido da realidade, eles sabem o que fazem, e por isso são , em geral, manipuladores , dissimulados e carentes de empatia, embora muitas vezes saibam usar as palavras de forma persuasiva e “sedutora” , obtendo adesão por parte de pessoas inseguras e carentes afetivamente. Via de regra, líderes de seitas ( religiosas ou políticas) são psicopatas.

[4] “Esquizofrenia” tem por raiz “esquizo”: “fendido” ou “rachado”. O esquizofrênico tem seu eu fendido, rachado, como uma porcelana que se quebraria  e não recuperaria mais sua unidade.

[5] Um exemplo disso é o personagem principal do filme “Beleza Americana”.

[6] No filme Clube da Luta, o personagem principal, interpretado por Brad Pitt,  era esquizo-paranoide. Ou melhor, o personagem encenado por Edward Norton era um esquizo-paranoide com seu eu rachado, e uma dessas partes rachadas delirava ser o personagem encenado pelo Brad.

[7] Jung criou a Psicologia Analítica. Na verdade, seu método vai muito além da  psicologia tradicional , uma vez que suas análises descobrem e investigam uma “psicologia profunda” ,mais coletiva do que individual. O fundamento dessa psicologia profunda é o que Jung chamou de “inconsciente coletivo.”

[8] Não se deve confundir “sexualidade” com “sexo”. A sexualidade é uma energia que se manifesta desde os primeiros anos de vida, muito antes de os órgãos genitais estarem desenvolvidos e aptos para o ato sexual. Freud designa essa energia como “libido”, sendo de natureza inconsciente.

[9] O encontro com o filósofo Espinosa também foi fundamental para Nise. Ela narra esse encontro no livro Cartas a Espinosa ( recentemente, participei como palestrante do evento de lançamento da nova edição desse livro, evento que  aconteceu no Museu de Imagens do Inconsciente).

[10] Nise se refere à palavra cotidiana e prosaica, não à palavra tal como é vivida sobretudo pelos poetas e artistas, uma vez que, neles, a palavra muitas vezes se torna um meio para se mergulhar no inconsciente.

[11] No início, ela encontrou grande resistência dos psiquiatras, que não aceitavam  esse novo método terapêutico centrado na ocupação pela arte ( também chamado de terapia ocupacional).

[12] A linguagem por palavras igualmente é capaz de construir ricas imagens. Essas imagens também se apresentam sob a forma de “figuras” : as “figuras de linguagem”, tais como a metáfora, a metonímia, a alegoria, a hipérbole, etc. A linguagem poética, por exemplo, é rica de figuras de linguagem. Conforme texto-aula que escrevi ( “Objetos metafóricos, objetos metonímicos”) , os objetos também podem ser pensados como expressando , ou “presentando”, tais figuras de linguagem, pois linguagem é mais do que “língua” ( conforme tento mostrar no texto-aula “Linguagem X Língua").

[13] A expressão “horizonta” é tomada de empréstimo do poeta Manoel de Barros, que dizia ser a poesia a linguagem dos “horizontamentos”, isto é, uma linguagem de aberturas para o mundo, uma linguagem que vai além do ego e seus interesses limitados.