quarta-feira, 13 de abril de 2011

a semente

Há muito tempo que isso aconteceu.A sala de operação, muito branca, me encerrava nela. Muito nervoso, eu esperava pelo médico. Tratava-se de uma operação de coração, e eu era o paciente.Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente. 
De repente, entra o médico. Ao vê-lo, meu medo desaparece, pois o médico que me operaria era nada mais nada menos que o poeta Fernando Pessoa! Em princípio, achei estranho ; depois me pareceu ser verdadeiro um poeta ser o cirurgião dos corações que precisam curar-se. Diante do poeta nasceu em mim a confiança de que ele era o ser certo para agir em mim. Com o jaleco branco, mas de chapéu, o cirurgião-poeta me olhava com um olhar atrás do qual viviam incontáveis almas, e todas estavam ali para me acudir.
Após abrir meu peito e retirar meu coração, o poeta-médico me disse que aquela parte de mim estava consideravelmente pesada. O poeta  segurava meu coração com as duas mãos, como se fosse um pedregulho. Ele prosseguiu dizendo  que era preciso extrair do meu coração o excesso de peso. Assenti com o poeta, demonstrando minha concordância e confiança no poder da poesia para curar um coração que sofre.
Então, o poeta-médico foi extraindo do meu coração coisas que não eram físicas, embora pesassem. Primeiro, ele retirou o cadáver de palavras que outrora foram vivas, mas que hoje evocavam fantasmas apenas; depois extraiu a dor que eu pensava já não mais sentir , mas que em mim doía ainda , feito um parasita que se alimentava de mim às escondidas; encontrou ocultas dentro do meu coração , ainda intactas, as fotos que minha mão rasgou ; por fim, jogou fora do meu coração decepções, ingratidões... e o que mais o adoecia: saudade.
Depois de extrair tudo isso que me pesava o coração, o poeta se preparava então para recolocá-lo novamente no meu peito. Quando olhei para o meu coração na mão do poeta, fiquei surpreso. Pois meu coração estava tão pequeno que eu pensava que , daquele tamanho, ele não seria forte suficiente para me fazer de novo vivo.
Porém, recolocando o coração no vazio do peito, o poeta por fim me disse: “ele está assim pequeno porque do seu velho coração retirei o inessencial e deixei apenas a semente: dela brotará , com o tempo, um ser novo”.Uma clínica fez-se.Vivi um poema por dentro, como parte dele, e ele como parte de mim: arte e vida as experimentei como sendo o mesmo.E logo quis me pôr de pé para ensinar a boa nova que aprendi.
E foi então que despertei do sonho. Ainda estava aberto sobre meu peito o livro que adormeci lendo: O Eu Profundo e os outros Eus, de Fernando Pessoa, o próprio. Olhei o relógio ao lado da cama: eram quatro horas da manhã de um dia que nascia como nunca antes outro nasceu.Fui  à janela para  ver chegar  a aurora.