quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

massa, povo e multitudo


1- Em razão do evento teológico-político do último domingo, está sendo muito lembrado o texto de Freud “Psicologia das massas e análise do eu”.

Segundo Freud, a massa anula a personalidade dos indivíduos que entram nela, ao mesmo tempo desfazendo nesses indivíduos mecanismos psicológicos que freiam a subida à mente  de impulsos associais destrutivos. Na massa esses impulsos circulam e amalgamam  cada indivíduo , os imbecilizando e desumanizando.

Cada indivíduo tem um nome, porém a massa é anônima: fazendo parte dela, cada indivíduo perde a noção de responsabilidade  por seus atos, uma vez que quem age é a massa : na massa  são  reveladas as sombrias faces ocultas   que se escondem atrás do rosto do  chamado “homem de bem...”

Sob o poder da  massa, pequenas antipatias se tornam ódios mortais , enquanto  seus líderes são tratados como  seres divinizados cujas mensagens se tornam palavras de ordem a serem repetidas e obedecidas  fanaticamente.

Segue um trecho de Freud: “As massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões(...). Nelas o irreal tem primazia sobre o real.”

 

2- Acrescentando ao que diz Freud, trago Espinosa. Não são a mesma coisa as ideias de “massa”, “povo” e o que Espinosa chama de “multitudo”.

As massas são instrumentos passivos de “líderes” que as fomentam e as mantêm arrebanhadas  canalizando a seu favor , e contra seus inimigos ( reais ou imaginários),  impulsos como o ódio ,  o medo , a violência e a obediência cega, servil.

Já “povo” é um conceito jurídico-político. O povo não tem um líder que o submete e arrebanha; ao contrário,  o povo escolhe seus líderes mediante preferências  eleitorais democráticas. É verdade que “todo poder emana do povo”, porém povo não é massa.  

A palavra “multitudo” tem por sinônimo “multiplicidade”. Multiplicidade é tudo aquilo que potencializa e torna múltipla a singularidade que dela faz parte.

A multiplicidade não tolhe, ela multiplica; ela não destrói, ela cria; ela não odeia, ela ama a si própria e por isso se  indigna contra as tiranias. Ela não se submete cegamente a  “líderes”, ela afirma a si mesma como soberana : ninguém fala por ela ou no lugar dela, mas com ela. Ela não se representa: ela se presenta, faz-se presente, insubstituível.

A multitudo não é massa anônima que dissolve os eus na irresponsabilidade insana e acéfala, a multitudo é a expressão de um “nós” ético-político enquanto agenciamento plural de singularidades não egoicas  pensantes e atuantes.

A  multitudo não habita apenas um país, ela habita sobretudo a Terra, embora seja sempre num país, numa cidade ,ou mesmo num bairro, que ela se manifesta, conectando o local ao planetário, como voz plural a expressar a humanidade em seu avançar educacional e democrático.

 

 


 





domingo, 25 de fevereiro de 2024

O antifilósofo

 

Platão elaborou  uma tipologia com nove tipos de  almas que podem ter os seres humanos . Tal  tipologia era apresentada sob a forma de uma escala:  do ser humano mais nobre ao mais vil. A nobreza, no caso, não era devido à família ou  posses. Mas que nobreza seria essa?

Valendo-se de alegorias para se expressar ( pois as alegorias servem para tentar dizer o que não é apenas palavra), Platão dizia que o ser mais nobre é aquele que possui uma forma especial e rara de asas , asas que permitem elevar, para assim nos transportar  até o lugar   onde vivem as Ideias.

 Porém, não é a razão a dona dessas asas, a razão é apenas os “olhos que veem” as Ideias. Sozinha, entregue apenas às suas teorias e raciocínios, a razão não tem força para  nos elevar.

 As asas que conduzem  às Ideias pertencem a um “Daimon”: Eros, o Amor ( em grego, “eros” também significa “asas”). Somente consegue chegar bem perto das Ideias, e ficar face a face com elas, aquele em cujas costas não há peso e sim asas , como as asas do beija-flor que o põem diante de seu néctar.

Eros   é a  força  do Afeto transmutador  cujas asas têm força para conquistar proximidade com as Ideias. A alma mais nobre, segundo Platão, é a alma do pensador. Almas nobres assim usam Cartola, como a do nosso poeta-Angenor.

Mas as asas de Eros não são como as de Ícaro, cujas asas eram artificiais e colocadas com engodo: asas que fazem subir apenas para aumentarem o tamanho da queda. As asas de  Eros também não são como as dos pássaros, pois estes já nascem com asas. As asas de Eros eram como as da borboleta:  asas que nascem  de uma  metamorfose.

O segundo ser na  escala é o  que busca a justiça; o terceiro é aquele  que cuida da saúde do corpo; o quarto é o que tem engenho e arte... E assim segue Platão descrevendo e enumerando os tipos de seres humanos.

O penúltimo em tal escala ( o oitavo, portanto) é aquele que usa as palavras não para ensinar, mas para iludir e enganar, como os que hoje fabricam “fake news” . Por isso, quem assim procede está mais perto da vileza do que da nobreza. Segundo Platão, esse penúltimo na escala é  o ardiloso sofista*. Os sofistas  prometem asas, porém asas  artificiais como as de Ícaro.

E o último ser nessa escala, o homem mais vil, é aquele que possui a alma de tirano. Platão dizia que devemos manter o tirano longe   da educação dos jovens e mais distante ainda do governo da sociedade. O tirano recebe também outro nome:  “antifilósofo”.

Todo tirano , ou antifilósofo,  é cego às ideias e cultua a ignorância  e o ódio.   O tirano não tem asas, o tirano é peso soturno que só aceita carregar os acorrentados à servidão voluntária.


                                           ( Este livro é apenas uma sugestão de leitura)

 

*A visão de Platão sobre os sofistas é redutora ( não é a visão que tenho ).

Para Nietzsche, as piores algemas não são feitas de ferro ou aço, as piores algemas são feitas de algodão: e com elas se atam os servos voluntários.



O poeta-pensador Cartola-Angenor:



 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Espinosa: atualidade histórica e virtualidade ontológica

 

Segundo Espinosa, padecemos, sofremos paixões, em razão de sermos partes da natureza. Não somos um “todo à parte”, um “império dentro de um império”, somos partes da natureza e, enquanto tal, sofremos afecções , isto é, ações de outros corpos sobre o nosso. Dessas afecções  podem nascer ideias confusas e inadequadas na mente.

Por sermos partes da natureza, também somos parte da natureza social: somos partes da sociedade, somos seres históricos ( nesse ponto, há o encontro de Espinosa com Marx...).

Os corpos sociais agem sobre o corpo individual, produzindo assim ideias  na mente que atestam os valores de um determinado  campo histórico, para o bem ou para o mal.

É por essa razão que Espinosa afirma que não dominamos de forma absoluta os afetos, podemos agir sobre eles de forma parcial. E a parte de nós que age para corrigir a parte que padece, essa parte que age é causa de ideias adequadas, não é efeito de padecimentos.

Há enunciados em Espinosa que mostram que ele também sofreu a influência de sua época histórica. Ele também padeceu e sofreu afecções das quais nasceram ideias confusas que , burlando sua melhor parte, ganharam o caminho do papel e se tornaram letra escrita. 

Mas pequenos trechos da  letra escrita , tão somente, não são  o testemunho para se compreender o espírito da obra, que é fruto da melhor parte de Espinosa, pela qual fala sua parte eterna que dialoga com todas as épocas históricas, sobretudo aquelas que hão de vir.

Em seu livro sobre Espinosa, Nise faz uma critica cuidadosa, crítica de amiga, a algumas ideias confusas da época que aparecem no texto de Espinosa ( embora Nise não faça a ponderação que realizo aqui).

Nem todos os críticos de Espinosa têm o cuidado de Nise. Parece que vivemos num período que se crê o “fim da História”, e assim se converte em juiz, às vezes carrasco, de todas as épocas históricas que nos precederam, desconhecendo  que essa crítica que se auto ignora também é histórica, e revela mais esta atual época histórica do que a época histórica na qual viveu Espinosa.

Sem dúvida, alguns (poucos) enunciados de Espinosa são o efeito do padecimento daquela época histórica, porém há a virtualidade potente das ideias de Espinosa, virtualidade ontológica essa que não pode ser reduzida àquela atualidade  histórica ( e talvez seja esse o ponto de divergência em relação a Marx...).

É essa parte virtual de Espinosa que buscamos para  dialogar com nossa atualidade histórica, para que nossa época possa encontrar , quem sabe, virtualidades e “linhas de fuga” que nos restituam horizontes e  ar.







sábado, 17 de fevereiro de 2024

O poder teológico-político , segundo Espinosa

 

Poucos livros de filosofia nos auxiliam tanto a compreender essa obscuridade que hoje domina parte do Brasil quanto o livro “Tratado teológico-político”, de Espinosa.

 No Prefácio   , Espinosa descreve o fenômeno da “superstição”. No fundo de toda superstição vigora o medo. Não o medo que pode nascer em quem enfrenta reais perigos, mas o medo ressentido que prostra.

Segundo Espinosa, é o medo  o sentimento que melhor define a condição de escravo. Esse medo alimenta a  “credulidade”.

“Credulidade” não é a mesma coisa que  “fé”. A autêntica fé não nega  o conhecimento, já a credulidade é negacionista da ciência.

A fé é movida  pelo amor, mas é o ódio o combustível da credulidade. A fé busca a justiça e age pelos pobres , a credulidade troca a cruz por armas e faz da religião um vil negócio. A fé almeja alcançar Deus, a credulidade em tudo vê o “Diabo”.

A credulidade não é a fé, embora tente  se apresentar como se fosse .  A credulidade não é religião, é projeto de poder obscurantista  :  poder teológico-político.

A credulidade é rasa, rasteira: por não conseguir alcançar a profundidade do sentido que há nos textos sagrados, ela imagina  que berrando e gritando se fará ouvir  pelo  Espírito Santo.

A credulidade é produtora de fantasia. Essa  fantasia  retroalimenta a credulidade, criando assim um mundo paralelo à parte, mas que é visto pela credulidade como  “Mundo Verdadeiro”. Não por acaso, a palavra “Verdade”  está sempre na boca delirante da credulidade.

Fantasia não é a mesma coisa que criatividade. As crianças nascem fantasiosas, porém nem todas conseguem desenvolver a criatividade.

Quando a criança, movida pelo medo, fantasia haver um monstro debaixo da cama, o monstro  é produto de sua fantasia, embora a criança ignore isso.

Mas se a criança ,  ludicamente, cria uma história onde há um monstro, ou simplesmente desenha um monstro e fabula uma narrativa , a criança aprende que o monstro é criação de sua mente, de tal modo que, se ela o criou, também o pode derrotar, criando igualmente o personagem corajoso  que enfrentará e  vencerá o monstro. Criança que assim  brinca aprende a esconjurar o medo. O medo apequena a mente, a criatividade  faz a mente  crescer.

Toda criança nasce fantasiosa, porém para haver o despertar da criatividade é preciso criar meios socioeducacionais que potencializem o imaginar pensante nas crianças.

Não por acaso, “fantasia” vem de um personagem da mitologia chamado “Phantaso”. Esse personagem gostava de ludibriar os homens soprando em seus ouvidos coisas que hoje chamamos de “fake news”.

Os tiranos estão sempre perseguindo os criativos  e colocando “monstros” debaixo da cama dos ignorantes, assim infantilizando, pelo medo,  os homens.

Homens infantilizados são incapazes de se autogovernarem, terminando  por se submeterem ,  pela credulidade,    ao poder teológico-político acumpliciado com tiranos.

“Comunista”, “vermelho”... são os “monstros” que o poder   teológico-político  hoje põe  debaixo da cama dos acorrentados à credulidade ,  para assim fomentar o medo associado  à  fantasia mórbida que delira ser um “Messias”  o perverso autoritário.







sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

"A essência do homem é o Desejo" ( Espinosa)

 

A filosofia tradicional nos habituou a imaginar que nossa essência pode ser definida de forma imutável, eterna, levando em consideração apenas sua forma, tal como na clássica definição aristotélica: “O homem é um animal racional”.

Espinosa subverte radicalmente essa visão[1]. Para ele, nossa essência é o desejo, e o desejo é que aquilo que nos esforçamos por fazer, é aquilo que de fato fazemos, aqui e agora. O desejo não concerne apenas ao corpo, ele diz respeito ao corpo e à mente.

Quando fazemos algo que favorece nossa essência, esta é afirmada : nossa existência, ou poder de agir, é aumentada. Quando, ao contrário, fazemos algo que é contrário à nossa essência, nossa existência e poder de agir são diminuídos ou refreados. Tanto num caso com noutro, é nosso desejo que está implicado. Assim, nossa essência não é definida a não ser quando  é agida, exercida, seja afirmando-a, seja negando-a ( no caso, tendo a nós mesmos como partícipes daquilo que nos refreia , diminui ou boicota, numa espécie de “servidão voluntária”).

Dessa maneira , nossa essência não é uma forma eterna[2] e imutável, ela é uma potência que pode aumentar ou diminuir em seu poder de agir. Quando ela é aumentada, experimentamos   alegria; quando diminuída, padecemos uma tristeza.



[1] Ética, Quarta Parte, da proposição 59 à 61.

[2] Para Espinosa, nossa essência é eterna , mas não pela mesma razão alegada pela tradição . Nossa essência não é eterna por ser pura forma em si, ela é eterna em razão de sua causa imanente : Deus ou a Natureza em sua Infinita Potência. Nosso desejo é a Potência de Deus não enquanto ela é Infinita, e sim enquanto é afetada pela nossa ideia singular existindo em ato. 







quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

as duas formas de amor em Espinosa

 

Quando sentimos amor em relação a um outro ser, explica Espinosa, também nos esforçamos para que o ser amado igualmente nos ame. E tanto maior será esse esforço para ser amado quanto maior for o amor que sentimos.  

Porém, esse amor pode passar ao ódio, caso o ser amado não corresponda da mesma forma ao nosso amor. Se o ser amado ama a um outro, além do ódio também pode nascer o ciúme naquele que é assim frustrado em seu amor; no caso, ciúme em relação àquele ou àquela que recebe  amor  de quem amamos. Ciúme, ressentimento, rancor...também são formas de ódio.

Acontece algo muito diferente com o amor que Espinosa designa como “Amor Intelectual por Deus”, isto é , pela Natureza. Quanto mais nos esforçamos para amar Deus, e amá-lo é conhecê-lo, mais nos esforçamos para que os outros também o amem, conhecendo-o. Enquanto o amor naquele sentido   primeiro deseja a posse exclusiva do objeto amado, no amor por Deus se deseja que o amado também seja amado por muitos, que assim se unem nesse amor, um amor inseparável do conhecimento que o acompanha.

No primeiro tipo de amor, o amante espera ser amado por aquele a quem ama; no amor por Deus, diferentemente, é Deus que também nos ama mediante o amor que temos por ele, já que somos modos ou maneiras de ser dele. Ele ama assim a todas as coisas por intermédio de quem ele ama, e é também a todas as coisas que se ama quando se ama a Deus assim.

O efeito “clínico” dessa forma de amor é que ele se reflete em todas as outras formas de se viver o amor, tanto o amor em relação a um outro ser quanto o amor em relação a si ( o amor próprio), ajudando-nos a evitar  que do nosso amor possa nascer algum tipo de ódio.

Talvez seja por isso que  Manoel de Barros, amando, escreveu: “Poeta é quem diz eu-te-amo a todas as coisas”.






 















quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

para adiar o fim do mundo...

 

Quando entrou em contato pela  primeira vez com a cultura do homem branco, o pensador indígena  Krenak dizia que a ideia mais incompreensível para ele era de que o mundo estaria  condenado a um fim, a um “Juízo Final” que salvaria os  “eleitos” de uma religião   e destruiria quem não tivesse a mesma visão de mundo, a mesma religião.   E o mais estranho:  essa visão vingativa-destruidora era a base de uma religião que se dizia do Amor.

Essa visão de que a terra, a Mãe-Terra, teria um dia fim parecia legitimar que o homem branco  já começasse a destruí-la   desde agora com uma niilista pulsão de morte, derrubando suas florestas, poluindo seus mares e rios, enfim,  ameaçando de extinção os povos da floresta.

Mas os povos das florestas têm um antídoto que os protege.  Esse antídoto não está no cacique , o “chefe político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse antídoto está naquele que é chamado de   “pessoa coletiva”.

Nos povos da floresta , a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade.

Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo.

A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”.

O poeta da tribo expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo : o mundo dos povos da floresta.

 A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo : "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.” (Manoel de Barros)

 

Segue um trecho do livro de Krenak:

 

"Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar  com o seu mundo? (...)Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram  e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas 'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo" (p. 28).

 

(Obs: fiz essa postagem tempos atrás, mas essa querela do carnaval sobre “fim do mundo” e “arrebatamento/salvação” , alardeada   pelos  idólatras do inelegível , me fez lembrar desse livro de Krenak)







A queda-d'água ergueu-se à minha frente.
De repente...
tudo ficou de pé eternamente,
a floresta, a pedra, o vento vertical do abismo.

E o senhor que anima esse ambiente
ficou comigo...
Eu sou potente e contenho a visão
da queda erguida d'água-vida tão contente e são.

Havia ali a presença toda sã
de minha irmã e coisa mais que azul.
A lua, lua, lua, lua, lua
sobre um pinheiro do sul.

 

( “Queda d’água” / letra-poema de Caetano Veloso).


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Espinosa e a força dos afetos

 

Segundo Espinosa [1], um afeto de que padecemos somente pode ser refreado ou anulado por um afeto contrário que lhe seja mais forte. Como toda ideia que faz a mente padecer tem seu paralelo em alguma afecção que também faz padecer o corpo , não se refreia ou anula algum afeto que faz a mente padecer sem refrear ou anular a afecção correspondente que faz padecer o corpo.

Espinosa quer dizer que não se vence uma tristeza apenas teorizando sobre ela; não se refreia um ódio somente por meio intelectuais. Isso porque toda paixão triste, como tristeza e ódio, não despotencializa apenas a mente: também despotencializa o corpo. O corpo sofre uma paixão triste quando aquilo que ele faz se explica mais por uma causa externa do que por ele mesmo, tornando-o de alguma forma servo. E a força de uma paixão triste pode ser maior e suplantar a força ou potência que o corpo exerce para se manter na existência. Quando isso acontece, o corpo se mortifica .

Mas não somos apenas o efeito passivo das paixões tristes : também somos causa parcial delas. Ou seja, de certo modo participamos , ainda que parcialmente, daquilo que nos despotencializa. A compreensão desse processo é o grande efeito clínico da ética de Espinosa: não há como libertar/potencializar  a mente  sem libertar/potencializar  igualmente o corpo. 

Contudo, mesmo sabendo teoricamente disso, nada poderemos  se não produzirmos em nós um afeto que seja contrário àquele que nos despotencializa. Não se vence o ódio com o ódio, não se derrota a tristeza com tristeza, não se suplanta a injustiça com injustiça.

É o amor que pode vencer o ódio, é a alegria que pode derrotar  a tristeza, é a justiça que pode suplantar a injustiça. Esses afetos ativos têm paralelo com as afecções do corpo, para assim desapaixoná-lo do ódio, da tristeza e da injustiça, e reapaixoná-lo com paixões alegres que aumentem seu poder de agir, isto é, de existir.  









 



[1] Ética, proposição 7 da Quarta Parte.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

achatamentos e horizontamentos

 

Quando olhamos para o céu e seu amplo espaço, vemos as estrelas como se estivessem num mesmo plano, como se existissem  todas perto. Mas sabemos que as estrelas distam umas das outras,  distâncias imensas há entre elas. Esse ver os distantes no espaço como se estivessem num mesmo plano é obra da imaginação, ensina Espinosa. [1]

Acontece o mesmo em relação às coisas que estão no tempo: tudo o que, no tempo, se encontra em um passado muito afastado, a imaginação não consegue processar. Então, ela também coloca tudo num mesmo plano, um plano de achatamento.

Esse colocar num mesmo plano coisas distantes, tanto no espaço quanto no tempo, nada tem a ver com aquilo que Manoel de Barros chama de “horizontar-se”, uma vez que horizontar-se é o inverso de um achatamento. O achatamento espaço-temporal das coisas  não cria proximidade com elas, mas afastamento da descoberta-invenção do sentido que elas são.

Enquanto o plano criado pela imaginação produz achatamentos, o plano engendrado pelo pensar  instaura a máxima abertura, uma abertura de horizontamentos. Um plano assim é um “plano de imanência", ensina Deleuze inspirando-se em Espinosa.

O horizontamento não diminui as distâncias entre as coisas, achatando-as. O horizontamento cria linhas de fuga para que possamos alcançar as diferentes coisas que distam no tempo e no espaço,  ampliando assim o que  conhecemos. O horizontamento descobre infinitos céus em diferentes espaços, o horizontamento percorre diferentes durações que ampliam o tempo.

Pois achatar o tempo e o espaço é,  na verdade ,  o efeito de um achatamento de nós mesmos primeiro . Esse achatamento existencial nada tem a ver com o viver o aqui e agora, uma vez que viver intensamente o aqui agora é conectá-lo , ampliando-o, com a virtualidade aberta de outros espaços e de diferentes tempos. E essa conectividade não se faz sem que nos horizontemos primeiro.  



[1] Ética, proposição 1  da Quarta Parte.



                                      ( "Noite estrelada sobre o Ródano" /  Van Gogh)

      




sábado, 10 de fevereiro de 2024

Dioniso

 

O carnaval nasceu como festa dedicada   a Dioniso, o “Deus das artes”. Porém, a expressão “Deus” não é adequada para traduzir o sentido que os gregos atribuíam a Dioniso.  Pois sempre imaginamos “Deus” como um ser que criou, do nada, sua obra:  a natureza.

Imaginamos Deus, o criador, como diferente e separado de sua obra. Mas não era assim que os gregos, povo pensador-poeta, concebiam suas divindades.

Não havia as artes antes de Dioniso : as artes surgiram  com Dioniso , havendo assim uma inseparabilidade entre o criador e sua obra, entre  arte e  existência.  

Dioniso não representa apenas uma forma de arte, ele expressa a potência múltipla e heterogênea  das artes, sobretudo a mais importante delas :  a arte de reinventar a vida.

Dioniso era o símbolo do “triunfo da vida”. Não o triunfo de uma vida sobre outra vida, como na competição desumana dessa selva capitalista, mas triunfo da vida resistindo àqueles que a querem   morta, nos vários sentidos que a palavra “morte” tem.

Pois ,quando  criança , Dioniso  foi despedaçado por divindades sombrias propagadoras  do ódio e da barbárie , divindades antiartísticas.

Sabia-se que Dioniso tinha uma metade humana e outra metade divina, uma metade mortal e outra que nunca morria. Mas qual era a parte divina dele? Ninguém sabia...Exceto Zeus.

Então, quando Zeus viu Dioniso-criança despedaçado, buscou entre as partes a que era divina, pois somente essa parte  pode resistir aos carrascos da vida.

Era o coração, sede da coragem e do afeto,  a parte onde é mais potente a  vida. Zeus pegou o coração de Dioniso-criança e dele fez nascer novamente Dioniso. Isso explica seu nome: “Di-oniso”, “duas vezes nascido”.

Quando nasceu a primeira vez, Dioniso veio ao mundo chorando, como  todo recém-nascido ; ao renascer , porém, Dioniso  saiu  do coração sorrindo , em festa, na alegria do   triunfo da  vida :  como   arte de  tornar a vida de novo nascente, nesta vida e não noutra.

Tal triunfo vinha acompanhado de uma potente alegria semelhante a uma embriaguez .  Não a embriaguez por excesso  etílico,    mas   embriaguez  pelo excesso de vida transbordante . 

Manoel de Barros, ébrio de poesia , chama  de “deslimite” a tal excesso que não deixa  morrer a vida: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, diz o poeta de vida embriagado.

Em grego, “embriaguez” se escreve assim:  “bacchus”. Quando os romanos deram o nome  “Baco” a Dioniso, enfatizaram apenas um dos aspectos de Dioniso, não a sua simbologia como um todo: reduziram a embriaguez ( “bacchus”) ao estado provocado pelo vinho , ignorando que a embriaguez dionisíaca tinha originalmente muitos outros  sentidos.

Pois  mesmo antes de descobrir o vinho,  Dioniso já se embriagava com a pura  água que ele  bebia nas fontes de Gaia, a Mãe-Terra.

É esse sentido originário de “bacchus” que nos ensina  o poeta Baudelaire : “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”

 

( Este livro é apenas uma sugestão)










quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Espinosa: fortaleza, firmeza e generosidade

 

Em uma belíssima passagem de sua Ética[1], Espinosa nos fala acerca das ações da mente. A mente não apenas padece, sofre paixões, ela também é capaz de  agir, tornando-se ativa. A mente ativa cultiva um afeto : a fortaleza.

Da fortaleza se originam dois outros afetos  da mente de grande importância para Espinosa : a firmeza e a generosidade. Esses afetos ativos , como todo afeto ativo, vêm acompanhados de amor e  alegria, nunca de ódio ou tristeza.

A firmeza diz respeito à relação de nossa mente conosco, enquanto a generosidade se endereça ao outro. Firmeza e generosidade, portanto, são afetos complementares: a prática de um implica na prática do outro, ambos expressões da fortaleza.

A firmeza é o oposto da volubilidade e da  inconstância, as quais Espinosa define com uma imagem: a dos “ventos contrários”. Quando ventos contrários sopram no meio do oceano, o barco é agitado de lá para cá  , ficando sem rumo, perdido... Dentro da alma inconstante  sopram os ventos contrários das paixões tristes.

A firmeza  é a mão guiando o leme na direção que se deseja ir, e não na direção que sopra o vento. Não por acaso, na língua banto “fortaleza” é “quilombo”, espaço no qual Zumbi punha o leme com firmeza na direção da luta pela  liberdade, apesar da contrariedade dos donos da Casagrande e seus capitães do mato.

A generosidade é uma espécie de modéstia. Não se deve confundir modéstia  com humildade. A humildade é uma forma de tristeza nascida da baixa estima de si frente aos outros, ao passo que a modéstia , apoiada  na firmeza em relação a si, é uma forma de aptidão à amizade, isto é, de apreço pelo outro. Apreciar o outro não significa diminuir a si:  é essa lição ética  que aprende e pratica, com amor e alegria, o generoso-modesto.

Quem é generoso o é por uma ação de sua mente, e não pela expectativa de receber alguma ação de reconhecimento por parte daquele em relação ao qual se é generoso.  Pois esperar  receber uma ação é padecimento. E generosidade não é padecimento, é ação. Quem padece não é livre; somente quem age o é. Assim, a generosidade é um dos frutos da mente que se faz livre, fazendo livre igualmente o corpo.

O vaidoso e  o invejoso, ao contrário, são autoindulgentes na  apreciação de   si mesmos   e rígidos  na apreciação dos outros. Por essa razão, são inaptos à amizade. Além disso, ser firme consigo não significa ser rígido, e ser generoso com os outros nada tem a ver com ser indulgente acriticamente .

Na esfera política, essa amizade ética de que fala Espinosa  recebe o nome de “companheirismo”. Essa palavra vem de  “com-pane”. Em latim, “pane” é “pão”. Companheiros: aqueles que aprendem a dividir o pão, com firmeza e generosidade.

 Não apenas o pão literal  que alimenta o corpo; pois também são pães, pães que alimentam a alma,  a justiça, o conhecimento e a dignidade.



[1] Ética ,  Terceira Parte, proposição 59 , escólio.

 




Sobre os "ventos contrários", partilho aqui uma belíssima aula do professor e filósofo Cláudio Ulpiano , de quem tive a alegria de ter sido aluno-amigo ( partilharei do Acervo Claudio Ulpiano , para quem quiser ver mais aulas do inesquecível mestre):

https://acervoclaudioulpiano.wordpress.com/2017/09/03/pensamento-e-liberdade-em-espinosa/

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Os achadouros do poeta Manoel de Barros

 

No poema “Achadouros” ,  Manoel de Barros nos fala de uma  sábia  contadora de histórias que ele conheceu quando criança. A sábia  ensinava  haver  “achadouros”  em Corumbá.

No sentido literal,  os “achadouros” eram buracos  que os holandeses cavaram antes de fugirem do Brasil séculos atrás.

Com o  ouro surrupiado do rico subsolo de  nossa ancestral Pindorama,  os holandeses fabricaram  moedas nas quais estamparam a coroa holandesa. Depois eles  esconderam essas moedas de ouro nos tais  buracos abertos no fundo de  quintais, para que não ficassem com elas os  colonizadores da coroa portuguesa, seus rivais.

Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam o ouro rapinado pelos colonizadores.

Mas o poeta compreendeu que a sábia falava também de outros “achadouros”, enquanto espaços a descobrir que guardavam diferentes tesouros.

Seguindo a lição da sábia, o poeta aprendeu a descobrir    “achadouros”  onde estão guardadas riquezas    que não vêm da usurpação  do homem sobre o outro, riquezas  que são , para a vida digna, verdadeiramente  preciosas  : escavando a palavra, o poeta  acha nela sentidos novos não colonizados ; escavando  em si mesmo , o poeta  acha horizontamentos libertários que partilha com os outros.  

Com sua arte que faz pensar, sentir e desperta,  o poeta   “desabre” nossos habituais olhos que o leem  para que em nós achemos, quem sabe,    olhares novos .

E toda essa riqueza   que o poeta acha , e generosamente  partilha conosco,   vem da potência transbordante de vida  que, empoemando-o,  guardou-se  dentro do poeta  como tesouro  , cujo valor não se mede em moeda, capital ou ouro.

 

 

“O que desabre o ser é ver e ver-se.”(Manoel de Barros)

“O homem, em última análise, somente acha nas coisas aquilo que ele mesmo nelas pôs. O ato de achar se intitula ciência; o ato de pôr se chama arte.” (Nietzsche)

“A poesia está na guardada nas palavras, é tudo o que sei.”(Manoel de Barros)

“Filosofar não é redizer o já dito, mas produzir olhos novos.”(Merleau-Ponty)





O tesouro-esmeralda sonoro de Jorge Ben:






quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Espinosa e o remédio

 

Na Terceira Parte de sua  Ética, para ajudá-lo  na explicação sobre  os “afetos”, Espinosa cita  um poeta. Embora ele não o nomeie , o poeta em questão é Ovídio, que diz :  

“Nós, amantes, vivemos da esperança e do medo;

É de ferro quem ama o que o outro abandona.”

Não é raro Espinosa se agenciar com poetas para , em diálogo com eles, filosofar e explicar suas ideias.

Quem lê Espinosa mais do que com  a mente,  lendo-o também com a sensibilidade,  percebe que ele não apenas cita poetas, ele próprio é um : um poeta do pensamento. 

A maneira como Espinosa descreve os afetos, expressando suas cores e sombras de tão perto, só mesmo em grandes escritores e poetas  se pode encontrar algo igual.

Lendo a Ética, sobretudo a Terceira Parte, vemos um rico e multifacetado material afetivo  , o mesmo com o qual são feitas a literatura , a poesia e  as artes que afetam e fazem pensar.  

No texto filosófico de Espinosa se  podem ver, em rascunho, tragédias e comédias, dramas e odisseias, líricas e epopeias do corpo e da mente. Tudo cuidadosa e esmeradamente argumentado  sob a forma de um  discurso  geométrico singularíssimo, que dá forma racional ao pensamento mas sem reprimir ou castrar  o conteúdo dionisíaco-pulsional, esteio da vida.  

Os personagens que vestem as roupas e vivem os cenários  criados por Espinosa-escritor-poeta  não são os da ficção, os personagens somos nós mesmos em nosso mais íntimo cotidiano, em nossas relações com o outro e conosco. Por isso, o texto de Espinosa também é clínico, sem deixar de ser social e político.

Espinosa não descreve os afetos (pré)julgando-os; ao contrário,  ele nos conduz, como que pela mão,  à compreensão de sua necessidade e razão de ser. Ele não demoniza e nem santifica os afetos, ele lança luz sobre eles, luz potente que esconjura  a ignorância e a superstição , das quais se aproveitam  os tiranos propagadores do medo, do ódio e da servidão.

 Na Quinta  Parte de sua Ética, Espinosa também oferece o remédio para os afetos que nos despotencializam e entristecem, mas sem propagandear esse remédio como uma panaceia milagrosa.

Na verdade, esse remédio não é como uma vacina que, tomada uma única vez, nos imuniza para todo sempre; o remédio se assemelha mais a uma pílula que devemos tomar, perseverantemente, todo dia pela  manhã.





( Este livro  é apenas uma sugestão. A referência do texto que escrevi é o corolário da proposição 31 da Terceira Parte da Ética)