quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

auroras e alvoradas...

 

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz: "Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel ... Até nave espacial vira sucata." E completa: “O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata.”

Não só automóveis e celulares viram sucata : doze meses atrás , 2021 foi chamado de ano novo , e 2020 virou sucata. Hoje, é 2022 que recebe a etiqueta de ano novo, enquanto 2021 está virando sucata.

Se olharmos para o tempo com os olhos do poeta, veremos que não se encontrava  então em 2021 o tempo novo tão desejado, assim como não está em 2022 o tempo que não vira sucata.

Mas onde encontrar esse tempo-embrião, esse tempo de minadouros?

Segundo o poeta, não é no produto criado que se encontra o novo, e sim no ato de criação. O rio só  mantém seu fluxo vivo e avança se estiver umbilicado à nascente da qual continua a fontanejar, sendo criado.

O novo nunca pode ser representado por abstrações , pois ele vive nas singularidades concretas.

“2022” é uma abstração , uma convenção do calendário hoje vigente. Ao longo da história, porém, povos diferentes tiveram outras formas de contar o tempo segundo outros calendários.

Os povos originários , por exemplo,  vivem muito mais próximos do tempo que não vira sucata, pois os indígenas  não vivem  o tempo sob números abstratos, e sim a partir dos  acontecimentos singulares da própria natureza, segundo os ritmos do sol e da lua.

Os números são abstrações porque conseguem representar somente as quantidades, nunca as qualidades , os ritmos e as intensidades. Somente um tempo concreto, singular, qualitativo e intenso tem força para resistir a virar   sucata, pois  um tempo assim tem a potência da vida e de seus ritmos.

 Mas onde encontrar esse tempo singular? Onde fica sua nascente, seu nascedouro, sua natência?

O poeta assim responde: os dias, os anos, os séculos, os milênios...tudo isso vira sucata. Mas o que nuca vira sucata é a aurora. A aurora é a nascente  da qual brota o autêntico  tempo novo.

E nós mesmos nunca viraremos sucata, não importa a idade que tenhamos, enquanto nos horizontarmos afetados por uma aurora . Para que,  juntando forças,  possamos    “fazer amanheceres”, como ensina o poeta, apesar  dessa noite longa...

Não somente  em 2022, mas  sobretudo no hoje , no aqui e agora, desejo  a todas e todos necessárias auroras!

Uma  aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é dia novo, e não apenas o 1º de janeiro!

 

 

“Erguer-se...

Como se ergue a aurora do seio da noite.” (Homero)

 

“Durante as viagens sem rumo dos andarilhos,

eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.” (Manoel de Barros)




Com sua simplicidade plena  de nobre elegância, deixo aqui a aurora-alvorada cantada pelo poeta Cartola ( na flauta, Carlos Poyares) :




domingo, 26 de dezembro de 2021

a floração dos seres

 

No filme “Sonhos”, de Kurosawa, há uma cena em que uma criança chora porque um jardim de pessegueiros foi derrubado.

Então, perguntam a ela se o choro dela era devido a não poder mais  comer os pêssegos, ou seja, se o choro  era motivado pelo interesse nos frutos, nos pêssegos.

A  criança responde mais ou menos assim: “Eu não estou chorando pelos pêssegos , pois  pêssegos podem ser comprados  em quantidades no mercado . Eu choro porque nunca mais vou poder ver a floração dos pessegueiros: a floração é única e  não se mede em dinheiro, nem se vende no mercado...”. 

De repente, ainda chorando, a criança vê algo colorido num  canto daquele  jardim desolado. Ela   chega perto para ver o que é: do tronco de um pessegueiro  cortado e violentado, a vida ali resistiu e perseverava , pois pequenos embriões de floração novamente brotaram.

Então, como se tivesse ganho o mais desejado dos presentes,  a criança enxuga as lágrimas e  sorri.

O pêssego é colhido com as mãos, ao passo que a floração é para ser colhida com os olhos, para que o próprio ver nos olhos floresça, e enxergue mais do que o mero dado.

O pêssego é o produto de uma criação, já a floração é a arte que torna indistintos o artista e sua obra ainda em processo e  brotando dele mesmo, em generosa doação.

O pêssego mata a fome do estômago, mas  a floração mata outro tipo de fome:  fome de arte, de poesia e de criação.

As ideias são como os pêssegos, porém pensar é floração da mente unida ao corpo.

A liberdade não é um fruto pronto que podemos colher, a liberdade  é floração concreta no aqui e agora, como ato libertário  fazendo-se.

Há os que cobiçam  os pêssegos apenas para pôr neles um preço e vendê-los no  mercado, reduzindo    os pêssegos a meros meios  para se acumular capital, poder e dinheiro.

Mas há os que veem riqueza na floração dos seres, uma riqueza que não se mede em dinheiro, pois é uma riqueza que se cultiva com a arte, a filosofia, a cultura e a educação.

Porém , é preciso cuidar dessa floração e agir para que ela sempre aconteça , pois odeiam essa floração, e sempre a ameaçam, os ceifadores e destruidores de jardins.

 

"Poesia é florescer pelos olhos." (Manoel de Barros)

 

( imagem: “Pessegueiros em flor”/ Van Gogh)





sábado, 25 de dezembro de 2021

os filhos da esperança

 

O filme “Filhos da Esperança” (Children of Men ) se passa em 2027. Nesse futuro próximo um estranho acontecimento assola a humanidade : todas as mulheres do mundo se tornaram estéreis, não nascia uma criança há quase 20 anos !

Por não ter mais futuro, a humanidade não tinha mais projetos, planos, cultivos. Escolas e universidades estavam fechadas. Também estavam fechadas as cadeias: para que prender alguém visando sua recuperação futura se a própria sociedade estava sentenciada à morte? O  poder não prendia: “abatia” ( como fazem os fascistas de hoje...).

Obras de arte que hoje valem milhões eram encontradas jogadas na rua. Simbolicamente, a esterilidade em questão é a perda do sentido do futuro. A cultura, o conhecimento, a política... tudo se tornou estéril. A única instituição que ficou mais forte era o exército, virando uma facção miliciana contra a sociedade.

Os conservadores acham que é o passado a dimensão mais importante . Porém, mais do que conservação do passado, a vida é abertura ao futuro. Se este corre riscos, toda obra humana parece perder sentido.

Contudo, no meio do filme acontece algo extraordinário e imprevisto: uma refugiada jovem, preta e pobre, muito pobre, aparece grávida. A vida ensinava nova lição aos homens, reaparecendo não no ventre de uma mulher da elite, tampouco no altar de um templo, mas no ventre de uma marginalizada.

Porém, a jovem corria riscos:  os “Herodes” de então , como os negacionistas da vacina  hoje,  queriam a criança morta. Um personagem decide agir e proteger a jovem grávida. Ambos fogem e se escondem num casebre abandonado no qual nasce a criança , sendo envolta em farrapos improvisados como manta.

Logo precisam fugir novamente e se escondem num prédio em ruínas onde muitos outros refugiados também se escondiam. Diante do prédio, militares-milicianos atiravam sem parar contra os que estavam lá dentro . O barulho era ensurdecedor...

De repente, como se fosse um indignado protesto contra toda aquela loucura, um chorinho começa a ser ouvido. Era o chorinho do bebê recém-nascido. Pouco a pouco, os refugiados, pondo a própria vida em risco, saem de seus esconderijos e esticam a cabeça para verem de onde vinha aquele hino da vida inocente que há muito não ouviam.

Um soldado ouve o choro e cala a arma. Faz sinal para que um outro também pare. A criança era a vida a afirmar-se resistindo à morte. Era somente a simples vida, paradoxalmente tão frágil e tão forte. Com a criança no colo, a mãe passa por entre os soldados e os vence sem precisar de armas.

Passa diante deles não um rei , príncipe ou figura do Poder, passa uma expressão singular da Potência. Enquanto o Poder é dominação  e se vale de armas para se fazer obedecer,  a Potência é o querer viver que persevera se reinventando Novidade,  futuro que renasce, para que em nós , quem sabe, o mesmo perseverar também se refaça.


(imagem: “Cristo sem-teto”, de Timothy Schmalz)




- Cartaz do filme:





- trecho do filme:



quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

o presente

 

 

Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do natal, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que  papai noel deixou sobre minha cama: uma bola. Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria mesmo  era ver o papai noel!

Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!”. Eles me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?”. Mas eu só via as estrelas...

Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais : “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre teve barba branca ou  um dia já foi criança?”.

Porém  meus pais acabavam indo embora para cuidarem da ceia, deixando sem resposta meus interrogares  poético-metafísicos. Após um bom tempo olhando o infinito , eu  me lembrava do presente  e voltava correndo para brincar  até tarde. Eu terminava  indo dormir abraçado à bola...

No ano seguinte mudamos para  nova residência. Na noite do nosso primeiro natal no apartamento novo, fiquei de soslaio espreitando a janela.  “Ainda não é meia-noite, papai noel  ainda não veio”, dizia meu pai.

Houve um momento em que vi meu pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que  notei aquela comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo. Meu pai saiu de fininho, enquanto minha mãe tentava me distrair  e aos meus irmãos  com o panetone.

Mas eu só fingia olhar para o panetone, eu queria é surpreender o papai noel entrando sorrateiro pela janela. Se meus queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas.

Eu nem fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as respostas às questões poético-filosóficas.

Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei estranho...Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito sombra: meu pai carregava pacotes de presentes ...

Foi instantânea a minha compreensão do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco desiludido .Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros, porém começava a ler o mundo .

Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e nada disse . Senti ali uma solidão diferente : um estar só sem ficar triste.

Enquanto meus irmãos corriam para o quarto, fui à janela para receber outro tipo de presente: olhei para o imenso céu e me horizontei, com uma intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa. 

Hoje sei que o interrogar não vinha de mim, vinha do próprio infinito oferecendo-se como presente , para nunca deixar morrer aquela criança questionadora dentro da gente.


           ( "Noite estrelada sobre o Ródano", de Van Gogh. O verso é de um soneto de John Keats)







segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

o despertar

 

Os filósofos Deleuze e Guattari  diferenciam “múltiplo” de “multiplicidade”. Ambas as ideias podem ser expressas numa fórmula. A fórmula do múltiplo é “n + 1”, já a fórmula da multiplicidade é “n -1”. 

Nessas fórmulas,  a letra “n” significa uma quantidade que não pode ser determinada por um número fixo ou exato, já o número “1” simboliza a ideia de “unidade”. Assim, muitas coisas aparentemente são múltiplas , porém pode ocorrer de uma instância se colocar  acima delas como detentora do  poder sobre elas, isto é, como o “1” querendo-se  superior .

Os rebanhos de toda espécie , por exemplo, têm múltiplos elementos, porém um “pastor” ( no sentido literal ou figurado)  os governa impondo-lhes "Uma" verdade. E assim nascem os dogmas, as “cartilhas”, bem como as perseguições paranoicas aos “hereges”.

Já a  multiplicidade é “n-1”: ela é diversidade aberta que impede que se descole dela, querendo pôr-se acima,  algum elemento dela com a pretensão de ser o 1.  O sinal de  menos expressa que a multiplicidade nunca se subtrai a si própria.

 Na fórmula “n+ 1”, o “1”  é o poder e “n” é  o múltiplo governado por esse  poder, ao passo que  “n -1”  expressa a multiplicidade  como potência autogovernada e em expansão, afirmando-se.

A democracia representativa pode , às vezes, ficar sob o risco  de certo    “n+1” fascista , no qual o “1” é o discurso autoritário de tiranos   que negam a democracia e sua pluralidade , tal  como se vê na palavra de ordem autoritária: “Pátria , Deus e  Propriedade acima de todos”.

 Mas a democracia enquanto potência da própria vida  é sempre “n -1”. Espinosa chamava essa democracia de “multitudo”, Deleuze e Guattari a nomeiam “rizoma” : a “utopia imanente”.

 

(imagem: na ruas do Chile, enquanto  parte da multitudo , a bailarina salta para afirmar a arte contra a barbárie do   "1" que reprime o "n" da multiplicidade enquanto diferença agenciada. A própria bailarina  deu um nome ao seu salto: "O despertar" . Que esse despertar nos inspire a acordar , enfim, do pesadelo que nos sufoca desde o golpe de 2016...)




- da trilha sonora do filme "Mariguella":




sábado, 18 de dezembro de 2021

crer e criar

 

"Criar” e “inventar” são atos diferentes. A diferença entre ambos fica mais clara nas realidades que tais atos produzem.

“Inventar” aplica-se a coisas: celular , automóvel, relógio... foram inventados. Já o “criar” é um ato que gera tudo aquilo cujo sentido se explica como arte, na acepção ampla da palavra .

“Criar” e “crer” nasceram de uma  mesma  palavra mais antiga :  “creare”. A palavra  “creare” significava tanto crer como criar. É por isso que somente cria quem crê, e quem crê sempre cria, mesmo diante das maiores impossibilidades.

Não só um poema é criado , uma filosofia também o é, na medida em que filosofia e poesia criam ideias: ideias para pensar e para sentir . Criar uma filosofia é crer no pensar libertário, criar um poema é crer no sentir  revolucionário.

 Só cria novas possibilidades para a vida que crê na liberdade; quem não crê , ata-se voluntariamente à passividade.

Também é comum dizermos :  “criei um filho”, e não “inventei um filho”; ou “criei um laço de amizade”, e não “inventei um laço de amizade”; ou “criei um jardim” ,e não “inventei um jardim”. Pois tais realidades que criamos também são formas de arte nas quais acreditamos , nada tendo a ver com coisa mecânica.

Já um revólver, enquanto objeto técnico, é fruto de invenção e, por isso, pode estar a serviço de um bandido ou de um fascista. A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem vida, podem virar instrumento de morte a serviço de uma mentalidade mórbida .

 Porém a criatividade produz ideias e afetos ,  que  são a vida e a saúde do pensamento. Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico, são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências. E são sempre deles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.

 

"É possível que crer neste mundo, nesta vida, tenha-se convertido na nossa tarefa mais difícil, a tarefa de um modo de existência por descobrir sobre o nosso plano de imanência hoje." (Deleuze & Guattari, "O que é a filosofia?")

 

(imagem: “Espaço entre palavras” / Rob Gonsalves)





"O núcleo da vida, o núcleo da criação"/ Frida Kahlo :

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

bergson e a duração

 

Quando um acontecido passa e se torna passado, e entre ele e nós vai aumentando  uma distância que só o tempo pode medir ( pois não é uma distância no espaço), esse passado que passou , sua passagem e o seu ficar para trás, é algo irreversível?

 O que passou se vai e nunca pode ser de novo vivido a não ser como um fantasma que se evoca ? 

Ou será que é o passado que retém e salva o que no presente passa? Afinal, dizia Bergson, não é o passado que passa, quem passa é o presente. 

Não é o acontecido que se afastou, fomos nós que nos afastamos dele? Somos como peixes que saíram da nascente do rio onde nascemos e fomos ao mar? 

É possível, tal como fazem os peixes, desterritorializar-se  do mar, entrar de novo na foz do rio, subi-lo contra a correnteza e alcançar de novo a fonte onde nascemos?

 Se isso for possível, esse retorno ao passado não é nostalgia, ele é o intuir a própria vida que nunca se afasta de si mesma. Ir para o passado , para essa "origem que renova" ( diria Manoel de Barros), não é um voltar, mas um ir para dentro, cada vez mais próximo de onde o tempo brota.












quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

a ética de Epicuro enquanto cuidado consigo mesmo

 

Segundo Epicuro, não há injustiça sem a quebra de um contrato. Porém, Epicuro nos ensina que há um contrato primeiro ou originário, do qual todos os outros contratos ( jurídicos, morais...) dependem.

Esse  contrato originário é um “contrato natural” , um contrato que envolve a natureza de como existimos no mundo e nos relacionamos com o cosmos, com os outros e, sobretudo, com nós mesmos.

O contrato original de que fala Epicuro não é , contudo, o famoso “contrato social” evocado pelos contratualistas do século XVIII. O contrato de Epicuro é mais original ainda. Ele não é um contrato social ou jurídico, ele é um contrato filosófico ou existencial: um contrato consigo mesmo.

Sem essa relação fundamental consigo mesmo, não nos fortalecemos para resistirmos às injustiças e arbitrariedades que ameaçam a nós mesmos e a convivência social. A função desse contrato é nos edificar, isto é, pôr de pé.

Esse contrato consigo mesmo, portanto ,  não é para dar mero poder ao ego, tampouco é algo apenas individualista. Esse contrato se expressa por uma prática: o cuidado. “Cuida de ti mesmo”, é o primeiro princípio existencial desse contrato. Ele não está escrito como lei, ele precisa ser feito enquanto motor da nossa ação e prática.

Somente aquele que sabe estabelecer esse contrato consigo mesmo está apto a ser um agente autônomo requerido pelo contrato social com os outros.

O contrato consigo mesmo é a união do pensar, do agir e do sentir:  ele é, ao mesmo tempo, filosófico, ético e estético.

Enquanto mantivermos esse contrato com a gente mesmo ( nunca o rompendo pelo  desamor a si) , nos edificarão a dignidade e a coragem , para assim enfrentarmos , de pé,   as injustiças e indignidades .










quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

a democracia originária

 

 

Rousseau é um dos maiores  pensadores da democracia. Uma de suas principais lições, mais atual do que nunca, diz mais ou menos o seguinte: o que garante o espírito democrático de uma sociedade, e distingue os cidadãos livres dos tiranos, é o princípio da maioria.

Mas há dois sentidos para maioria : um sentido derivado ( ou segundo)  e um sentido originário e primeiro  (do qual o sentido derivado depende).

No sentido derivado ou segundo , a maioria é uma noção quantitativa expressa pelo “maior número”.

Numa eleição, os vencedores são os que obtêm maior número de votos, enquanto a minoria é definida pela quantidade menor de votos obtidos. Se os derrotados forem  não democráticos, podem querer se vingar ressentidamente , não aceitando o resultado e fazendo ameaças ( como fez o Aécio Neves em 2014), pondo em risco toda a sociedade.

Já na acepção originária ou primeira, “maioria” tem um sentido qualitativo enquanto princípio ou regra constitutiva da vida democrática, e antecede a prática quantitativa e numérica eleitoral do voto.

Essa acepção primeira  de maioria  pode ser assim enunciada: “Todos devem estar de acordo que ganhará as eleições , e governará , o partido ou coligação que  obtiver o maior número de votos, a partir da decisão livre e soberana do povo.” Aqui, a  expressão “todos” indica uma maioria qualitativa.

No sentido derivado ou segundo , a maioria  representa um grupo com uma ideologia que derrotou, no número de votos, outro grupo político oponente  com ideologia e cor de bandeira diferente  .

Contudo, no sentido originário de maioria, não há oponente ao princípio, a não ser os tiranos. Somente os tiranos discordam desse princípio ameaçando que  não aceitarão o resultado do que decidir a maioria numérica - caso eles, os tiranos,  se saiam derrotados eleitoralmente .

O tirano não tem a qualidade democrática para conviver com a democracia: do ponto de vista dessa qualidade , a mentalidade do tirano é sempre “pequena”, mesmo quando eleito por um maior número.

Mas a mera  soma numérica de mentalidades pequenas forma apenas um rebanho ( ou “a facção mais numerosa”, no dizer de Oscar Wilde), nunca alcançando a qualidade pensante pressuposta pela mentalidade democrática ampla.

Um tirano pode até se sair “vitorioso” e obter maioria quantitativa numa eleição, porém jamais ele fará parte daquela maioria heterogênea dos que se põem de acordo , livremente, com o princípio originário da democracia.

No sentido quantitativo  de maioria, os oponentes devem medir  forças segundo as ideias que professam, e o voto decidirá quem ganha e quem perde. Porém, quando se trata do sentido originário-qualitativo  de maioria , os inimigos  do princípio democrático são os negacionistas da vida plural e  heterogênea.

Não foram os gregos, e sim  os povos originários da América Latina, nossos indígenas, que inspiraram Rousseau a pensar e defender o princípio constitutivo de toda sociedade democrática.

 

( Este excelente livro, “Nós”,  é apenas uma sugestão de leitura)





sábado, 11 de dezembro de 2021

as iluminuras de Manoel & Miró

 

1.Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com dois pintores: Klee e Miró.

O poeta aprendeu a fazer “imagens” com os pintores : imagens construídas com palavras, cuja cores e paisagens são diretamente pintadas na tela da alma.

 Manoel chama essas imagens de “iluminuras”: um misto de luz com uma realidade ainda escura, tal como a aurora que tem atrás de si a noite ainda, a noite da qual uma nova manhã se distinguiu , brilhando.

Essa “realidade escura” que participa da criação poética não é como a treva da ignorância e do obscurantismo, ela é como  o escuro no interior do casulo ou do útero, onde cresce o embrião de uma vida nova.

Assim, as iluminuras poéticas são imagens que se lê partejando, como realidade a nascer no poema e em nós, desabrindo-nos.

2. Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.


Miró / "O jardim"


 


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O céu despencou...

Suas estrelas caíram no chão ,

apagadas e ocas.

A terra  não pôde lhes servir de plantação,

estava seca.

 

Porém, Sofia  pegou uma estrela murcha e quase morta

e a pintou com a  tintura azul que coloria também seus cabelos.

Soprando dentro da estrela com o ar que tirava de si mesma,

da estrela azul surgiu um balão.

E um  fio de Ariadne libertava  a estrela,

conduzida por Sofia e sua mão.


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Homenagem ao poeta do samba Monarco ( falecido ontem). No vídeo, Monarco canta os poemas de Alvaiade ("O mundo passa por mim todos os dias, enquanto eu passo pelo mundo uma vez. A noite é o dia que dorme, e o dia é a noite ao despertar.") e Manacéa:



sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

a luz, o filósofo e o poeta


 


O nome desta pintura é: “Aristóteles contemplando o busto de Homero”, de Rembrandt. Ela foi pintada em 1653.Aqui se pode observar a postura de grande admiração do filósofo em relação ao  poeta.

Aristóteles pousa com cuidado a mão direita , a mão com a qual ele escreve sua filosofia, sobre a cabeça do poeta, como se buscasse nela a inspiração. Homero, que era cego, faz o filósofo olhar longe...muito além de meras teorias e conceitos abstratos.

 Há nesta cena um aprendizado por contágio, um aprendizado do qual o próprio corpo afetivo e expressivo  participa, e não apenas o mero intelecto teórico.

 Parece que o filósofo recebe uma transfusão do poeta. Não uma transfusão literal de sangue, mas de afeto ( que é o sangue do espírito).

Transmutado,  parece que o filósofo olha de mais perto a vida , a vida plural e múltipla, tangível e intangível, olhando ao mesmo tempo para fora e para dentro. Como diz Manoel de Barros, quando viva e potente, a poesia provoca horizontamentos e dasabrimentos...

Há uma luz transversal e intensa, como o clarão de um relâmpago, um clarão que intensifica o ver e não fere, que parece se desprender dos livros ( no alto à esquerda). Esse clarão  passa pela  cabeça do poeta, envolve-a, e se irradia sobre o filósofo absorto, iluminando-o por fora e  por dentro , até emanar de seus olhos como luz das Ideias que acha um caminho , apesar das trevas.

“Contemplar” vem de  “com-templo”:  “entrar onde mora o divino”. Quando  entramos no divino, o divino também nos entra, nos é habitado.  Divino não no sentido religioso, mas enquanto espaço transfigurador das Musas.

A palavra “divino” vem de um termo muito antigo do sânscrito, significando “brilho da luz”.  A palavra “musa” , por sua vez, significa: “conhecimento que vem das artes.” Talvez seja esse conhecimento transmutador que o  filósofo busque quando, antes de escrever seus conceitos, apoia sua mão sobre a cabeça generosa  e criativa do poeta.




 

sábado, 4 de dezembro de 2021

poesia pode ser que seja fazer outro mundo

 

Certa vez,  pediram ao poeta Manoel de Barros uma definição de poesia. O poeta assim respondeu: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”. Nessa resposta, a palavra mais importante é o verbo “fazer”. Inclusive, a palavra “poesia” vem de um verbo grego cujo sentido é exatamente “fazer, produzir”.

Quando se substantiva a poesia apenas como rima e verso , perde-se a compreensão de que ela é também um verbo, uma ação, que pode produzir muitas outras coisas além de rimas e versos. A poesia produz também percepções, pensares e sentidos outros que subvertem o “mesmal” do “mundo acostumado” .

Manoel diz que o poeta produz versos porque , antes de escrever, “o poeta se empoema”. Empoemar-se é um sentir que pensa, um pensar que sente, tornando-se potência criativa intensificadora  da vida.

A vida nos empoema quando ela mesma escreve sua poesia em nós. Ideias que libertam e ações que transformam são o sentido de tal poesia ao mesmo tempo cósmica, ética, política , pensante e vital. Pois como  Natureza Naturante, a vida é a primeira e mais potente poeta, ensina Espinosa.

Quem se empoema, desegoifica-se e se desabre: não cabe mais dentro de si. Alguns se empoemam e dançam, outros se empoemam e pintam, outros se empoemam e cantam, outros se empoemam e ensinam, outros se empoemam e aprendem, outros se empoemam e se tornam generosos, corajosos, insubmissos, libertários , enfim, intensificam o que neles é vivo . E com o máximo de força que podem , se esforçam para fazer outro mundo começando pelo lugar onde se está, mesmo que seja um lugar modesto, micropolítico: sala de aula, fábrica, rua, praça, residência, favela, vizinhança, janela, mundo virtual...

E primeiro que tudo, deve-se começar por fazer outro mundo dentro de si mesmo, um mundo que não pertença apenas a si mesmo, um mundo que possa ser partilhado e nos agenciar em nossas diferenças.

É por isso que o importante naquela definição de poesia também é o “pode ser que seja”, pois poesia não é palavra de ordem , fórmula ou receita; poesia é ideia pensante para ser sentida e reinventada, reinventando-nos , como potencialização da liberdade agenciada.

 

“Mais importante do que o pensamento é o que ‘dá a pensar’; mais importante do que o filósofo é o poeta”. (Deleuze)


"As minhocas arejam a terra; os poetas, a linguagem."(Manoel de Barros)

 

( este livro é apenas uma sugestão de leitura, pena que Manoel não esteja nele...rs...😉)







domingo, 28 de novembro de 2021

a educação e seu tempo

 

Esta ideia está esboçada no filósofo e poeta Emerson ( que aqui interpreto): a educação autêntica, aquela que realmente muda as vidas individualmente  e prepara um futuro  social digno, essa educação emancipadora tem que começar sempre o mais cedo possível. Mas qual é esse “mais cedo”?

Em relação ao adulto, o jovem está nesse tempo mais cedo, pois o jovem  vem antes do adulto. Mas a criança vem antes do jovem, pois ela  vive num tempo ainda mais cedo. 

O que caracteriza o “mais cedo” é que ele é um tempo cujo sentido é a abertura ao futuro. Assim, a criança é pura abertura ao futuro, mais do que o jovem. Por isso, a criança é pura potencialidade, assim como a semente da qual virá o fruto.

Segundo Emerson, porém, existe ainda uma realidade anterior à criança, um “mais cedo” ainda mais cedo. E é nesse tempo mais cedo de todos que a educação libertária precisa começar.

Mas Emerson não está se referindo à vida no interior do útero, pois o tempo mais cedo fundamental vem antes até mesmo  dessa existência uterina.

Contudo, esse tempo mais cedo originário  não é uma vida anterior no sentido de outras vidas vividas num além religioso ou metafísico. Pois esse “mais  cedo” referido pelo filósofo é a realidade social. A sociedade é anterior ao indivíduo, e é portanto nela que é preciso começar a educação.

 Nesse sentido, a educação é a mais elevada, potente e necessária das práticas políticas e éticas, pois  educar não é apenas  tornar o indivíduo um empreendedor-consumidor econômico, tampouco um mero soldado  da "Ordem" estabelecida, e sim um agente-cidadão transformador de sua realidade social e política.

No adulto, o jovem que ele foi ainda está dentro dele e o influencia . E o jovem, por sua vez,  ainda traz dentro de si a criança que também o influencia ( como mostra a psicanálise).

Se a criança sofreu traumas , estes ainda persistirão , como sintoma, no comportamento do jovem. Contudo, o jovem pode procurar ajuda,  tomar consciência, agir sobre si e superar esses traumas do passado que limitam sua vida presente.

A sociedade vem antes da criança, imprime-se nela  e influencia seu  ser futuro.  Uma sociedade injusta, desigual, autoritária e individualista imprime traumas na criança que ela sozinha não tem como vencer. Traumas que roubam seu futuro, como o trauma da violência  e da miséria, tanto as misérias e violências  materiais como  as simbólicas.

Assim, a educação autêntica precisa começar nessa realidade social “ o mais cedo possível”, inclusive detectar seus efeitos limitadores na criança, pois a realidade social influencia decisivamente   o desenvolvimento psicológico, afetivo, social e  cognitivo da criança.

É preciso agir nesse “mais cedo” para  que não seja “tarde demais” a construção de um futuro digno.




sábado, 27 de novembro de 2021

dos sultões, ontem e hoje

 

O fascista  esteve recentemente  lá pelas terras do Oriente Médio e ficou encantado com algumas coisas  que viu por lá, tanto que nem queria voltar, estendendo ao máximo  seu  turismo de mau gosto bancado  com nosso dinheiro público.

Ele adorou o abominável machismo institucionalizado daquelas sociedades , onde as mulheres são tratadas como seres inferiores. Ele também se identificou profundamente com as estranhas monarquias daquelas terras, obscuras  ditaduras   do deserto.

O genocida ficou tão encantado com esses aspectos deploráveis que até sonhou que era sultão. Traidor que é, no  sonho ele  trocou o tal “Deus Acima de todos ” por Alá e Maomé.

Dizem que ele quer implantar por aqui coisa parecida,  porém adaptada ao seu jeito tacanho:  um sultanato teo-miliciano.

Isso me lembra uma história :

Havia uma aldeia onde um sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor. 

Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, ele resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele aprisionou as mulheres em seu castelo . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade.

Quando o sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo.

Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o sultão .

No dia seguinte, Sherazade  prosseguia com a história e logo a emendava com outra. O sultão não conseguia ficar imune a esse poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos (o sultão imaginava, ao contrário, que poderosa é a palavra que ameaça de morte) . 

Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, e a este estendia  como linha de fuga, “Fio de Ariadne”. A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia Manoel de Barros.

  Sherazade simboliza a vida que se expressa    múltipla nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros,  apesar dos sultões de hoje que ameaçam      calá-la . Como ensina Manoel de Barros, “poesia é afloramento de falas.”

 

( imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam num mesmo fluxo de vida  que segue em frente , como um  rio inaprisionável )