quinta-feira, 30 de abril de 2020

girassol de van gogh, rosas de cartola


Quando Van Gogh pintou seu girassol, ele criou um girassol das tintas. Os girassóis do campo um dia secam e morrem. Mas nunca morre o girassol que Van Gogh pintou , apesar da ação do tempo que rói as tintas  .  Como passava por dificuldades extremas, Van Gogh pintou seu girassol com tintas baratas , porém  com elas conseguiu produzir  infinita riqueza. Pois quem tem riqueza para expressar sempre acha os meios para ofertá-la , sejam esses meios as tintas, as ações , as ideias ou  as palavras.Quando Cartola canta  : “as rosas não falam”, que rosas são essas que vivem em sua música? O que elas têm de diferente das rosas que colocamos em jarros? As rosas dos jarros um dia murcham, mas nunca murcham as rosas de Cartola : elas desabrocham em nossa voz a cada vez que a gente as canta.  Essas rosas que vencem a morte também ensinam a resistência.  

“Ali onde cresce o perigo, brota também o que salva.” (Hördelin)

“A arte é o que resiste: ela resiste à morte, `a servidão, à infâmia, à vergonha.” (Deleuze & Guattari)


( foto : durante a ditadura, as forças repressivas do AI-5  querendo calar   o poeta Cartola)









domingo, 26 de abril de 2020

a esfinge...


A arte diz respeito  à sensibilidade.Em grego, a palavra “aesthesis”  significa  “sensação”. Dessa palavra  nasce "estética", estudo da arte. Mas existe ainda o termo "poética". Essa palavra se origina de "poiésis" = "produção". Assim, a estética concerne à recepção da obra de arte, ao encontro com ela, ao passo que a poética pensa a sua produção, ou seja, o encontro do artista com a própria criação. Enquanto a estética sente a obra pronta, a poética sente, pensa e cria a obra a ser feita. Quando o poeta Manoel de Barros diz que ler poesia não é apenas ler palavras e sim empoemar-se, o poeta coloca a poesia para além da estética , fazendo da poesia o meio de uma "empoética". Empoemar-se é também sentir-se, pensar-se, fazer-se, curar-se, criar-se enquanto obra nunca antes feita. Enfim, empoemar-se é mais do que ler poesia, empoemar-se também é política, educação, saúde, clínica, subversão, rebeldia."Poesia pode ser que seja fazer outro mundo", diz o poeta. No verso, a ênfase está não tanto no mundo quanto no "fazer":  fazer outros mundos subjetivos e objetivos, fazer outros mundos líricos e políticos, fazer outros mundo singulares e coletivos. Pode ser que seja...  
     A arte sempre esteve então relacionada  à nossa capacidade de sentir,o que envolve diretamente o corpo. Como o corpo e a sensibilidade sempre tiveram um papel secundário nas culturas antigas, a arte sempre esteve também subordinada aos frutos do intelecto, estes bem mais valorizados.
Mas a arte também é uma forma de conhecimento, uma forma de conhecimento diferente daquele meramente teórico. A arte é uma forma  de conhecimento que tem como suporte também o corpo. Por esse motivo, a arte sempre esteve subordinada a outras formas de conhecimento que o homem produziu, conhecimentos estes mais intelectuais. Platão, por exemplo, dizia que a beleza que vemos com os olhos do corpo é uma imagem ou cópia da Beleza que apenas a alma pode ver com os olhos da razão. Essa beleza Ideal e Imaterial acabou virando o modelo da arte clássica, que prima pelo realce da forma (no mito, a forma é Apolo...).
Durante a Idade Média, a arte passou a ser subordinada às ideias da teologia. A partir do romantismo, surge a figura do artista como  individuo excepcional, e muitas vezes o artista era mais importante do que a obra.Com a sociedade industrial surge a possibilidade de reprodução das obras. Segundo Walter Benjamin, um importante filósofo da comunicação, com a “reprodutibilidade técnica” a arte teria perdido sua “aura” de objeto singular quase religioso.
 A arte contemporânea se caracteriza pela sua autonomia em relação a todos os antigos valores e conhecimentos que a subordinavam. A arte se libertou de sua subordinação à moral, à religião e à ciência;  ela se libertou até mesmo do público. O artista passou a criar quase que para os outros artistas, que supostamente deteriam os “códigos” para interpretar o que um artista quis dizer com sua obra.
Internamente, a própria arte sofre uma mutação em relação aos seus suportes: ela abandona a tela, na qual o quadro era representado como uma “janela para a realidade”. A arte não quer ser mais janela para o mundo, ela quer ser parte do mundo. Daí a arte ir para o espaço: ela o incorpora como elemento no qual ela se instala ( “instalação” tem esse sentido: a arte abandona os limites bidimensionais da pintura e vai para o espaço tridimensional, às vezes empregando objetos do próprio mundo).  Com isso, a arte rompe com os antigos modelos de interpretação calcados em uma narrativa linear, onde se representava um fato ou divindade. A arte não é mais apenas para ser vista ou contemplada: ela quer ser rodeada, pensada, interrogada, uma vez que ela mesmo nos interroga. Tal como a Esfinge, ela nos desafia: “Decifra-me ou...”







- imagem: "Portais da impermanência", de  Tunga.










sábado, 25 de abril de 2020

foucault & espinosa


Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault,  em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica.  Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. Foucault argumenta que  essa conduta muda radicalmente a partir de Leibniz,  não obstante Espinosa e Leibniz  serem contemporâneos ( Espinosa era apenas um pouco mais velho que Leibniz).A partir de Leibniz, fazer filosofia será identificado a escrever livros, artigos; dar aula na academia, fazer palestras, acumular Títulos. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma.Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade, requer  sobretudo coragem .E disto a própria vida de Espinosa  dá o testemunho. Decerto que não faltou amor à Verdade a Sócrates ou Platão, e nisto Leibniz os segue. Mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a Verdade pede. Há uma dimensão clínica nessa Verdade, pois toda cura começa na coragem. Coragem não para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com  a saúde.
Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina mentis, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem apenas pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curandorismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo.Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse vir tal salut.Procedendo assim, a alma está sempre a depender de outra coisa para ser si mesma e exercer sua virtude, que é a compreensão, o pensar.Todavia, não há como a alma delegar essa virtude e permanecer alma, assim como não há como ela, em vida, delegar sua existência a outra coisa e ainda permanecer viva. Na verdade, a virtude de pensar não pode ser delegada, pois ela constitui a existência da alma. No entanto, ela pode ser enfraquecida, entristecida, e isto é o que ocorre quando a alma adoece.
Ao perceber que o corpo está doente, a alma age visando a cura dele produzindo um método. Se for a alma a doente, o inverso não se aplica, pois o corpo é incapaz de perceber uma doença na alma.Se o corpo está bem alimentado, saudável, ele está na plena posse de sua virtude, que é agir. Perceber é uma virtude que depende da alma, e não do corpo.Mas como alma e corpo são um só, é abstrata a ideia de que um possa estar são e o outro doente. Esta hipótese foi aventada apenas para introduzir a seguinte questão: se a alma estiver doente, impotente, como pode ela perceber em si mesma tal impotência?Como poderia ela, estando doente, isto é, encontrando-se incapacitada para compreender, compreender justamente que ela não compreende?Como poderia ela emitir um juízo acerca de si mesma se ela se acha incapacitada para emitir juízos?Se ela se encontra fora dela mesma, e sua casa é a compreensão, como pode ela entrar nela mesma para, exercendo sua virtude, buscar sua própria cura?A cura do corpo depende da alma, sem dúvida. Mas a cura da alma depende dela mesma. No entanto, se toda cura depende de um método, como pode a alma estabelecer um para si mesma se ela ignora que ignora?Assim, e antes de tudo, é preciso que a alma conheça que está doente. Conhecer não é reconhecer. O reconhecer é uma passividade, ele é a aceitação de um juízo externo que outrem faz sobre nós mesmos, ao passo que o conhecer é uma atividade que só depende de nós mesmos, pois ele é a produção de um conhecimento apoiado em uma ideia adequada. Quando conhecemos que estamos doente, já não o estamos mais: já ultrapassamos a doença pelo esforço para compreendê-la. Quando conhecemos que estamos doentes na alma, é sempre a uma parte da alma que a doença se refere, e não à alma inteira. Na verdade, a  parte doente da alma é apenas a alma pelo avesso, alienada de si mesma. Do conhecimento da doença nasce um método, que é um esforço sobre si mesmo para adequar-se a si mesmo, à nossa ideia adequada. Esse esforço é a expressão de uma constância que só se torna contínua  quando nos colocamos de acordo conosco. O método é um exercício sobre si: ele é uma medicina animi, ele é uma clínica. A verdadeira clínica não é luta contra a doença, mas potencialização da saúde.Somente quando não está mais pelo avesso é que nossa alma pode nos vestir e ser a ideia adequada de nós mesmos, ideia esta que nos dá coragem e firmeza.A clínica é a constituição de um modo de vida, de um pensar e de um agir adequados. 
"Método" significa: "caminho para".O método é um caminhar, um caminhar para. O método é um caminhar para nós mesmos, para a ideia adequada. Esta não é um fim que se coloca exterior ao caminhar, ela é a causa eficiente dele. A ideia adequada é o martelo que produz o caminhar . Como toda ferramenta, é o uso que a aperfeiçoa, ao mesmo tempo em que aperfeiçoa o agir do  artesão que a tem nas mãos.A nossa existência é um caminhar para a essência, um caminhar de acordo com a essência.Por isso, o método é uma conduta cuja causa é a essência que expressamos. O método é um caminhar para a essência, isto é, um estar de acordo com aquilo que não nos falta, mas que nos é necessário produzir como modo de vida.






sexta-feira, 24 de abril de 2020

ideia e sensação no empirismo


                                            O EMPIRISMO DE DAVID HUME[1]

Onde o interior e o exterior se tocam:
aí se encontra o centro da alma.
Novalis


David Hume, o filósofo empirista, dizia que as ideias nascem das sensações. Não há  ideia que não tenha nascido da sensação. Depois, ele precisa seu pensamento e diz: não há oposição entre a ideia e a sensação, pois a ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida, desvitalizada. Mas quando a ideia “entra” em nossa mente ela não penetra em uma casa vazia. Nossa mente não é uma casa vazia. Assim como uma casa pré-determina o percurso que faremos dentro dela em razão dos compartimentos ou cômodos que ela tem, quando a ideia entra em nossa mente ela se submeterá a certas exigências da nossa mente.
Nossa mente não consegue, por sua natureza, lidar com duas  coisas: o imprevisível e o caos. E aqui está o problema: a origem das ideias, segundo Hume, é imprevisível, pois vem de algo que existe fora da mente. Então, para controlar essa natureza imprevisível e caótica da ideia, a mente tem uma arma: as regras. É com as regras que a mente luta contra o caos das sensações e com a imprevisibilidade de tudo o que existe fora dela e que ela não tem como dominar, dado que a mente se percebe existindo em um mundo que não depende dela para existir, embora ela precise desse mundo para ser uma mente, apesar de ela não saber o que esse mundo é em si. Para proteger-se do caos, para não ser ela própria um, a mente se arma com regras. Estas não legislam sobre as coisas tais como elas são, elas se aplicam apenas às ideias, que são a existência mesma, porém enfraquecida. Digamos que a ideia não é o corpo que a roupa veste, mas a roupa sem o corpo. Deste ela mantém apenas a forma, o vestígio, a semelhança. As regras da mente apenas valem para o caos que se enfraqueceu e se tornou ideia, mas nunca as regras poderão um dia transformar totalmente o caos em objeto transparente às regras de nossa mente.
Todavia, como a existência humana se dá na superfície das coisas, e não na sua profundidade , as regras modelam nosso mundo, e cremos que nosso mundo é “o” mundo.
São três as principais regras que constituem nossa mente, e por meio das quais a mente conformará as ideias: causalidade, identidade, espaço/tempo.Fora da mente não existe causalidade, identidade, espaço e tempo. Porém, essas regras são “vazias”. Para elas ganharem vida, elas precisam ser preenchidas com um conteúdo,  esse conteúdo são as ideias. É aqui, e não antes,  que surge a  percepção. Ter percepção não é a mesma coisa que ter sensações. Estas antecedem aquela. As sensações são as ideias mesmas.  A ideia  é,  ela mesma, uma sensação que se enfraquece e deixa de ser o que ela é para se transformar em outra coisa dentro da mente, quando então a sensação enfraquecida se conforma às exigências de haver regras, causas, identidades, sucessão temporal e contiguidade espacial. Nela mesma, a ideia é a sensação mesma, e esta não é uma coisa ou substância..Então, a ideia não é ideia de algo, mas enfraquecimento de algo que se torna então ideia, e como  ideia pode entrar em uma mente e ser regrada, tornando-se assim representação de uma coisa, de um  objeto.
Quando a sensação enfraquecida é “domada” pelas exigências da mente, somente aí nasce o que chamamos de “percepção”:  percebemos então uma cadeira, um homem, uma coisa, enfim. Além disso, a ideia que nasce da sensação é sempre ideia singular,simples, ao passo que, submetidas às regras, as ideias simples se unem a outras, formando ideias compostas. “Cadeira”, por exemplo, é uma ideia composta de outras ideias. Tudo o que percebemos , e que chamamos de realidade objetiva, são já ideias compostas, isto é, ideias que se unem a outras segundo a regra da identidade, sobretudo.
 Nossa percepção é construída, não é natural. As regras da mente são projetadas para fora como se pertencessem à  própria natureza das coisas. As regras da mente não são individuais, e nem apenas biológicas. Segundo Hume, o natural e o social se confundem. O que hoje julgamos natural não o era para os homens de sociedades passadas. E o que hoje julgamos natural  não o será para as sociedades que virão. O homem medieval julgava que a bruxa era a causa da peste. Hoje o homem julga que são os germes a causa. Há algo em comum entre o medieval e o homem de hoje: a crença na ideia de causa. Talvez, quem sabe, no futuro se julgue que as doenças têm outras causas, mas ainda assim haverá a crença de que há uma causa. Essas regras valem não apenas para o âmbito do conhecimento, elas valem também para o mundo das práticas.Por exemplo, em toda época, em qualquer sociedade, os homens sempre acharam que a felicidade tem uma causa. Para alguns, a felicidade estava na contemplação do Bem; para outros, na posse de muitas mulheres; há ainda os que dizem que a causa está no acúmulo de bens. A ideia de causa define o que os homens acreditam ser  “o normal”.O que caracteriza toda época é que cada época julga ser sua normalidade o normal de todas as épocas.E a época mais terrível é aquela que julga que todas as épocas  que a antecederam eram apenas esboços para se chegar a ela, e que ela é a época definitiva, além da qual não haverá nenhuma outra, pois ela é  o próprio "fim da história".
O artista, porém, parece escapar do mero domínio das regras da mente, e é por isso que ele é um extemporâneo, alguém que escapa aos determinismos comportamentais de sua época histórica.Mais do que histórico, o artista é um devir. Nunca o artista se contenta com a felicidade dos “normais” de sua época histórica, sobretudo com a felicidade e sucesso daqueles que são considerados os "artistas normais " de sua época, os quais a mídia explora e vende.Ele quer ir além das regras da mente, para assim viver/experimentar o perigoso lugar onde as ideias nascem. Ou melhor, ele quer fazer o caminho contrário ao das ideias. Estas nascem das sensações, elas são as sensações mesmas, porém enfraquecidas, e que se tornam ideias dentro da mente, ou “representações” das coisas que imaginamos perceber fora de nós como "mundo objetivo". O artista desce o caminho , ele o refaz. Primeiramente, ele precisa abandonar a certeza lógica e social das regras. Ele precisa vencer a causa, duvidar das identidades...E não raro esse “vencer” toma ares de perda, de fracasso, de insucesso ( para aqueles que vencem graças às identidades, às causas e aos valores dominantes de dada sociedade). Tampouco o  artista  é um refém da fantasia que torna a mente paralela ( “esquizo”) à realidade, pois ele vai além da mente socialmente conformada, ele busca o ponto que antecede o enfraquecimento da ideia, pois ele quer a potência, ele quer a vida mais viva, mesmo que para isso lhe faltem ideias.
Ele sai da representação, e segue a ideia em direção ao seu nascimento, ele quer ver onde ela nasce: saindo da casca oca do universal,  ele vai ao singular...Retirando a roupa, ele quer ver o corpo nu das coisas.À medida em que ele se aproxima do singular, a sensação vai ganhando força, existência, intensidade....E quando  chega nesse ponto,  ele faz a mais estranha das descobertas, uma descoberta alucinante, fantástica, que desarma  nossa mente lógica e suas regras, tanto as regras lógicas quanto as sociais. O artista descobre que seu caminho de ir para fora da mente é, ao mesmo tempo, uma vereda para se aprofundar ainda mais dentro da mente....E que a origem da ideia é a origem da própria mente.Ou seja, não há origem como ponto inicial , há apenas meio , processo. Somente quando a mente está sob regras, socialmente determinada, é que ela tem a ilusão, ilusão científica e do senso comum, de que existe uma oposição entre a mente e uma realidade pronta que existe fora dela. Contudo, quando o artista explora e se explora, ele descobre que o extremo do mundo externo  e o extremo do mundo interno se tocam e embaralham suas fronteiras, formando assim uma terra incógnita.E o que vemos aí? Não vemos mais regras.
Qual o valor das regras? Estabelecer critérios para a combinação ou síntese das ideias. Por exemplo, pela regra da causalidade estabeleço uma conexão entre duas ideias: vejo a ideia de calor, depois percebo a ideia do evaporar, e sintetizo uma ideia com a outra, emitindo um juízo: “o calor é causa da evaporação(efeito)”. Quando vamos a esse ponto obscuro onde mente e matéria  são indistintos, as  ideias não deixam de se combinar, porém elas se combinam aleatoriamente, sem regras. Tudo se torna possível....Torna-se possível uma pedra falar, uma serpente voar, uma nuvem ter olhos...Segundo Hume, esse é o mundo da fantasia. A fantasia é uma combinatória sem regras. Logo, a mente não tem o poder de controlar e regrar a fantasia.E é isto o caos: não a desordem, mas uma combinatória de elementos sem a menor causalidade, sem a menor identidade, sem antes, durante ou depois, ou sem estar em algum lugar.
Phantasiaphantasma. Na mitologia havia um personagem chamado Phantaso, que era o ser responsável pela produção  das imagens do sonho.Da mesma raiz vem o termo “fenômeno”: aquilo que aparece. No sentido filosófico, a diferença entre fantasia e fenômeno está no fato de que o fenômeno aparece para a consciência desperta, ao passo que a fantasia aparece para a consciência adormecida, sonhante. Logo, é a consciência, ou mente, que difere fantasia e fenômenos. Neles mesmos, se retirarmos a relação que eles estabelecem com a consciência, não existe diferença entre fantasia e fenômenos. Para a fenomenologia, por exemplo, fenômeno é tudo aquilo que aparece para a nossa mente como sendo a realidade que percebemos ( é o mundo que o senso comum chama de realidade , enfim, a própria  “Matrix”).
O artista vai ao caos e volta, e retorna de olhos vermelhos, pois foi ao sol que ele foi, para assim ver/sentir onde nasce o dia. Ele nos faz pensar/sentir  o que não o consegue a mente socialmente regrada: pensar o singular, o acaso, as  formas de duração não redutíveis ao tempo, as diferenças que não cabem na forma geral da identidade...


[1] Texto-aula elaborado pelo prof.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

espinosa & kurosawa


A palavra “fortaleza” nos faz imaginar algo cercado por muros espessos e com arame farpado. Em seu livro chamado “Ética”, porém, Espinosa realça uma virtude chamada exatamente fortaleza (“fortitudo”, em latim). Mas a virtude-fortaleza em Espinosa não tem muros ou cercas, embora seja dela que pode advir resistência com ação.
"Fortaleza" procede de "força". Alguns tradutores traduzem "fortitudo" como "força de ânimo" ou “força da vida” ("ânimo" vem de "ânima" = "unidade vital da alma e do corpo"). Tal força não se expressa apenas em termos de músculo. O contrário do ânimo não é a morte ou a doença, mas o des-ânimo.O oposto da vida não é a morte, e sim a vida enfraquecida em seu ânimo. A fortaleza-virtude tem força, mas não é violenta; ela tem potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser rígida.
Na sabedoria oriental considera-se a flor de lótus o símbolo da fortaleza: ela não tem muros a cercando , porém a lama não a contamina ou turva. Apesar da sujeira em torno, a flor de lótus ensina a como perseverar sendo ela mesma. Ela ensina com sua existência, sem precisar de sermões ou ordens . No Japão antigo, o candidato a guerreiro deveria passar por uma prova que não era meramente teórica ou acadêmica: ele deveria aprender com a flor de lótus a como não se contaminar com a sujeira, mesmo cercado de lama. A flor de lótus simboliza a mente que pensa unida ao corpo que age , por mais hostis que sejam as circunstâncias .

“Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo.”
(Manoel de Barros)


(cena do filme “A saga do judô”, de Kurosawa: fortalecendo o ânimo, o aprendiz de guerreiro aprende a lição da flor de lótus. Pois é com o ânimo, potência da vida, que a mente se autoafirma e luta , antes mesmo de lutar com os braços e pernas . O judô é apenas um pano de fundo do qual Kurosawa se serve para abordar questões ligadas à ética, à política, ao poder, à justiça, ao ensino e ao aprendizado )










verossímil X pseudossímil



Quando uma pessoa fala em público e argumenta, essa é uma boa oportunidade para se conhecer também sua mente. Toda  argumentação se aplica a  assuntos sobre os quais não se pode ter as evidências da matemática.  Assim, quem argumenta busca se apoiar no “verossímil” ( vero+símile) , isto é, o “semelhante ao verdadeiro”. Quando o verdadeiro não está diretamente às vistas, aquele que tem boa índole busca construir um retrato do verdadeiro  usando palavras, como se fosse um “retrato falado” : o verossímil não é o verdadeiro, mas traz semelhanças com ele.  É por isso  que existe uma “ética do discurso”, pois as intenções de quem fala também se revelam em seu comportamento verbal . Mas existe ainda  o “pseudossímil”. A palavra “pseudo” significa “falsidade” ou “mentira”. Uma coisa é um discurso  parecer uma verdade, outra diferente é ele se assemelhar  a uma mentira. Comparsas que querem encobrir um cúmplice geralmente fornecem retratos falados falsos. Em geral, o pseudossímil indica um problema de caráter daquele que  o emprega. Nos casos mais graves, psicopatia mesmo, pois revela  uma dificuldade em distinguir realidade e  mentira no âmbito mais amplo , configurando assim delírio. E é por isso que  o pseudossímil serve a superstições, mistificações e ignorâncias .  O verossímil se aplica a questões que podem ou não ser verdade , disto dependendo a verificação científica dos fatos, já o pseudossímil é usado por aqueles que negam  os fatos e a ciência, explorando apenas  a mera crença e a ignorância. Por exemplo, é uma hipótese verossímil que certa vacina já empregada com eficácia contra um vírus possa ter sucesso na luta contra um vírus semelhante, porém  é preciso que a ciência faça experiências e comprove ou não o que é apenas hipótese. Mas  alguém que não seja  médico usar seu poder político ou religioso  para afirmar que um remédio pode combater o vírus, isso é delírio criminoso que nega a ciência como critério da verdade . O verossímil quase sempre se mostra mediante hipóteses, já o pseudossímil é apresentado como se fosse uma “Verdade” mais verdadeira que a própria ciência. Em geral, o verossímil tem por critério  uma aproximação com a realidade, já o pseudossímil  revela um afastamento da realidade . E quem fala apoiado no pseudossímil quase sempre berra e grita. Se houver resistência, ele também ameaça. Às vezes, porém , pode também falar mansamente aparentando autocontrole, fingindo ser quem não é.
Em geral, quem argumenta baseado no verossímil pode ser refutado, se a refutação achar fatos que o contradigam. Já aquele que propala o pseudossímil nunca aceita ser contraditado, e vê como inimigo quem pensa diferente, um inimigo a ser demonizado ou paranoicamente eliminado.

terça-feira, 21 de abril de 2020

cronos e aion


Aconteceu lá no começo das eras :  talvez tenha sido uma criança que, brincando,  pegou uma  semente  que recolheu da floresta  e a plantou em um pedaço de  terra próximo de onde  morava. Antes, a planta crescia livre , sem cercas , como parte de uma floresta. Agora ela era cultivada  por alguém que a desterritorializou  de um espaço livre e a reterritorializou em uma terra cercada . Foi assim que  nasceu a agricultura: com a domesticação do que antes crescia e vivia livre, selvagem. “Domesticar”  significa : “colocar sob o poder de um domicílio” enquanto espaço privado. Mas não era apenas a planta  que era assim domesticada,  pois junto com ela  também era domesticada outra realidade . O homem de então percebeu que a planta nasce, cresce , dá  frutos e  morre. Ele  compreendeu que a planta existe dentro de um período com fases e ciclos. O homem deu um nome para essa realidade feita de ciclos: ele a chamou de “tempo”.  Depois, o homem  abstraiu o tempo do cultivo empírico das plantas, ficando  apenas com a ideia de ciclo , estendendo-a  ao cosmos e  a si mesmo. E assim se viu  criança,  adulto e idoso. Ele percebeu que sua vida tinha ciclos, como a vida da planta. Compreendeu que ele era nascimento, vida e morte. A domesticação do tempo constituiu também a descoberta do domicílio onde mora o homem: enquanto os deuses moram na eternidade, o homem tem por morada o tempo. Assim como a planta domesticada passou a viver dentro de cercas, o relógio se tornou  a cerca que limita o tempo domesticado.
Mas a domesticação da planta não fez morrer as florestas das quais   vem  ar puro, do mesmo modo que a domesticação do tempo não eliminou o seu existir  livre e espontâneo enquanto duração para além do  relógio. Esse tempo espontâneo e livre é o que alguns filósofos chamam  de “devir”. O devir  está para o relógio assim como a floresta está para a agricultura, ou  como a poesia está para a linguagem: como realidade  não domesticada, livre,  que nenhuma cerca simbólica aprisiona. Assim como das florestas, dos devires-poéticos também podem vir  ar puro...Na mitologia ,  o tempo do relógio é chamado de  Cronos, a divindade que a todos devora, ao passo que a  duração-devir  poética atende por  Aion , que era simbolizado por uma criança  que brinca.



povo , rebanho e multitudo


A frase “Todo poder emana do povo”, usada por bozo para armar o golpe, ela é parte apenas da questão democrática, mas ela não expressa  o todo. Na referida frase, a ideia principal é a do “poder”. Porém  há uma diferença entre “poder”  ( “potestas”, em latim) e “potência” ( “potentia”), e quem melhor explica isso é Espinosa.  “Potestas” é uma transferência feita pelo povo de seu “poder de agir”. Quem recebe esse poder ( o parlamentar, o presidente, etc.) passa a ter o direito de “agir” pelo povo, desde que esse poder recebido não ponha em risco a sociedade como um todo em sua potência de existir e pensar. Segundo Espinosa, existir e pensar são direitos também, direitos que antecedem a todo poder constituído, inclusive ao direito do presidente e do exército. O direito que antecede a todo direito constituído  é chamado por Espinosa de “potência” (“potentia”) . E esses direitos são indelegáveis: somente o poder de agir é delegável, a potência de existir e de pensar são imanentes a cada indivíduo  singular. Assim , somente o poder ( potestas) de agir é delegável,  a potência de pensar é indelegável e é ela que nos protege das usurpações do tirano e nos dá o direito de tirar a potestas que ele recebeu. Quando alguém escreve em seu perfil : “Ele não é meu presidente”, está pondo em prática esse direito que antecede a potestas. Espinosa também distingue  “povo” , “rebanho” e  “multitudo”. “Povo” é como o poder designa a parte da multitudo que lhe conferiu, pelo voto, o poder de agir. “Rebanho” é quando parte do  povo renuncia a pensar e passa a obedecer cegamente  àquele que se elegeu com seu voto, unindo-se a ele na repressão a todos que resistem a tal poder .  E multitudo é a heterogeneidade existencial e pensante de todos os indivíduos singulares. A multitudo é mais do que o povo, e nunca será rebanho. A multitudo é a legítima detentora do poder e ninguém fala por ela: somente ela fala por ela  mesma. “Voto” e  “pesquisa de opinião” são  partes da voz dela, mas não são  e nunca serão a voz toda. A multitudo não é a democracia instituída, ela é instituinte de democracia.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

o clarão de espinosa

O escritor Romain Rolland assim descreve sua primeira  experiência com a leitura da Ética, de Espinosa. Logo na leitura da primeira página, não é a Espinosa que ele encontra apenas . Ele encontra também  a si mesmo, o seu si até ali ignorado. 
O escritor prossegue dizendo que não encontra somente as palavras escritas de Espinosa, ele encontra, antes de tudo, as palavras que ele mesmo desejaria ter falado como palavras suas, próprias.
Essas palavras que em Espinosa ele lia e aprendia , o escritor diz desejar que elas fossem dele bem antes de já estar formado o adulto e suas certezas, o adulto e seus medos, o adulto e suas verdades. Antes mesmo de saber ler e escrever, ele queria ter aprendido a falar , como suas primeiras palavras da infância , as palavras que aprendeu em Espinosa. As palavras de Espinosa seriam então o meio poético-filosófico para ele se alfabetizar e ler o livro do mundo. 
Então, ao começar a falar dizendo a  primeira palavra que aprendeu em Espinosa, ele não diria “papá” ou “mamã”, ele diria “in-fi-ni-to”, ainda que o balbuciando. E o sentido dessa palavra  seria um potente clarão a abrir, para nunca mais fechar, os olhos do espírito.







ao dia de luta dos índios ( 19 de abril )


- ao dia de luta dos Índios

PARA O MEU TATATATARAVÔ TUPINAMBÁ

Entre os tupinambás que aqui viviam , quando um guerreiro da comunidade morria era necessário um último ritual. Os tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados. Eles só consentiam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar do poder. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, pois não aceitavam viver sem honra. Para eles, a morte era a última prova, especialmente para os chefes e guerreiros tidos como corajosos, generosos, leais. Então, quando um guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo. Colocavam junto ao corpo seu arco e flecha, bem como a flauta feita do fêmur oco do inimigo vencido . Os tupinambás faziam flautas com o fêmur dos colonizadores. Quanto mais valoroso o guerreiro, mais flautas possuía. Quando os colonizadores invasores chegavam perto, ouviam então a música que deixava as pernas brancas deles tremendo. Não eram poucos os que saiam correndo...
Ao fim da tarde , como parte dos rituais fúnebres, punham o corpo do guerreiro numa canoa e a empurravam em direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre mar e céu. O azul comum de ambos confirmava suas crenças: o horizonte para eles era apenas um limiar, uma passagem. Guardando essa passagem ficava o Grande Ancestral. Se o guerreiro na canoa fora um dissimulado, um traidor que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que barraria o dissimulado na travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato fora honrado , e não um farsante, o Guardião o deixava atravessar para no céu ser eterna estrela. Na manhã seguinte ao ritual, ao raiar do dia, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se achassem uma, choravam envergonhados por terem sido enganados por tal imitação de homem virtuoso. Mas se não achassem tal estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando como estrela viva a protegê-los dos maus.

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios” (Manoel de Barros)





- esta música é cantada nos ritos de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá alimento e proteção ( e que precisa ser cuidada e preservada).






domingo, 19 de abril de 2020

o louco e seus fantasmas..


Na minha infância havia ainda a ditadura militar. Quem não passou por isso não faz ideia da violência, violência física e simbólica, da ditadura . Somente quem nela foi carrasco, cúmplice ou capitão do mato tem saudade daquela triste época. Na televisão , nos livros de Moral e Cívica que eles nos impunham no lugar de filosofia e sociologia, na capa dos cadernos escolares , em quase todo os lugares , enfim, o regime ditatorial martelava dia e noite a seguinte palavra de ordem : “O Brasil é o país do futuro.” Isso era repetido para esconder as mazelas do presente, e quem discordasse da tal palavra de ordem os militares ameaçavam com o cínico: “Brasil, ame-o ou deixe-o.” Quando veio a redemocratização, ficou claro que aquele “futuro” propalado pela ditadura nada mais era do que a vontade dos militares de perpetuarem aquele presente sombrio no qual eles aterrorizavam quem deles discordava. Com a democracia, veio então a percepção de que o Brasil somente teria futuro se resolvesse as desigualdades que, desde a escravidão, nos prendiam num passado de injustiça e exploração aviltantes . Renasceu e ganhou força então o pensamento popular-progressista, um pensamento plural, sem dono ou proprietário, unindo trabalhadores das fábricas, intelectuais e estudantes das universidades, artistas e pensadores libertários , antigos combatentes políticos e novas lideranças , e até mesmo setores da igreja que defendiam os pobres e explorados inspirados em São Francisco. Essa ideia “progressista” que nos unia nada tinha a ver, porém, com o “progresso” sem justiça mancomunado com a “ordem” autoritária da tal “Ordem e Progresso” que hoje virou arma e bandeira dos pseudonacionalistas fardados de verde e amarelo.
A ultradireita teofascista de agora , embora queira ditadura, já não emprega mais a palavra de ordem “o Brasil é o pais do futuro” . Agora eles querem que o Brasil seja o país do passado, um passado anterior ao Iluminismo. E ao invés do “ame-o ou deixe-o” , agora a insana palavra de ordem parece ser: “ame nosso messias-capitão , diga amém para ele, ou então receba nosso ódio e morra.” Isso é trágico, porém risível... A força deles se alimenta de quererem nos provocar medo. Mas no fundo são covardes, a começar pelo seu líder-louco .Eles só podem ter mesmo o passado e seus fantasmas, o futuro nunca será deles.


sábado, 18 de abril de 2020

o monturo


No poema “O guardador de águas”, o poeta Manoel de Barros descreve o seguinte acontecimento: sob um monturo de restos de folhas que já foram árvore, de cacos de vidro que já foram garrafas de vinho e de farrapos de roupa que já foram vestes de festa , sob tal monturo que a natureza recolheu sem lamentar-se pelo que já foi e passou, no ventre desse casulo úmido , dentro do monturo, uma semente que ali estava sufocada despertou: libertou-se dela um broto, como se fosse um dedo, depois um caule, como se fosse um braço, por fim uma folha como mão escavando. Uma linha de fuga foi-se desenhando, na força de uma vida nova a furar o passado de coisas mortas. Inventando uma saída, uma porta, nasceu do monturo um lírio.

"Poeta é ser que vê semente germinar" (Manoel de Barros)





- a fala da Bethânia é um trecho deste belo filme/homenagem feito pelo Gabraz Sanna ( o filme está inteiro no youtube):

sexta-feira, 17 de abril de 2020

espinosa, roza & ulpiano


Espinosa dizia que quando a morte leva um recém-nascido, a morte leva a maior parte do que o recém-nascido foi. Mas a morte não tem poder para  levar tudo, a morte não é absoluta: "ab-soluto" , "o que não é soluto", "o que não se dissolve." A morte é soluta, e não absoluta. Absoluta é sempre a vida, apesar das forças da morte , mortes físicas ou simbólicas, que tentam dissolvê-la. Assim, mesmo no caso de um recém-nascido, a morte não leva tudo: fica a lembrança . O filho nasce primeiro no desejo dos pais de concebê-lo. Mesmo que o filho não nasça, o desejo  comum que   uniu dois desejos, tornando-os um, esse desejo  foi vivo e não morre, pois é dele que pode nascer um outro futuro filho. Assim, diz Espinosa, quando a morte vier levar aquele cujas palavras e ações  afirmaram  a vida absoluta com a máxima potência que pôde,  deste a morte  levará apenas a menor parte, pois a maior parte daquele que assim viveu continuará a viver na vida daqueles que ele afetou, ensinou, amou  e fortaleceu.

Às memórias de Luiz Alfredo Garcia-Roza e Cláudio Ulpiano.




quinta-feira, 16 de abril de 2020

ao mestre



Dia desses, numa manhã muita bonita, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo. Ele tinha os cabelos muito brancos, como neve a adornar altos picos. Aliás, creio que apenas em homens elevados, e que auxiliam os outros a se elevarem, deveria nascer tal cobertura branca.
Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito eu não dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber que tal palavra ainda em mim vivia à espera de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia. Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto, junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou. Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!!!”. Aquele senhor era um querido professor que tive há muito tempo. Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para mim, encontrando a minha que já lhe estava estendida desde a primeira aula dele que assisti . Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios. Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: "Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?”
“O aprender vem antes do ensinar”, dizia Deleuze. O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou lições que não estão apenas em livros. Creio que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive apenas fora, ele passa a viver dentro da gente, e com ele continuamos a aprender mesmo enquanto ensinamos. Assim, apenas sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim depois que nos despedimos naquela manhã ensolarada, pois sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu desde que , com suas aulas, em minha vida entrou . Quanto mais o tempo passa mais se aviva em nós o que tem valor e mereceu ser aprendido .
O nome do inesquecível mestre: Luiz Alfredo Garcia-Roza.

( escrevi este texto há cerca de dois anos ao encontrar o querido mestre . Hoje , dia 16/04/2020, a dor nos pegou:o mestre nos deixou...Porém ele permanecerá em suas obras e na vida de muitos que ele cativou e potencializou. Minha eterna gratidão, mestre!)







os dois pães

Certa vez perguntaram a Diógenes Laércio qual o maior bem que lhe trouxe a filosofia. Diógenes respondeu repetindo as palavras que ouviu de seu mestre: “A filosofia me ensinou a conversar comigo mesmo.” Uma conversa nunca é um monólogo. Assim, para conversar consigo mesmo é preciso criar em si algo além do próprio ego. Nunca uma conversa pode acontecer entre inimigos, pois inimigos não conversam: atacam-se. Assim, a conversa consigo mesmo exige que nós não sejamos nossos próprios inimigos. Também os bajuladores não conversam: eles apenas se autoadulam querendo tirar proveito um do outro. Por isso, um narciso que se autoadula nunca conseguirá conversar consigo mesmo. Uma conversa não é apenas fala, ela também é escuta. Assim, aprende a conversar consigo mesmo quem se põe à escuta também daquilo que não consegue dizer a própria fala, como o inconsciente do corpo. Inclusive, um bom conversador, dizem, é quem sabe escutar. Conversa melhor consigo mesmo aquele que traz dentro de si vários. Fernando Pessoa, por exemplo, criou poesia da conversa com seus múltiplos heterônimos. Uma conversa consigo mesmo, portanto, nunca é uma conversa envolvendo apenas um eu e um outro, mas um nós heterogêneo e multifacetado. Uma conversa consigo mesmo nunca é um solilóquio ensimesmado, pois conversa autenticamente consigo mesmo quem conversa com a humanidade, com o cosmos, com os seres vivos, com o futuro e com o passado, mas sobretudo com o presente, procurando meios para mudá-lo. A conversa consigo mesmo nunca tem fim, nunca há uma verdade final a ser alcançada que nos ponha enfim mudos e "acostumados" ( "acostumado" , segundo Manoel de Barros, é o estado mental costumeiro dos acomodados) . Toda conversa visa produzir “companhia”. Essa palavra, assim como “companheiro”, originam-se do termo latino “compane”. De “pane” vem “panificação”, pois “pane” é “pão”. “Companheiro” : “aquele com o qual dividimos o pão.” Há o pão que alimenta o corpo. Quando este falta, vem a fome. Maria Antonieta, zombando da fome do povo, disse: “Não têm pão? Que comam brioches!”. Então, os explorados perceberam que precisavam ser companheiros e dividir o pão da justiça, para assim lutarem contra a tirania que lhes impunha submissão e fome. Mas há também o pão que alimenta o espírito : a falta desse pão mata o que em nós é pensante . Uma conversa consigo mesmo visa produzir em nós mesmos um “devir-companheiro”: somente sendo para nós mesmos companhia podemos aprender a ser companheiro dos outros, para matar a fome em nós dos dois pães.




terça-feira, 14 de abril de 2020

acabou chorare...



"Descanse tranquilo onde cantam,
  os maus não cantam."
                                    (Schiller)



Esse cantar ao qual se refere o poeta Schiller , cantar este que os maus não cantam, nasceu com Orfeu, o arquétipo dos poetas. Certa vez as Eríneas ( "éris" em grego é "ódio") queriam que Orfeu se submetesse a elas, para assim pôr sua arte a serviço do ódio, da barbárie e da incivilidade. Como Orfeu se negou a servir à ignorância, as Eríneas então o prenderam e cortaram sua cabeça, achando que assim o derrotariam. Mal deram uns passos, porém, elas ouviram novamente o poeta cantando, e ainda mais forte. Elas se voltaram e viram que o poeta ainda resistia cantando, e cantava apenas com sua cabeça. Simbolicamente, esse canto significa que o poeta individualmente morreu, mas eternamente ainda continuava a cantar por intermédio de suas ideias. Em cada poema, em cada música, em cada voz que canta a vida, a voz de Orfeu ainda persevera.





















sábado, 11 de abril de 2020

fausto e o mercador


Mefistófeles: “ - Vim cobrar aquilo que, por contrato, você me prometeu dar em troca dos meus favores .”

Fausto :  “- Mas o que lhe prometi? Assinei sem ler...”

Mefistófeles:  “- Fique tranquilo, quero apenas uma parte de sua alma: quero seu caráter. Você poderá  ficar com seu ego : sei como soprar   dentro dele  para inflá-lo. Também vou lhe ensinar a como usar as palavras para fazer suas mentiras parecerem  ‘Verdade’. Vou lhe ensinar essas e outras artimanhas, mas seu caráter será meu...”

Fausto: “- Serei então um ‘sem caráter’?”

Mefistófeles: “- Por que o espanto? Sabe aquele banqueiro rico  que explora muitos e os tem na  mão? Pois é ele que está nas minhas mãos e ainda as beija  em agradecimento pelos meus préstimos . Sabe aquele juiz que posa de moralista ? Esse sonso  nunca dá uma sentença sem me consultar, ele também é meu. Sabe aquele religioso que prega dentro de um imenso  templo de ouro  e  diz se ajoelhar diante de Deus? Mentira, é diante de mim que ele se ajoelha. E esses políticos que se elegem usando o nome de Deus são os que mais servem a mim. Por que você resiste? Por que insistir com esse heroísmo ético !? Abandona a filosofia e a ciência que eu  farei de você o “Oráculo” e “Guru” de muitos que lhe dirão “amém”  em tudo. Comigo você ficará rico, terá fama e poder....Desde que seu caráter seja meu.”

Fausto: “- Mas e Margarida? Não quero perdê-la, estamos noivos...”

Mefistófeles: “- Vou comprá-la agora!”

Mefistófeles encontra então Margarida e oferece tudo o que pode oferecer para assediá-la. Dela, porém, ele ouve apenas uma palavra dita com firmeza: “NÃO”. Derrotado, com o rabo entre as pernas , foi-se embora o mercador de almas...

( na mitologia germânica, “Margarida” é um dos nomes da “Alma”, assim como “Psiquê” em grego. “Mephisto”  é um filme que mostra como o nazismo ascendeu na Alemanha comprando/seduzindo  mídias, parlamentos, mercados , igrejas e partes  tolamente  crédulas  do povo. “Mephisto”, ou “Mefistófeles”, é um dos nomes do Diabo ).





- a história do "Fausto" tem muitas versões, sendo a mais famosa a do poeta Goethe. Gosto muito desta versão da história interpretada por Pessoa: 



no texto do Goethe, o poeta diz que o Diabo perde porque ele subestima certos aspectos que existem no homem. Goethe resume isso no famoso verso: "Por mais longe que a razão nos leve, leva-nos mais longe o coração." Na verdade, então, nesse trecho  do filme "O advogado do Diabo" , no qual o Diabo se diz "um humanista",  essa afirmação é expressão de um dos traços mais característicos do Diabo: a zombaria.