quarta-feira, 27 de abril de 2016

manoel de barros: a empoética terapêutica




(trecho do livro)

Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.

("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)


( Ternura, choro de K-Ximbinho, por Conjunto Época de Ouro)




domingo, 24 de abril de 2016

manoel de barros: "o andarilho não precisa do fim para chegar"

"Poeta:
sujeito com mania de comparecer
aos próprios desencontros."

Manoel de Barros




Deixe-me ir, preciso andar...
Se alguém por mim perguntar,
diga que só vou voltar
depois que me encontrar.

Cartola


A linha de fuga é produção de uma desterritorialização
que se reterritorializa em um novo território  que não lhe pré-existe.

Deleuze & Guattari



O andarilho

“O andarilho sabe tudo sobre o nada" ( 1997, p. 47). Este nada é o dos nadifúndios .Ele anda "atoamente" , pois “vagabundear é virtude atuante para ele” ( 1997, p. 47). “Vagabundear” provém de “vaga”, “onda”. O vagar das ondas. Edmond Husserl, em seu livro Origem da Geometria, afirma existir uma proto-geometria cujo objeto de estudo são as “essências vagas”, também chamadas de “essências anexatas”. Não se deve confundir o anexato com o inexato. O anexato é inexato por essência, e não por acidente. Ele não é, portanto, uma cópia imperfeita do Exato. O anexato possui uma forma, mas é uma forma "vaga", e “vaga” é o nome que também se dá ao ritmo do mar, enquanto fluxo. A vaga expressa um ritmo, mais do que um ir em linha reta. O anexato é, como diz Manoel de Barros, uma "forma em rascunho".A forma de tudo aquilo que é anexato constitui uma passagem onde o que lhe está dentro lhe desborda, posto que em intensa variação.Enquanto a forma precária do inexato tende a se apagar, a forma em metamorfose do anexato não pára de se reinventar.
Os andarilhos não são exatamente os que andam em estradas já prontas, eles não são peregrinos ou meramente viajantes. Os andarilhos são os que inventam caminhos, sobretudo os caminhos que inauguram sentidos para a linguagem: sinto que “a estrada bota sentido em mim" ( 2010b, p. 59); o sentido está no meio da estrada, e não no seu começo ou fim.  E é talvez por isso que “o andarilho não precisa do fim para chegar”,(1996 p. 71).Os andarilhos “carregam a liberdade deles nos passos que não têm onde parar” ( 2010b, p. 168): “no fundo os andarilhos só estão apalpando a liberdade. O caminho deserto deles é viver debaixo do chapéu” (2010b, p. 124).O “caminho deserto” é um “espaço liso” no qual se produz uma linha de fuga (DELEUZE E GUATTARI, 1980).Os andarilhos não são retirantes ou imigrantes, eles são itinerantes: eles inventam itinerários.O andarilho exerce a "pré-ciência da natureza de Deus". A "pré-ciência" é conhecimento das "pré-coisas", é conhecimento daquilo que é forma em rascunho.



- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.


Francis Bacon Study for a Portrait of Van Gogh II, 1957













O andarilho abastece de pernas as distâncias
Manoel de Barros

sábado, 23 de abril de 2016

para além do preto e do branco...

Que pobreza, meu deus:
reduziram tudo ao preto e branco....
Mas há mais de branco neste preto
e de preto neste branco
do que imaginam aqueles que reduziram tudo ao preto-branco.

As cores ficam para depois, dizem eles.
Para quando exatamente?
Para depois que o preto destruir o branco,
ou o branco ao preto.
Mas terá de ser uma destruição completa,
dizem eles,
sem deixar resíduo do outro,
sem deixar memória, lembrança , rastro...

Assim, quando não houver mais branco para o preto odiar,
e preto para o branco,
somente assim o ódio se extinguirá
e dará vez à Verdade toda branca , se o branco ganhar;
ou toda preta, se o preto vencer.

Enfim, o Paraíso monocolor? Não...
Pois ficará a Verdade do Branco à espreita de divergências pretas,
ou a Verdade do Preto à espreita de dissensões brancas.
 E o branco justificará a impossibilidade da cor em razão do perigo do preto;
e o preto dirá o mesmo....
De tal modo que um precisa do outro ,
como o reflexo precisa do espelho.

 Mas a despeito deste preto-branco
pelo poder incolor,
a vida  reinventa-se múltipla,
mesmo na dor,
e em cor resiste na mão e na vida
dos que estão na margem.











sexta-feira, 22 de abril de 2016

manoel de barros e as "formas em rascunho"








Se  a gente não der o amor,
ele apodrece em nós.

 ***     ***

A maior riqueza de um homem é sua incompletude.

***   ***  
   
Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes do que as paredes
dos grandes prédios do mundo.

     ***  ***

O menino sentenciou:
se o Nada desaparecer a poesia acaba.
E se internou na própria casca ao jeito que o
jabuti se interna.

                                                                                                                                              ***         ***            
                                                                               Não sou da informática:
sou da invencionática.

Manoel de Barros

                                                   

Segundo o poeta Manoel de Barros, somos “formas em rascunho”.Somente quem está pronto se assume assim, como “forma em rascunho" de si mesmo. Pronto não como o que está acabado e não muda mais,  mas pronto como aquilo cujo essência é o produzir e o autoproduzir-se,o autoinventar-se.Se o viver é processo, somente como forma em rascunho estaremos na vida não como a pedra está no rio, ficando imóvel enquanto ela, a vida,  passa. Uma longa tradição nos inculcou que todo rascunhar existe em razão de uma  forma pronta : o “Modelo”, e que , este sim, dá a ver o que de fato somos. Inclusive, esta forma pronta precederia ao rascunho, como a árvore ao grão, como o adulto à criança. Mas só como forma em rascunho aprenderemos a não opor mais  a verdade ao erro, o ensinar ao aprender, a forma ao processo, o modelo à invenção.A forma em rascunho refaz seus contornos em razão de uma potência que lhe é imanente, mas que não lhe é um centro, posto que é abertura.Tudo é forma em rascunho para quem aprende a  viver as coisas de dentro, como processo e metamorfose: o amor, a arte, o pensar, o corpo, o desejo, o cosmos inteiro...tudo é forma em rascunho que de dentro se vive e se afirma.



segunda-feira, 11 de abril de 2016

fiar junto

Pensamos em novelo.
Maria Gabriela Llansol

“Con-fiar”: fiar junto. Fiar é tecer.Fiar não é traçar linhas retas no espaço, fiar é inventar linhas de fuga que dão sentido ao tempo. Ariadne fiava o fio que vencia o labirinto onde o monstro morava, fio da sobrevivência, pois esse fio toma a forma do labirinto sem se perder nele, posto que  é maior do que ele.O fio de Ariadne nasce de um novelo, não nasce de régua e compasso.
Diz a exata ciência que as linhas retas são a menor distância entre dois pontos imóveis. Mas o fio que que tece narrativas alcança os mais distantes pontos e os conecta, os aproxima, para assim criar elos, ampliando-nos até eles, mesmo que eles estejam em espaços que ainda não existem: espaços desejantes de invenção e utopias.
Etimologicamente, novelo é: novo elo. Traçamos fios juntos para criar novos elos.Essa é a razão de ser do novelo: não acúmulo de linha, mas manancial de novos elos, novos agenciamentos. Mesmo um objeto pode ser um novelo, um novo elo, desde que nos coloquemos como agentes produtores dos fios , fios de sentido, que nascem deles.Um objeto não é apenas uma coisa que se usa, ele pode ser um agente de novos elos.
Arthur Bispo do Rosário viu-se preso no labirinto de seus delírios. Porém,o fio da arte o fez achar uma linha de fuga : em cada lençol , em cada roupa, em cada coberta ou casaco que lhe davam no incomunicável quarto do asilo , ele soube achar nessas coisas o novelo ainda ali vivo; na coisa pronta ele soube descobrir o processo que as fez nascer.Não havia mais camisa ou lençol, mas um novo elo para ele se achar no mundo, achando-se em si mesmo. Ele viu o novelo que  ainda vivia nas coisas  como memória, imaginação, potência, invenção, virtualidade, enfim, vida...Sua bordadura poética fez viver de novo o fio que se fiou nas coisas, para assim fazer viver no finito o infinito novelo de qual todas as coisas saíram. E quem  a isso vê, produz em si mesmo uma clínica, uma saúde.Dos fios desfiados de camisas e lençóis já quase em farrapos, Arthur soube com eles fiar as bordaduras de uma existência nova. Dos fios de um uniforme que vestia o louco, ele desfez a forma, libertou o fluxo dos fios, e com estes  inventou a capa multicolorida de um rei.

                                            (Arthur Bispo do Rosário)

São os novos elos que nos possibilitam criar linhas de fuga que vencem os labirintos.Mas não se fia esse fio sem o confiar nos elos, não se fia esse fio sem o agenciamento que todo con-fiar é.
Toda ideia é um fio que se fia junto, e o novelo do qual ela nasce é o pensar. Pois é isto o pensar: ele nada tem a ver com um ponto-ego, dado que  ele é prática de fazer novos-elos, de os criar.
O   amigo  fia a ideia  da amizade ao crer no amigo; o amante  fia o amor para amar a quem ele se une em elo. É a justiça, a ideia da justiça, que dá ao juiz o poder que ele tem, não sua toga ou paramentos: a sentença  somente é justa se for  um fio que se puxa do novelo da justiça.
Os bons encontros de que fala Espinosa são fiações, bordaduras, tessituras das relações que nascem do Novelo infinitamente infinito da Natureza.


              ( detalhe de Estandarte, obra de Arthur Bispo do Rosário)










terça-feira, 5 de abril de 2016

"é preciso transver o mundo" (Manoel de Barros)







Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu  - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.

sábado, 2 de abril de 2016

a ideia de democracia em espinosa

O pensamento político de Espinosa tem um ponto de apoio fundamental: a ideia de um poder instituinte originário. Somente o poder instituinte originário é, de fato, poder ontológica e democraticamente  afirmado. O poder instituinte antecede o poder constituinte: aquele institui, primeiramente, a si mesmo como fonte de todo poder instituído. O poder instituinte é sempre afirmação, jamais negação: ao afirmar-se, ele já faz desparecer todo instituído que o nega, pois nada tem mais força do que o poder instituinte originário, quando este se une a si mesmo. Afirmando-se, ele também se torna constituinte, para assim constituir novas formas de positividade jurídica e social .Todos os outros poderes ( do juiz, do policial, do deputado, do chefe do executivo, etc.) são poderes derivados, isto é, eles não existem por si: eles  somente podem ser exercidos quando não se colocam contra ou ameaçam o poder instituinte originário. Mesmo a lei é um poder derivado. Juízes servem a um poder derivado ( o poder da lex), parlamentares recebem um poder que não lhes pertence e que, por isso, pode lhes ser tirado pelo poder instituinte originário, e tão somente por este ( ou em casos previstos em lei ou regimento).
O poder instituinte é “originário” não porque esteja no passado distante. Na verdade, ele não está no passado histórico ou existe enquanto promessa de um futuro igualmente histórico.  O poder instituinte cria história, desfaz outras, em razão de um tempo que é o das  rupturas inovadoras. Ele é originário em razão de cada um ser parte dele, porém não enquanto cada um é professor, aluno, filiado a partidos ou sindicatos, igrejas ou associações. Ele é originário porque antecede a todas essas determinações sociais instituídas. E se alguém é, o tempo todo, apenas o que instituíram  que ele deveria ser, jamais este compreenderá ou fará parte do poder instituinte originário, ou compreenderá a sua força produtora. O poder instituinte originário  torna a todos artistas, mais do que teóricos ou juristas. Ninguém é, por natureza, médico, policial, deputado, presidente, etc. Tais designações são instituídas socialmente. É  o poder instituinte que institui a sociedade onde passarão a existir designações e práticas instituídas.   Tudo é instituído, menos o poder instituinte. Tudo é produzido, e assim afirma o poder instituinte do qual nasce.Nenhum outro poder  antecede o poder instituinte originário, assim como nenhuma vida pode anteceder a vida , a não ser sendo mais viva.  Manoel de Barros diz que tudo o que vem primeiro “tem primazia”. O poder instituinte originário é  o poder da primazia, e não dos privilégios.
Para a maioria dos pensadores políticos modernos que inspiraram  tanto  liberais  quanto  socialistas , o poder político nasce com a renúncia ao direito natural. Mas em Espinosa o direito natural  é irrenunciável: ele é o direito que precede o chamado direito do Estado , suas leis e sistemas de representação. O povo que renuncia ao poder de instituir torna-se servo consentido da potestas que o enfraquece e entristece.
O direito natural , em Espinosa, tem outro nome: ética. “Direito natural” não significa a existência meramente biológica ou  material. À época em que Espinosa escreveu e viveu, “natureza” era entendida como sinônimo de essência. E a essência de algo é o princípio que a faz ser, existir, agir. Assim compreendida, a natureza implica o corpo e a mente. Outra distinção importante feita por Espinosa é aquela que envolve duas noções: potentia e potestas. Esta última palavra pode ser traduzida por “poder”. Contudo, perde-se completamente o sentido da obra política de Espinosa quando também se traduz potentia por poder.Em latim, potentia também tem por sinônimo jus,  ao passo que lei é a tradução de lex. O direito natural não é lei que obriga isto ou aquilo. O direito natural também não é direito à alguma coisa. O direito natural é a própria existência que, por existir, já é direito a si mesma. Ninguém existe por obrigação, mas por uma espécie de necessidade que não se opõe à liberdade. É a lei instituída pelos homens que determina o que é justo ou injusto. Existir, porém , não pode ser algo justo. Se o fosse, haveria a possibilidade de um existir injusto. O existir é. Ele não é justo ou injusto, embora isso não signifique que existir seja indiferente ao justo e ao injusto que as leis determinam. Pois o injusto é o que diminui o direito natural, ou existência, de cada um ; o injusto é o que ameaça a potência de cada um.
A ética não pertence ao campo dos valores dicotômicos, como bem e mal, justo e injusto, lícito e ilícito. A ética é o campo da existência. Uma existência não é justa ou injusta, ela é potente ou impotente. Ser impotente significa: ser menos do que se pode ser.
 Segundo Espinosa, o homem deseja mais mandar do que obedecer. Por exemplo, a criança cresce querendo mandar, e somente o aprendizado, e não o mero castigo,  a ensina a obedecer. Mas ela não é má por querer mandar , tampouco há mais virtude em obedecer do que em mandar. O viciado obedece ao vício, preterindo o mandar em si.O falastrão obedece sua língua, mas quem sabe  guardar silêncio manda em sua boca. O homem livre não é aquele que manda nos outros, o homem livre é , antes, aquele que manda em si mesmo, que comanda a si mesmo, que tem plena posse de si. Mandar é exercer, agir; obedecer é ser passivo. Todos os homens aspiram a tal poder de comandar, embora confundam como conquistá-lo e exercê-lo, pois imaginam que o poder sobre si virá mediante o poder sobre os outros.
O que vale para um homem vale igualmente para um partido: um partido que não comanda a si mesmo quererá poder para mandar nos outros, subjugando-os. E estes outros partidos também acharão que ter poder é mandar nos outros através do Estado conquistado. Em Espinosa, a lei é um comando, nunca um comandado. Ela é um comando porque expressa um poder originário que a instituiu para ser expressão dele. Se a lei  for apenas comando de alguns, destes ela será uma comandada: ela perderá sua atividade e será, ela própria, um padecer de um poder que se colocará acima dela. Além disso, ela será vista apenas como ordem por aqueles que não a comandam. Contudo, se tal acontece, o problema não está na lei em si, mas naqueles que aceitam , sem resistência, serem comandados, submetidos àquilo que os enfraquece.
Espinosa acredita que o poder social nasceu para que os homens mandem em si mesmos sem que esse mando seja opressão ou repressão de uns poucos sobre muitos ou de muitos sobre poucos. Assim, o único poder que possibilita aos homens mandarem em si mesmos, sem que apenas alguns mandem e outros obedeçam, esse único poder é o da lei, da lex. Somente através da lei os homens mandam em si mesmos e , mandando, são livres, de tal maneira que desobedecer a lei é desobedecer a si mesmo através de uma burla feita a todos. Mas a lei, em Espinosa, não é todo o direito, ela é apenas instrumento do Direito, pois o único direito é o natural.
 A vida social nasce quando delegamos ao Estado o poder de agir por nós. Mas apenas certas coisas podem ser delegadas,  outras são indelegáveis. Nós delegamos ao Estado o poder de agir acerca de tudo aquilo que envolve a sobrevivência do corpo. Todavia, é indelegável o que concerne à existência do espírito, embora as duas existências, a do corpo e a do espírito, estejam interligadas. Delegar não é renunciar.  
As pessoas que recebem nosso poder de agir têm, por isso mesmo, o poder social. Contudo, elas também existem e , por existirem, não renunciam ao direito natural, à potência. Mas quando tais pessoas se valem do poder que receberam e, burlando as regras, tiram o máximo proveito para si mesmas, tais pessoas se colocam em uma obscura região que já não é mais a do direito natural, mas que ainda não é o social.  Essa região obscura, nem jus e nem lex, é o estado de natureza: este não é natural (potência) ou social ( potestas), ele é pré-social. Nele imperam as paixões tristes.Ele é um querer mandar na própria lei, ou um querer dobrá-la usando a força, seja a força física ou a força da moeda corrompedora.
Por natureza, a criança quer mandar, e nisto não há mal, pois não há mal na natureza. Educada, ela aprende a obedecer a lei , compreendendo esta última como comando dela mesma, de sua natureza. Mas o que caracteriza o estado de natureza é que, nele, um indivíduo sozinho , ou um grupo de indivíduos, imagina que pode  desfazer o poder da lei sem evocar a potência da ética. Somente o povo pode,   afirmando a si mesmo,  desfazer o comando da lei, quando esta já não é mais o seu próprio comado democrático, plural. Quando um ou alguns querem fugir da lei, tal ação configura crime. Mas quando o povo desfaz a lex em nome do seu direito, tal ato é uma afirmação da liberdade. Por esse motivo, a causa da corrupção e outras mazelas não é a natureza, tampouco a sociedade . A causa dessas tristezas e ódios é o furtar-se à natureza , bem como o querer comandar sem ser por intermédio das regras .  O direito natural é o campo da potência, a esfera social é o lugar das regras, já o pré-social é a obscura zona da qual alguns se servem para negar ética e regras, jus e lex.Mas quanto mais alguém deseja esconder-se nessa zona, mas este “esconder-se” aparece.
Assim como o direito natural é insuprimível,  a não ser destruindo a vida de alguém ou cometendo o genocídio de um povo,  também não se pode instituir  um campo social imune à possibilidade de alguns viverem no estado de natureza. E é para isso que existe a lex: para a defesa da pluralidade democrática. Ditaduras e fascismos criam apenas indivíduos dóceis ou dissimulados, pois toda ditadura e fascismo crê que o homem é um ser cuja natureza é má. Caberia a um Estado forte corrigir a natureza torta do homem, e extirpar os “incorrigíveis”.
Para Espinosa, a natureza humana não é torta ou reta: ela é. Além disso, a questão fundamental não é defender os contratos, mas sim garantir que eles possam ser suspensos, caso o direito natural de todos corra risco. O direito natural corre risco quando um grupo pretende destruir o instituído pondo-se no lugar da pluralidade instituinte.Apenas um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, não têm poder para suspender o instituído pela multiplicidade instituinte. Somente  a potência instituinte tem esse poder. Por outro lado, não é por um contrato que a sociedade nasce, ela nasce por uma delegação de um comando, e não pela obrigação de obedecer a contratos.
Os contratos jurídicos são precedidos por um contrato social, assim professam os filósofos políticos clássicos. Ora, todo contrato envolve, no mínimo, duas partes, separando-as. Espinosa recusa esse modelo contratualista como fundador do liame social. Pois se a sociedade nascesse de um contrato,  de um lado se encontraria  o povo enquanto multiplicidade heterogênea, e do outro estaria o Estado (o "Um"). Mas como poderia haver contrato entre o povo e aquilo que nasce por delegação dele? Não pode o mais potente se submeter ao menos potente. Mais potente, em Espinosa, é quem é mais direito. 
Um partido, um juiz, um presidente, um deputado, etc.  recebem um poder que somente pode existir em razão da potência ou direito natural do povo ( embora a palavra "povo" não traduza muito bem a multiplicidade instituinte que constitui a multitudo). Quando  o direito instituído perde sua relação com o direito natural ( que é, inclusive, o único direito de fato ), Espinosa afirma que é preciso, nesse caso, fazer retornar  o poder àqueles que , ontologicamente, o possuem : o povo. O povo não é uma classe, o povo é uma multiplicidade heterogênea. Aqueles que mais ambicionam existir como um todo à parte, seja sob a capa de um partido ou de uma instituição do Estado, estes sempre temem a multiplicidade, e contra ela sempre acham justificativas para evitar que o poder volte à potência que o gerou.
Em certas situações onde dois ou mais grupos querem existir à parte, pondo em risco o existir plural de todos, nessas situações, preconiza Espinosa, é preciso desfazer a potestas instituída. Porém não a serviço de um grupo ou outro, mas a serviço do povo, para que novamente se ordene, planeje, proponha-se, através de ideias , e não da força, outras maneiras de instituir nova potestas por intermédio de meios legais, incluindo eleições gerais. Pois o poder nunca é posse ou um fim em si, ele é produção de meios que favoreçam a existência. Não há direito natural que possa existir sem uma sociedade, embora toda sociedade exista em razão de um direito natural que não deixa com que ela se feche ou se autodestrua em virtude de bandidos e corruptos.
Quando uma sociedade perde o vínculo com a ética, isto é, com o direito natural enquanto afirmação da heterogeneidade, quando isso acontece grupos em confronto arvorarão para si uma razão exclusiva, em guerra civil com a razão do outro grupo .Mas a razão nunca briga consigo mesma, apenas paixões brigam entre si, sobretudo as paixões tristes do ódio e da vingança  E mais violento será o confronto quanto mais todas as cores possíveis forem reduzidas ao preto e branco, ao sim e não, ao pró ou contra.

Para Espinosa, existe uma alegria passional que tem por contrário um ódio igualmente passional. Contudo, existe ainda uma alegria ativa que não tem contrário, pois é afirmação da própria vida múltipla. Do mesmo modo, existe uma democracia representativa que tem por contrário tiranias e fascismos de toda ordem. Mas existe ainda uma democracia originária, voz e expressão da multiplicidade ontologicamente existente. Essa democracia originária não é representativa: ela não pode separar-se de si mesma para, em outro plano distante de si, colocar-se como representante de si mesma. Essa democracia originária não é representativa, ela é produtiva: ela produz , sobretudo, os meios que impedem que ela seja negada, dividida em duas partes ou enfraquecida. A democracia originária produz tão somente uma coisa: democracia, pois a democracia é, ao mesmo tempo,  produtora e  produto dela mesma.