sábado, 25 de março de 2017

o poema de espinosa

Em Espinosa, tudo é luz.
O aumento de potência é um esclarecimento ( es-claro: tornar mais claro);
a diminuição de potência, um assombreamento.
Deleuze

Quando se fala muito claramente,
fala-se muito infinitamente.
Maria Gabriela Llansol

       Segundo Espinosa, o infinito somente pode ser alcançado pelo intelecto. Não quando este conta, mede ou calcula. Tampouco quando ele apenas raciocina ou teoriza. O infinito, Deus, somente pode ser alcançado pelo amor intellectus dei , pelo amor do intelecto a Deus. O intelecto apenas consegue alcançar o infinito quando ele aprende a exercer um tipo muito singular, e raro, de amor. O intelecto também pode amar. Se ele não chega a esse amor, não será um intelecto completo, dele não nascerá um conhecimento como expressão de sua máxima potência.
Eis então a difícil tarefa do intelecto: somente ele é o instrumento para nos fazer compreender Deus (somente ele, e não a imaginação). No entanto, como é difícil ao intelecto amar...O intelecto crê que amar é coisa apenas do corpo e da sensibilidade. E que amar afasta-nos da objetiva verdade.
Mas se o intelecto aprender esse amor que somente ele pode, aprenderá que há  realidades mais verdadeiras do que aquelas que ele alcança apenas com a objetiva verdade. Um intelecto que a esse amor aprende, metamorfoseia-se e se torna mais do que pode compreender todo intelecto que não ama. O intelecto assim transfigurado já não será diferente de um poeta. Não um poeta apenas de versos, mas um poeta do pensamento e das ideias, como foi Espinosa.
     No Iluminismo, é a razão, e tão somente ela, a fonte de Luz, como um sol.Em Espinosa, diferentemente, a Luz é o infinito mesmo, e se assemelha mais ao clarão do relâmpago. A Luz é o próprio Amor, como relâmpago irrefreável que desfaz a noite . A razão científica é o intelecto refletindo a Luz, como um espelho.Um espelho reflete o que nele toca. Refletir é devolver o que se recebeu. A razão devolve o Amor que recebe, pois é graças à Luz que ela conhece: a Luz devolvida ilumina o mundo a conhecer.  É pelo seu poder de refletir que a razão conhece o mundo externo, desde que se faça dia .  
     Mas o intelecto  filosófico alcança o máximo do que ele pode quando não apenas reflete a Luz, e sim a absorve : faz-se nele então dia, mesmo que ao redor seja tudo noite. Ele a absorve para conhecer a si mesmo, e não apenas ao mundo externo: quanto mais translúcido, mais o intelecto se conhece absorvendo a Luz que é Amor lhe esclarecendo, clareando. O Amor assim conhecido lhe está dentro e lhe está fora: é o Todo, é Tudo. Relâmpago Absoluto, no clarão e na velocidade.Todas as coisas que a razão conhece são Luz refletida. Porém, o intelecto filosófico, como instrumento metafísico-poético, absorve a Luz para ser da Luz uma expressão potentemente viva:"figuras de luz e não mais figuras geométricas reveladas pela luz" (Deleuze). Dessa maneira, torna-se o intelecto também Amor, absorvendo-o como Afeto : beatitude translúcida a si, desfazendo toda opacidade, embora não se sabendo tudo o que a Luz-Amor pode. O termo "beatitude" deriva de beatus, que significa "riqueza". Não a riqueza de acumular coisas, mas riqueza de absorver o máximo da Luz , para assim fazer dela a rara salut (saúde) conquistada, afirmada . O intelecto somente alcança o infinito quando o encontra primeiro dentro dele, como clarão que deveio Ideia, para assim desabrir-se , no pensar e  no agir.






(O clarão de Espinosa)



                                 ( "A alma do filósofo - ou Orfeu e Eurídice , de Haydn)

a comunhão




Beleza são coisas acesas por dentro.
Otto

Segundo Espinosa, a diferença que existe entre a ideia adequada e a inadequada é sentida em nós por algo que não é totalmente teórico ou apenas ligado à inteligência livresca, acadêmica. Segundo ele, a ideia adequada “como que nos segura pela mão e conduz”. Espinosa diz isso em sua Ética.A ideia inadequada, ao contrário,  nos isola: nos isola dos outros, nos isola da compreensão, nos isola de nós mesmos, egoifica. Ela nos isola sobretudo daquilo que podemos.
Com-preender: apreender junto. A ideia adequada nasce da compreensão, e compreender é mais do que o mero conhecer de coisas prontas.Assim, a ideia adequada não nos diz,  ordenando: “Eu vou na frente, você vai atrás, me seguindo. E não aceito desvios!Mantenha o foco!”. Ela também não nos diz aonde ir, apenas apontando o caminho e ficando parada, sem nos acompanhar. Diferentemente, a ideia adequada estende a mão, espera pela nossa, e vai junto, ao lado, encorajando que caminhemos com nossas próprias pernas, até que nossos passos compreendam o ritmo dos passos dela e, com esforço cada vez menor, mas sempre com algum esforço, sigamos em frente , ao lado.
Certa vez, antes de começar uma aula, eu estava hesitante, estanquei. Até que uma ideia adequada estendeu sua mão para mim. Então, eu a segurei, nasceu a confiança e , agenciado com a ideia, caminhei.A ideia adequada me auxiliava na compreensão. E toda ideia adequada fornece a compreensão não apenas dela, mas sobretudo de nós mesmos.
Era a minha mão esquerda, a mão do coração, que estava unida à mão  da ideia adequada.Virei para olhar para ela. A minha compreensão dela então aumentou, pois ela também estava de mão dada com outra ideia, e , através dela, compreendi esta outra ideia também. E esta igualmente não estava solitária: ela também estava de mão dada com outra ideia. Minha compreensão então aumentou, pois em primeiro lugar, e antes de tudo, aumentava minha compreensão de mim mesmo. E na compreensão adequada de nós mesmos também deve estar incluída a potência de se conectar a ideias, ao passo que a ideia inadequada nos faz imaginar que podemos agir de forma meramente técnica, sem precisar de ideias.Tanto a ideia adequada quanto a inadequada também se explicam segundo o que fazemos a partir delas. 
Agenciado às ideias, eu aumentava não em tamanho ou prepotência, eu aumentava por dentro e, aumentando eu mesmo, aumentava o caminho, caminho este que se abria para fora, embora não fosse em linha reta. E outra ideia estava unida à esta , e esta  à outra...de tal modo que não havia última, apenas meio, processo...Eu fazia parte de uma conexão de ideias, de um agenciamento de ideias, agenciamento este do qual eu era um elo, e não um ponto cartesiano.
A primeira ideia foi um intercessor para mim. Intercessor é aquele que intercede a nosso favor.Inter: ele se coloca entre.Ele se coloca entre nós mesmos e aquilo que, através dele, desejamos alcançar.O intercessor não nos representa à maneira de um deputado, tampouco nos defende como se fosse um advogado; ele se coloca diante de nós e  a nosso favor. Não a favor de si próprio, mas a favor daquele que o tem como intercessor.Somos nós que nos damos intercessores, mas é preciso que o intercessor seja diferente de nós mesmos.Do contrário, seríamos nós mesmos intercedendo a nosso favor.O intercessor intercede a nosso favor sem esperar um favor em troca.O intercessor nos desabre.Quando nos damos um intercessor, o intercessor intercede a nosso favor e nos faz alcançar realidades que não alcançaríamos sozinhos.O intercessor nos tira do estar sozinho, mesmo que não exista ninguém à nossa volta.Não existe um tipo de ser portando uma etiqueta e dizendo: “eu sou seu intercessor”. Qualquer coisa pode ser um intercessor, desde que interceda a nosso favor, em favor sobretudo daquilo que em nós crê e cria um intercessor.Um poeta pode ser nosso intercessor. Ele intercede a nosso favor pondo-se diante de nós e diante, também, da realidade que alcançamos através dele, e um poeta sempre nos põe diante de realidades que ainda não existem.Um intercessor nunca se põe de costas , à frente ou atrás, mas sempre diante: diante de nós e diante do que não conhecemos, mas que, através dele, nos pomos diante, com os olhos abertos, despertos.
Reparei então que a conexão de ideias se estendia ao horizonte, tornando tudo horizonte, e assim elas me faziam ir para além do aqui e agora.  Eu permanecia ligado ao aqui e agora, contudo o potencializava pelas ideias que se abriam e me conectavam com o horizonte de ideias. Pois as ideias não são muros ou cercas, elas são e formam horizontes, aberturas.

Até que senti, ainda sem olhar, que minha mão direita, que eu supunha sozinha, na verdade não estava só. Havia também outra mão a segurando, de tal modo que eu também conduzia, eu que era, no entanto, conduzido pela conexão de ideias, e não mais apenas por aquela primeira ideia que me tirou  da  limitação. A primeira ideia me produziu um deslimite.Ela foi o agente de uma amplidão. Virei-me então para ver quem segurava minha mão e ia também comigo e, através de mim, alcançava o horizonte.Quem me dava a mão era um aluno que me ouvia.E, ao lado dele, segurando também  sua mão, havia outro aluno. E depois outro, e outro...Até que também vi, fazendo parte daquela conexão que conduz e horizonta , também vi um menino de rua , que largou seu canivete e confiou dar a mão à educação ( que nada tem a ver com apenas ir, obrigado, à escola).Vi também uma criança que, na sua inocência, imaginava que brincávamos de roda ( e , olhando bem, estávamos mesmo a brincar de devir-criança);vi também um índio; vi depois um homem da lei que, largando os códigos, deixou-se conduzir pela justiça; vi ainda  uma borboleta recém saída de sua metamorfose; vi Manoel de Barros também conectado  à nossa conexão : ele sorria com aquela peraltagem... Tentei ver quem era então o último daquela conexão, mas parecia não haver, tampouco havia mais o primeiro.Eu era guiado e guiava, estava no meio.As paredes da sala de aula perderam seus muros, também perderam seus muros os conceitos, de tal modo que entre eles e a poesia já não havia cercas, entre a filosofia e a vida havia comunhão.

terça-feira, 21 de março de 2017

manoel de barros: grãos de sol



Nas fendas do insignificante ele procura grãos
de sol.

***   ***
Poeta é o ser que vê semente germinar.

Manoel de Barros


As ventanias e intempéries podem destruir as flores e os frutos,
mas não a semente que a terra  protege.
Na hora do infortúnio,retorna à tua semente.

São João da Cruz
                                                                                  




No poema O guardador de águas*, Manoel de Barros descreve o seguinte acontecimento: sob um  monturo de restos de ossos , de folhas  apodrecidas,  de cacos de vidro   e farrapos do que outrora respirou e foi vivo, sob tal monturo que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no ventre desse casulo úmido uma semente despertou: libertou-se dela um pequeno dedo, que virou mão tateando, depois braço que achou o caminho. Uma fuga foi-se desenhando, e o que era obstáculo tornou-se escada e sinalização para a vida ir para fora , fazendo-se impulso para a vida que se expandia. Movia esta vida o desejo de ver o sol, o sol que ela nunca viu. Esse desejo perfurou o monturo, abriu-lhe uma porta  e uma janela, pela qual saiu a pequena planta cantando a potência  de existir.

___

O guardador de águas, guardador de fluxos. O fluxos  somente podem ser guardados em um espaço aberto, sem limites determinados, cujas margens sejam limiares que por dentro se podem expandir. Guardar os fluxos é cuidar também deles, a começar pelos fluxos que nos constituem: caute,como recomendava Espinosa; cuidado: como ato  ético e também  clínico. Em Manoel de Barros, a essência não é uma "forma fixa", ela é um "minadouro": dela brota e mina inauguramentos.Guardar os fluxos só o podemos em um espaço múltiplo, ao mesmo tempo subjetivo ( lírico) e objetivo ( prosaico).Guardar as águas é guardar-se nelas, como larva, rascunho, desabrimentos:"estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir"( Clarice Lispector, A descoberta do mundo).A fonte guarda as águas que por ela fluem, que por ela fogem, que a ela afetam. Ela guarda doando,e por isso é fonte, uma vez que guarda as águas que recebeu e recebe do fluxo infinito.A fonte é a indistinção entre o receber e o ofertar.





Van Gogh, O semeador

domingo, 19 de março de 2017

introdução à filosofia





(versão ampliada da Introdução do livro)


                                                                                                    Serás menos escravo do amanhã,
                                                                                                   se te tornares dono do presente.

Sêneca 
                                                                      
                                                                                                                                        O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,
 e significa que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.

Gilles Deleuze

Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.

Gilles Deleuze

                                                            

Dar uma definição rápida do que significa a filosofia não é tarefa fácil. Oriunda do grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é prática apenas  intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”. Deleuze afirma, por exemplo, que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (este termo não significa a mesma coisa que o mero sentimento [2] ). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na Alegria. Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, enfatizam o afeto da Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração. Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer do ódio, da covardia, do medo ou da intolerância. Ao contrário, a filosofia é um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas “tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa que a vitória deve anunciar-se primeiro.
O filósofo não é apenas aquele que domina a prática teórica e metodológica de definir conceitos, ele também é aquele que se afeta pelo que “dá a pensar”, e o que dá a pensar nem sempre pode ser explicado por conceitos. Nem sempre o que dá a pensar já está pensado e definido em livros e teorias. Um filme, uma música, um gesto, uma paisagem , um poema, um acontecimento...também dão o que pensar, ou podem dar o que pensar. Mas nada dá tanto a pensar do que a própria vida.





[2] Ver O que é a filosofia? , de Deleuze e Guattari. 

sábado, 18 de março de 2017

(des)rio de heráclito

Entro no rio que passa.
Já não são as mesmas as águas que me receberam
e as que agora me rodeiam,
em fluida massa.                        

Firmo meus  pés  na areia do fundo,
sob  as volúveis águas.
E em meio à fuga do mundo,
de pé avanço à margem contrária.





sexta-feira, 17 de março de 2017

livro: Conexões...




(trecho do livro, no qual escrevi um capítulo)

      A filosofia é Grega, isto todos sabem. Todavia,  o filósofo vem de uma zona de vizinhança entre o ocidente e o oriente. O filósofo vem das bordas do mundo grego. Se a filosofia tem seu nascimento em Atenas, constituindo assim o primeiro capítulo de sua história, o surgimento do filósofo nos mostra a insuficiência da história da filosofia para compreender essa questão, uma vez que o filósofo vem de fora dessa história: “os filósofos são estrangeiros, mas a filosofia é grega” (DELEUZE e GUATTARI,O que é a filosofia?, p.116). A relação da filosofia com o filósofo pede uma geofilosofia.
     O filósofo não habita exatamente uma fronteira, ele habita limiares. O ser que habita  limiares recebe o nome de daimon [1] Na Grécia, o daimon possuía asas[2]. Eram asas de borboleta, e não de pássaro. Os pássaros já nascem com asas, ao passo que o nascer das asas da borboleta foi precedido por uma metamorfose. As asas do daimon são os atributos espinosistas de um sujeito larvar. O conceito sobrevoa o plano de imanência com asas que são a expressão de uma metamorfose, de uma anexatidão.O conceito também tem asas ( O que é a filosofia?, p 58).
               O daimon é o habitante de um espaço liso que só se deixar habitar como nômade. O nômade não é exatamente quem muito se movimenta de lugar a lugar. Como diz Manoel de Barros, o nômade é um Andarilho, um Andaleço que "abastece de pernas as distâncias" e "mora debaixo do próprio chapéu". O filósofo mora debaixo do conceito que ele cria: o conceito “é vagabundo, não-discursivo, em deslocamento sobre um plano de imanência” ( O que é a filosofia?, p. 187). 

quarta-feira, 15 de março de 2017

o profeta



No osso da fala dos loucos têm lírios.
Manoel de Barros


     Caminhando pelo Centro do Rio vi uma camisa que me chamou a atenção.Ela era vendida em uma barraquinha , dessas que ficam no meio do passeio público.A camisa  era toda preta e havia no peito uma inscrição em verde , amarelo e branco. As letras imitavam pinceladas,como se a camisa fosse um muro de rua, um espaço público, comum. As letras diziam: “GENTILEZA GERA GENTILEZA”.A tal camisa reproduzia dizeres que o Profeta Gentileza pintara em alguns espaços públicos do Rio, sobretudo espaços de travessia e comunhão: as pontes,mais precisamente as pilastras das pontes. Enquanto virtude,a gentileza é a pilastra que sustenta os caminhos e pontes que nos unem:vai de mim ao outro através do nós. A gentileza é o que sustenta ou deveria sustentar os elos, os agenciamentos.Certo ex-prefeito do Rio, não muito simpático a agenciamentos, quis pôr abaixo todos os caminhos e pontes cujo alicerce é a gentileza... Porém, a gentileza sobrevive, ela se convida a cobrir nosso peito sob a forma de uma simpática e simples camisa. Tornada versos em uma  camisa, a gentileza deveio  algo que pode nos vestir, nós que andamos tão nus da gentileza...



Quem mora no Rio e tem mais de 40 anos deve  lembrar-se desse personagem que caminhava pelas ruas do Centro : vestido com uma longa bata branca, como se fosse um profeta, barbas e cabelos longos e grisalhos, um sorriso simpático no rosto, a todos ele dizia, ao mesmo tempo oferecendo flores,sem nada pedir em troca: “GENTILEZA GERA GENTILEZA”.Todos o chamavam de “Gentileza”, o Profeta Gentileza.Ele não anunciava o fim do mundo,mas como o mundo poderia começar, recomeçar: através da gentileza.
     O que impede a gentileza? O Profeta respondia: “O que impede a gentileza é o capetalismo”.O “capetalismo”não é só o capitalismo como sistema econômico. O “capetalismo”, dizia ele, destrói o planeta.E isso ele já dizia bem antes de surgirem os movimentos verdes... O “capetalismo” também é o ódio, a avidez, a vaidade, o egoísmo...E ele dizia tudo isso sem ódio ,ele o dizia nos entregando flores .Os militares o tinham por subversivo.
     "GENTILEZA GERA GENTILEZA”.Este era seu mantra,seu ritornelo. Alguns riam dele e o supunham  louco; outros o tinham por sábio.Mas a todos ele ofertava, sorrindo, as flores.
Pois bem, comprei a tal camisa ( que,por sinal, era de preço bem modesto, ao contrário daquelas que ostentam midiáticas marcas...). Nela há apenas os dizeres, sem nenhuma referência ao autor que os disse e propagou. Talvez por isso, muitos hoje compram tal camisa sem saber ou  conhecer que existiu o  Gentileza. Quando ponho a camisa, e gosto muito de vesti-la, sinto que as pessoas  reparam.Algumas tomam coragem e  chegam a me indagar : “realmente, falta gentileza no mundo...”. Então, puxo conversa com elas e reparo que muitas não sabem que tais dizeres nasceram da boca do sábio/profeta/louco. Nessas ocasiões, muitas vezes me percebo sendo o “mediador” de tal patrimônio.O patrimônio se torna vivo através da minha vida que a camisa no entanto veste.Tal patrimônio começa por suscitar a conversa, é um patrimônio que aproxima, desde que haja a coragem para se ser gentil. A gentileza do profeta não é tão somente   o patrimônio tangível pintado nas pilastras; ela é a gentileza mesma como virtude-patrimônio
Como mostrar /ensinar/comunicar tal patrimônio a não ser sendo-o, esforçando-me para ser gentil?Se eu não o for, estarei apenas vestido com uma camisa que cobre meu corpo.Mas se me esforçar por ser gentil, a gentileza vestirá também minha alma, já não haverá distância entre o patrimônio e minha vida, já não haverá distância entre o conhecimento e o objeto, pois não haverá mais objeto,haverá apenas um único processo ou devir com duas faces: uma produção de singularização aberta à produção do comum ,uma singularidade que se amplia através de um agente coletivo, não egóico.
Kant ,o homem da Razão,ordenava o imperativo: “Sigamos a Lei Moral!”.O louco-gentil nos oferta flores e nos pede apenas gentileza.Não gentileza com ele, pois ele já a possui. Ele pedia gentileza para com os outros e para com a gente mesmo, gentileza com o planeta,gentileza com o conhecimento,gentileza com o cosmos, gentileza com Deus ,incluindo a gentileza de parar de implorar para Ele tantas coisas.
“Gentileza” provém de “gentil”. Em tempos idos, dizia-se “gentil” o homem ( o "gentil-homem") que era nobre,guerreiro,que se pautava mais pelas virtudes do que pelas posses ou pela mera violência. A gentileza é virtude das almas nobres. Gentil era Cartola. Gentil, gente e generoso procedem de uma mesma raiz: "gens", que significa exatamente gerar - como a gentileza que gera gentileza.
     Ser gentil não significa ser "bonzinho".O vaidoso é "bom" com quem o lisonjeia,o avarento é "bom" com quem lhe deixa migalhas, o viciado é "bom" com quem lhe paga uma dose,o tirano é "bom" com os obedientes.Tais "bondades" e outras afins nada têm a ver com gentileza, pelo menos com a gentileza que nos oferta a  travessia ,a diferença, como virtude que deseja o encontro, o agenciamento, a alegria espinosista.
     O oposto da gentileza é a vileza. Há "bondades"  vis, mas nunca pode ser vil a gentileza.Quando  julga apoiado na lei ou na justiça, e não no mero desejo de vingança,o juiz presta gentileza ao condenado; quando o amigo critica a outro amigo apoiando-se na amizade, tal crítica é uma gentileza que fortalece a autenticidade do vínculo; quando o professor corrige uma conduta referenciado na educação, e não no mero poder, ele também exercita a gentileza com os alunos, e também consigo mesmo, de tal modo que,mesmo criticando, ele não será odiado.Tais gentilezas são como as flores do louco-poeta ofertadas para o despertar do afeto,para o intensificar da vida, ao passo que as "vis bondades" se assemelham a flores da "tristeza", como aquelas que adornam o féretro.
Gentileza gera gentileza, gentileza é a causa da gentileza. A gentileza não nasce de outra coisa,mas dela mesma, como uma fonte. A gentileza não nasce de se ter dinheiro, herança ou mero acúmulo de educação formal. A gentileza não nasce do "se  ter",mas talvez do dester,como diria Manoel de Barros: "dester as coisas" é possuir a si mesmo a partir de uma "visão comungante" que nos liga às fontes,mais do que às suas variantes.A gentileza expulsa o “capetalismo” de nosso corpo e da nossa mente.A gentileza é “ecologia mental”,como dizia Guattari.A gentileza nos salva de nós mesmos na medida em que, como ensina Espinosa, ela não vai na frente e obriga que a sigamos,ou vai atrás nos empurrando: ela "nos conduz pela mão", como tudo que verdadeiramente educa e liberta,desde que experimentemos e vivamos a necessidade das travessias,como aquelas que nos despertam os Daimons. Não travessias que vão daqui para lá,mas travessias que vão daquilo que conhecemos ao que precisa ser inventado,produzido, a começar por nós mesmos.
Alguns gostam de fraque, outros cobiçam  fardões. Confesso que amo essa simples camisa que veste não apenas meu corpo;ela também  veste as ações que faço inspiradas no ritornelo que o louco ensinou,o louco inocente, o louco-criança-sábio.
Algumas camisas nos fazem pertencer a tribos (a tribo é uma identidade ampliada) ; já os uniformes nos tornam peças de um universal que se quer homogêneo e,por isso,apaga a nossa diferença. Confesso que quando ponho a camisa do Gentileza sinto que é minha diferença que experimento ampliada,dado que diante dela nasce uma ponte, um espaço de travessia,do qual a gentileza é a virtude-pilastra.




terça-feira, 14 de março de 2017

o menino que carregava água na peneira...





(trecho do livro)

Quanto às funções da poesia...Creio que a principal é a de promover o arejamento das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para que os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares comuns. Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso, a poesia tem a função de pregar a prática da inocência entre os homens.
Manoel de Barros, “Sobreviver pela palavra”).
Essa “terapia” da linguagem e dos homens constitui a essência dessa poética que se abre a uma experiência singular, onde o chão “pode divinar” e nos restituir a eucaristia com os seres que, “vestindo o poeta” , fazem da poesia um “afloramento de falas” : falas da vida, falas da infância, falas dos excluídos, falas do inconsciente, falas do corpo, falas daqueles que não têm falas...enfim, falas de nós mesmos que muito nos custa calar.
Assim, essa “didática da invenção” e do estilo, construindo uma “Imagem” singular para a vida,  “empoemando” as palavras para assim nos ensinar a “empoemar” a nós mesmos, nos diz que é preciso
A prática do desnecessário e da cambalhota , desenvolvendo em cada um de nós o sentido do lúdico. Se a poesia desaparecesse do mundo, os homens se transformariam em monstros,máquinas, robôs.
 Se a poesia desaparecesse do mundo, adoeceríamos de uma fala puramente egóica ou massificada, uma fala-clichê sem “florescimentos”: uma fala refém das significações e representações que, no presente, prostituem e estupram as palavras.
Se a poesia desaparecesse do mundo, restaria apenas uma fala que tão somente reproduziria, como “boa-cópia”, aquilo que o poder, estabelecendo seus limites (semânticos, políticos, midiáticos, mercadológicos, existenciais...), permite falar e ser.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica,consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase. 
Manoel de Barros “O menino que carregava água na peneira”)


domingo, 12 de março de 2017

o corpo sem órgãos do universo

O homem, em última análise, somente encontra nas coisas
aquilo que ele mesmo nelas pôs.
O ato de encontrar se intitula ciência;
o ato de pôr se chama arte.
Nietzsche


Segundo a ciência, 90% do universo é feito de uma matéria  “escura” :“matéria escura”, assim a ciência a nomeia. Quando olhamos para o céu e imaginamos ver um espaço vazio entre as estrelas, não há na verdade tal vazio, mas a presença dessa matéria estranha, que não se pode ver. Nem mesmo às potentes lentes do  Hubble tal realidade se mostra.
Acredita-se que é graças a essa “matéria escura” que as galáxias não se dispersam.  Embora essa matéria singular  não seja a força da gravidade, ela tem mais força de agenciamento de coisas diferentes do que a gravidade, pois ela mantém unidas, consistentes, as realidades visíveis que a gravidade reúne, mas que podem dispersar-se, pela ação de outras forças.
Contudo, essa matéria estranha é um paradoxo...Ela não possui nenhuma propriedade da matéria que conhecemos. Nem mesmo sabemos do que ela é feita. Ela não pode ser vista, conhecida, mensurada; porém é sentida e pensada, ao menos pelos cientistas que pensam e sentem mais, que são quase poetas e filósofos...
Porém, por que chamar de “matéria” tal realidade que nada tem da matéria, a não ser o nome? Se ela em nada se assemelha à matéria tal como a conhecemos, ou a matéria que conhecemos não é matéria, ou essa realidade estranha não é matéria.
E por que chamar de “escura” essa matéria? A escuridão representa a ausência de luz. Porém, tal realidade estranha não é uma ausência, ela é a presença de algo que não sabemos o que é, mas que age sobre o que é, para que o que é permaneça sendo o que é.
A ciência teme a si mesma . Ela teme considerar realidades para além da matéria. A matéria é seu mantra, seu “deus”...E os que são fanáticos precisam de um princípio oposto ao que acreditam, que ponha sempre sua crença  em risco, um “demônio”, um ser “das trevas”. A ciência se refere a essa matéria “escura” como algo que parece “das trevas”, que põe em risco seu fanatismo pela matéria.
Os que têm medo, medo metafísico, jamais podem pensar. Também não o podem os adeptos de algum fanatismo. E o pensar ,quando produtivo, não se distingue do empoemar. Por que não poderia ser uma atividade semelhante ao pensar, um pensar que age, tal realidade estranha? Essa “estranha realidade”  não poderia ser, enfim, o que os neoplatônicos chamavam de a “Alma do Mundo”? Se a matéria compõe o mundo dos órgãos (e as estrelas e galáxias são os órgãos do Cosmos), não poderia ser essa Entidade o Corpo Sem Órgãos do Universo?

Essa matéria estranha compõe 90% do universo. E nós , seremos humanos, estamos nesses 90% também! Essa “matéria”  nos compõe. Ela nos lembra a definição  que oferece Espinosa acerca do que é um espírito ou ideia: “ A ideia é o que mantém unidas as partes de um corpo”.







quinta-feira, 9 de março de 2017

letra G, de Gilles






Sinopse ( texto do Editor)          


Os ensaios reunidos neste livro oferecem perspectivas diversas sobre variados temas e objetos de estudo, preservando a complexidade do pensamento numa rede interdisciplinar que torna este livro uma referência importante para a Filosofia, a Teoria da Literatura, a Estética, entre outros saberes. Sumário - Parte I - Do sentido da filosofia; Letra G, de Gilles; Sociedade de controle; Estilo e criação filosófica; Parte II - Da expressão da filosofia; Diagramação e processos de transformação; As dobras da imagem ou a visibilidade expandida; A amizade filosófica entre Deleuze e Foucault; Questões em torno da noção de poder; Posfácio - O sentido e a expressão nas relações de Deleuze com a fenomenologia.

brasa

Quem consegue dizer como arde,
está em pouco fogo.
Petrarca



Ela tinha os cabelos vermelhos
porque lhe saiam pela cabeça os desejos,
como ao sol seus raios.

Conforme o amor que ela sentia e pensava,
os cabelos incandesciam,
como brasa.

Os que sabem tocá-los,
são aquecidos;
os que não sabem,
são queimados.






terça-feira, 7 de março de 2017

a pequenina Musa...

Segundo o poeta Manoel de Barros, “quem se aproxima da origem se renova”. Assim compreendida, a origem não está apenas no passado. Agora, por exemplo, é meio-dia. A origem do meio-dia não é a hora que veio antes, as onze horas. A origem do meio-dia é o mesmo das onze horas e de qualquer outra hora. A origem de tais horas é o tempo. Não é o tempo que nasce das horas, são as horas que nascem do tempo. Renova-se quem acha o tempo , o redescobre, no seio mesmo das horas, e não alhures, além. E se renovará mais ainda quem achar o tempo vivo no meio das horas mortas...
O que vale para as horas vale igualmente para as palavras. A autêntica origem de uma palavra não é outra palavra. A origem de uma palavra é sempre um acontecimento. É preciso achar, na imanência de uma palavra, o acontecimento que a fez nascer. É preciso encontrar em uma palavra o seu sentido.
Sentido não é a mesma coisa que significado. Os dicionários semânticos fornecem o significado de uma palavra:  a uma palavra eles associam outras, exatamente aquelas que , semanticamente, definem  o seu significado. O significado vive preso em um círculo, eixo ou cadeia: a cadeia das palavras. Até onde se sabe, não existe cadeia que liberte, elas sempre aprisionam: aprisionam o corpo, as cadeias físicas; aprisionam a mente, as cadeias simbólicas.
Encontrar o sentido de uma palavra é libertá-la de uma cadeia, de um “acostumado”, diria Manoel de Barros. Libertar uma palavra é achar nela o acontecimento que ela expressa. O sentido nunca é uma coisa em si, ele é um elo, um agenciamento. O sentido liga a palavra ao acontecimento, e o acontecimento à palavra . O sentido está entre a palavra e o acontecimento .O sentido é bifacial: possui uma face externa voltada para o acontecimento, possui uma face interna voltada para o signo.
A etimologia pode ajudar-nos a achar o sentido de uma palavra, a sua origem. Não por acaso, “étimo” significa “origem”. Por exemplo, a palavra “museu”. Se ficarmos aprisionados à semântica, definiremos museu como um determinado lugar, um prédio que guarda e expõe coisas. Mas será apenas isso um museu? Creio que pode haver mais...
“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, musa significa “conhecimento”. Mas é um conhecimento muito singular e especial. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento. Vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão, ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto
O conhecimento do qual as Musas são a expressão é um conhecimento evocador de uma memória: memória do que não pode ser esquecido.Não é uma memória do descartável e substituível.Posso esquecer de coisas que fiz ontem, posso esquecer o celular no carro...Porém , não posso esquecer que sou, e que este "sou" é algo vindo a ser, aberto ao  futuro, isto é, àquilo  do qual não há memória.Assim,  não é uma memória apenas do que fomos, mas do que somos , à luz do que precisamos ser. É uma memória idêntica ao ser e ao pensar, na exigência do vir a ser, do se reinventar.
No mito, as Musas são filhas de Zeus com Mnemosine, a divindade ligada à memória. Zeus esposou Mnemosine para fecundá-la com algo que não deve estar apenas no passado, mas no presente. Zeus, como se sabe, é a divindade associada à Justiça enquanto virtude ética. A ética não pode estar apenas no passado, ela tem que estar presente, ser a motivação das ações presentes.
Zeus casou-se com Mnemosine após uma guerra. Uma guerra contra o que há de pesado, vil, torpe, baixo, apequenador...Tais características tenebrosas estavam vinculadas às divindades sem ética, sem beleza, sem virtudes, enfim, a ignorância em seus variados aspectos.
Dessa guerra Zeus se saiu vitorioso. Ele quis então co-memorar essa vitória, para criar dela uma memória. Co-memorar: criar memória. Todavia seu intuito não era apenas relembrar algo que se deu no passado e passou. Seu desejo era fazer lembrar e dar a conhecer o feito, o que se fez. Lembrar o que se fez para se continuar fazendo e a fazer, se preciso for novamente, para assim lutar e vencer a ignorância. Foi este acontecimento a origem do museu: lutar contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não pode vencer. Não a ignorância em relação a datas e regras, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a beleza, a natureza, enfim, a vida. É esse acontecimento que dá ao museu o seu sentido, mais do que prédios e objetos.
Em grego, “fazer” se diz “poiésis”. Desse termo vem “poesia”. A poesia não é apenas versos, ela é a arma de uma batalha, na luta contra as mais diversas formas de ignorância, da qual a versão mais recente é a de um conhecimento que se quer “pragmático”, “técnico”, “não poético”.
Os poetas são fazedores. Um museólogo deveria ser, antes de tudo, um fazedor. Ele não faz as coisas que expõe, ele faz coisas com os objetos que expõe. E essas “coisas” que ele faz não são coisas materiais, são ações que devem fazer com que não seja esquecido o porquê de se expor algo em museus.
Na singela foto, vemos a bailarina em seu gesto eterno , imortalizado nas tintas. Na menininha, esse gesto renasce, outro. Ele renasce em seu corpo, em seu jeito: a criança interpreta, dançando, o que é dançar. Ela aprendeu a dançar, ensinando a si mesma que o pode fazer, para assim reinventar o dançar, à sua maneira.
 Quem é o “sujeito” ou o “polo ativo”  desse processo de conhecimento: o museólogo-museu, o quadro-objeto ou a criança? Ou não haverá sujeito, mas apenas agenciamento? Na teoria do conhecimento ortodoxa, da qual a museologia tradicional ainda é refém, o sujeito é o polo ativo, ao passo que o objeto é o polo passivo, inerte. Porém, a museologia tradicional apenas inverte os polos, e coloca o Objeto como o polo ativo, fazendo dos visitantes sujeitos inertes.
Agenciamento tem como raiz o termo “agente”. Um agente não é exatamente um sujeito. Mesmo um objeto pode ser um agente, desde que ele seja o agenciador para produzir agentes, isto é, seres ativos.
Na foto , o quadro não é apenas um objeto exposto, ele é o agente de um agenciamento. A menininha não é tão somente uma espectadora, ela é o agente de um agenciamento: ela viu, se afetou e reinventou o Sentido-Acontecimento do que a bailarina fez
Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa,  nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado, por mais morta que seja a hora, apesar do ar cinicamente triunfante da ignorância que nos cerca.






segunda-feira, 6 de março de 2017

mistério iluminado

Uma nave espacial  que saia da terra e entre no espaço,
logo verá que o céu não está apenas acima:
ele  está também atrás, dos lados
e igualmente abaixo.

Nessa perspectiva , tudo é céu...
E nesse tudo um  inferno não pode ser achado,
pois um inferno, dizem, é o que existe debaixo.
Fogo há apenas nos sóis e cometas,
que não queimam por terem pecado,
e sim porque neles o mistério é iluminado.

Se há céu em todas as direções,
como pode tudo ter de um ponto começado?
Se há céu em todas as direções,
não pode haver um centro determinado.







Não apenas as borboletas,
pois de casulos também
nascem as estrelas.        

O que elas eram antes?
Nuvem incandescente
rastejando na cósmica poeira.

("Nebulosa de águia", um dos "casulos de estrelas" captados  pelas  lentes do Hubble: é assim que os sóis nascem)





A luz do sol que vemos
leva oito minutos para nos alcançar
em sua luminosidade.                  

O sol que vemos é como ele era há oito minutos:
o que vemos não é o presente do sol,
mas o  passado em sua novidade.

sábado, 4 de março de 2017

os feiticeiros...

"Nós, os feiticeiros..."
Deleuze e Guattari

1.Existem os Caciques e os Feiticeiros.  Eles se diferem, sobretudo, no modo como compreendem e buscam poder.Os Caciques imaginam que ter poder é dominar, explorar, vencer, ser o primeiro,derrotar o rival.Os Caciques tendem à paranoia. Já os Feiticeiros exercem a potência. Esta é o exercício de descobrir misturas entre seres heterogêneos.Por isso, os Feiticeiros operam por alianças, contágios, mestiçagens.Os Feiticeiros estão mais próximos dos Guerreiros do que dos Caciques, uma vez que todo Feiticeiro é um Guerreiro do mundo espiritual.
No mundo espiritual  os inimigos são os maus pensamentos, os sentimentos de ódio e tristeza, de tirania e escravidão.
Os Caciques moram no centro da taba, ao passo que os Feiticeiros frequentam as zonas fronteiriças das aldeias, os limiares, tornando-se a ponte entre estas e a floresta imensa.
Os Caciques exibem a cabeça dos animais mortos como troféus, já os Feiticeiros aprendem os signos e as maneiras dos animais nos quais a vida moldou beleza , força, altivez, independência ,coragem - e não raro os Feiticeiros são aceitos como um deles, aprendendo seus cantos, suas camuflagens, suas velocidades e percepções .
Todo Cacique se pretende um Mestre que de ninguém mais depende, ao passo que todo Feiticeiro é, por toda a vida, um aprendiz de feiticeiro, de tal maneira que nunca ele é o primeiro, mas aquele que descobre o Primeiro em tudo, inclusive naquilo que o Cacique pensa ser o último.
Há os Caciques da Filosofia. Porém em todo autêntico filosofar há um Feiticeiro que conecta a filosofia com a não-filosofia : onde o Cacique vê uma fonte Una como origem do rio múltiplo que corre,fonte esta que ele crê ser o único a beber, o Feiticeiro descobre um rio subterrâneo múltiplo e incontível, que sobe à superfície através da fonte. Não é o rio que brota da fonte, não é o múltiplo que nasce do Um:o Um, a fonte, é produzido pelo múltiplo que não tem origem ou fim, uma vez que ele é sua própria fonte : foi da  multitudo de gotas que caíram do céu que o rio nasceu.A chuva é o rio descendo, o rio é a chuva que desceu.

***

2.A filosofia não nasceu na Grécia. Ela foi deixada lá ainda criança, tal como aqueles bebês deixados à porta de alguém. Inclusive, a tez da filosofia é mais escura e mestiça do que a branca pele grega. Há quem diga que seus pais eram Egípcios; outros afirmam que foram os Assírios que a conceberam; e há quem defenda ainda que os pais da filosofia foram os nômades povos do deserto, que se guiavam pelas estrelas e desprezavam a propriedade privada. A porta em que a filosofia foi deixada para ser cuidada pertencia à casa de um homem digno chamado Tales.Ele a criou e a ensinou a ficar de pé.Com Heráclito ela aprendeu a brincar; com Nietzsche, a dançar; e  a fazer-se mais viva lhe ensinou Espinosa, diante daqueles que a querem morta. 








sexta-feira, 3 de março de 2017

a constelação

Na mitologia, o touro é o animal  de Zeus e também de Dioniso, mas não como um animal de estimação. O touro era uma expressão, uma manifestação ou metamorfose dos próprios deuses. Não qualquer touro, mas o touro branco. Fala-se muito do amor do grego pelo cavalo e do quanto este animal foi a força motriz daquela civilização. Porém, mais fascínio nutria o grego pelo touro, pois esse animal era a ponte viva do  grego com a natureza. No cavalo o grego montava ,para guerrear ou trabalhar a terra. Mas o touro não deixava subir em seu dorso soldados, generais, camponeses e nem mesmo reis.
 Quando quis enamorar-se com Europa, foi sob a forma de um touro que Zeus lhe apareceu. Somente Europa , o continente de tantos e diferentes povos,  o touro-deus deixou que subisse em seu dorso, para assim fugir com ela, adentrando pelo mediterrâneo. Desse amor nasceu  a mais brilhante das constelações que se pode ver no céu, exatamente a constelação de touro. Essa constelação é a mais próxima da terra, pois da terra são os touros. Zeus fez-se constelação para que da terra os homens pudessem vê-lo, para assim se orientarem em viagens pelo mar quando fossem ousar buscar terras ainda não existentes em mapas. Os reis humanos pensam ser leões, mas o touro escolhem ser as divindades.
Dioniso se locomovia em uma carruagem puxada por panteras. Contudo, não eram tais feras mais próximas de Dioniso do que o touro. Este animal é a expressão mais indestrutível da força vital , mais do que o leão ou o urso, mais até  que o elefante. Etimologicamente, “touro” significa: “ser forte”. Entre nós, o nome de um ser é escolhido bem antes de o ser nascer. Entre os povos antigos, porém , o próprio nome também nascia: ele nascia como expressão do ser que ele designava. Era o ser que comandava o nome, e não o nome comandando o ser. Daí a força que tinha o símbolo nessas culturas, pois os símbolos  vinham diretamente dos aspectos e acontecimentos constituintes de um ser. O nome é um dos principais símbolos que nos permitem conhecer um ser. E conhecer um ser é saber do que ele é capaz, do que ele pode, qual sua potência.
No dionisismo,  o touro é a expressão  indomável da vida. Pode-se domar um leão ou um elefante para colocá-los em um circo, porém nunca se pode domar um touro. Não obstante, sabe-se que os touros são leais. Não leais como cães, leais como um guerreiro nobre . Eles são leais, acima de tudo,  à sua nobreza. Na hierarquia guerreira, inclusive, os escudos que trazem a efígie de um touro são mais temidos e respeitados do que aqueles que mostram um leão.
São raros os touros, porém. Não se deve confundi-los com os  bois. O touro não é gado, ele não vive em rebanho nem puxa arado. O gado alimenta os lobos, porém do touro até mesmo os lobos fogem. Estranhamente, o touro é naturalmente calmo, porém nada o segura se uma fúria o toma.
Não por acaso, o minotauro, híbrido de homem e touro, é o ser enigmático dos labirintos. O labirinto não é uma jaula, como aquelas que encerram tigres e  leões; no entanto , o labirinto prende mais do que se tivesse grades e fechaduras de aço. Ele assim prende porque ele deixa , a quem lhe adentra, margem para escolha: é de livre vontade que nele se prende e se perde.
O minotauro come carne humana não para satisfazer a metade  touro, mas a parte humana. Os touros são vegetarianos. Os touros não são cruéis , eles apenas se defendem. A crueldade do minotauro vem da   besta que vive na metade  que é homem, aproveitando-se da força taurina.
No minotauro, o animal é a parte relativa ao touro, porém é na parte humana que se encontra a besta. O animal é irracional, mas muito inteligente pode ser a besta. A besta não é nenhum animal determinado. A bestialidade é um fundo obscuro que habita todo animal. Contudo, o instinto que age em uma espécie determinada protege o animal individual desse fundo indeterminado que não pertence a espécie alguma. No homem, porém, é na individualidade que se perdeu do todo que a besta sobe e ganha um rosto humano, desumanizando-o. Somente no homem a besta pode subir e ter um rosto, valendo-se até mesmo da inteligência, pondo-a a seu serviço na bestialidade da guerra, na bestialidade da violência, na bestialidade da corrupção e do acúmulo doentio de coisas.
 Há também bestialidades simbólicas. Nesse âmbito, a besta se converte em besteira. A palavra é o veículo típico da besteira.A besteira é a bestialidade dita, falada. A bestialidade se mostra em ações torpes , a besteira ganha corpo nas palavras que nada dizem, senão besteiras. A besteira mais perigosa não é a da palavra gratuita, descompromissada. A besteira mais perigosa é aquela que pensa ser a portadora de uma Verdade que apenas ela pode dizer, pondo-se em ódio contra todas as outras formas de dizer palavra. Assim como na bestialidade, na boca que profere besteiras está ausente a humanidade.
Matando o  touro, o toureiro se vinga da natureza inteira, incluindo a que está nele. O toureiro mata o touro para satisfazer a besta vingativa que mora nele, e  que se compraz com sangue. O homem-besta é o minotauro menos o touro.
Ah...meu Deus, eu nasci em maio, sou touro! Assim diz o horóscopo em seu simbolismo...Que eu possa ver no céu tal constelação sempre comigo, para assim não me perder no caminho que me leva a mim mesmo.





quinta-feira, 2 de março de 2017

o pantanal de Madureira


Aprendo com o povo sintaxes tortas.
Manoel de Barros

Ou a manequim do tímido Paulinho.
Lenine

Li recentemente entrevista com o  grande Paulinho da Viola, já com mais de 73 anos. Na entrevista, Paulinho da Viola responde  a um  jornalista acerca do seu modo de ser. Paulinho é reconhecidamente alguém modesto e simples, reservado mesmo, por vezes tímido no trato. Porém,  ele nada tem de tímido quando se trata de expressar, extroverter, a poesia através da música. Por outro lado, muitos cantores e cantoras extrovertidos, que falam pelo cotovelo e atropelam seus entrevistadores, e que vivem a dar opinião medíocre sobre tudo, tais cantores extrovertidos são impressionantemente introvertidos, tímidos, quando se trata de chegar perto, e conquistar, a poesia e a música!
Se levarmos em conta essa  autêntica extroversão, Paulinho é extrovertido: “vertido para” a alma plural e mestiça que lhe vai dentro, dele e de nós.
Havia uma insinuação  nas perguntas que lhe foram feitas: o jornalista dava a entender   que tais características  o teriam “atrapalhado” na carreira, digamos assim. O jornalista insinua  que se Paulinho fosse mais extrovertido talvez ele fosse, por exemplo, uma Ivete Sangalo ou um Carlinhos Braw (em termos de "sucesso" midiático, propagandístico).Mas se tais “artistas” citados fossem mais introvertidos eles seriam um Paulinho? 
Paulinho, com humor e paciência, como se espera de um nobre, responde que seu jeito e maneira de ser eram assim, em parte , pela mesma razão  que faz  cada um ser o que é : ele assim era devido à maneira como foi educado. Ele foi educado para ser simples e modesto. Sua indisfarçável e conhecida timidez não era exatamente devido à presença do outro. Ao contrário, tal timidez era o esforço  que ele fazia para vencer a si mesmo, o seu ego.
Em um mundo como o atual, no qual tudo tem que aparecer, ser expansivo como um “boneco de posto” agitando os braços, mas sem nada a dizer a não ser slogans, personalidades como a de Paulinho ( assim também eram Cartola e Manoel de Barros), são vistas como fracas, inseguras, tímidas. Porém, quando ouço e vejo os cantores que fazem sucesso na mídia comercial alardeando a si mesmos, penso que talvez fosse melhor, inclusive aos próprios, se mais contidos eles fossem, exercitando  mais a modesta hesitação diante da música, esforçando-se mais para conquistá-la e sê-la. Pois o que tais pessoas  propalam ter e ser não se conquista ou compra como uma roupa , uma tintura de cabelo, uma tatuagem ,  um terno. Muita propaganda deixa a gente desconfiado acerca da veracidade do  produto, já dizia minha querida avó.
Lendo tal entrevista com o Paulinho me lembrei de minha infância e juventude suburbanas, lá perto de Madureira. Também fui criado de forma semelhante: para não ser vanglorioso, rivalizador belicoso  e outras coisas que hoje são buscadas pelos RHs nos candidatos a vagas  de “liderança”. Fui educado assim, para não ser um babaca com ares arrogantes.
 Mas não foi exatamente apenas da minha família que veio tal educação. Essa educação era cultivada no meio em que vivia minha família. Era um ethos social suburbano. Aristóteles dizia que aquilo que existe mais , que é mais real e verdadeiro, existe sempre sob a forma do “sub”. O que é mais real, o que existe mais do que tudo,  o filósofo chamava de substância. A substância é o que existe dando suporte às instâncias, aos territórios nos quais existem as coisas  e pessoas. “Sub” não é exatamente o que é inferior, “sub” é o que está por baixo dando sustentação, como o alicerce da casa, como o solo sobre o qual corre o rio, como o caráter que sustenta as ações visíveis de um homem. O “erro” de Aristóteles foi ter projetado no sub o modo de ser das coisas que existem “sobre”, foi ter olhado para o que sustenta com os mesmos olhos com os quais se vê o sustentado, atribuindo-lhe então aspectos que apenas existem na casa, e não em seu alicerce. Mais longe a esse respeito foi Espinosa, que também emprega o termo “substância”, porém com outro sentido: nele o sub é onde se encontra a  Potência. Em Espinosa, a natureza é sub ( como Natureza Naturante) e sobre ela própria, como natureza naturada  (esse "sub" da potência transfiguradora expressa o mesmo que o "pré" das Pré-coisas manoelinas).
Então, sub-urbano não era , ao menos àquela época, algo inferior à urbanidade da zona sul. Sub-urbano é o que dava sustentação existencial às nossas existências urbanas. A base desse sub não eram exatamente valores familiares ou religiosos; a essência desse “sub” eram valores ético-políticos, valores estes que se tornavam reais pelas nossas práticas. A tomada de partido por tais valores antecedia as escolhas partidárias, e nos protegia dos sectarismos que envolvem as escolhas partidárias quando estas não são precedidas por um afeto por tudo aquilo que é sub, pois tal sub, exatamente por ser sub, nunca pode ser objeto de culto e poder.
Mais do que no espaço privado das casas, onde reina o “meu”, era no espaço de vizinhança que se aprendia  o afeto pelo comum, como prática das comunhões. Lembro-me das  trocas feitas entre minha mãe e suas vizinhas, no caso de alguma estar carecendo de algum produto em sua casa. Eram na verdade ofertas, “dons”. Por vezes era o feijão que se doava, e por ele se recebia amizade. Noutras ocasiões  éramos nós que recebíamos o açúcar que em nossa casa faltava, e em troca contradoávamos amizade. Tudo era oportunidade para reforçar a amizade como virtude sub-civilizatória, que sustenta a civilização , a família e as relações. Lá não se precisava de creche: as famílias recebiam os filhos umas das outras, quando havia necessidade.  
Essa “Madureira” em que cresci era mais do que um espaço físico, assim como é mais do que um pedaço de terra alagado o pantanal de que fala Manoel de Barros. Ele mesmo diz que o chão do pantanal ele também encontrou em Paris, Nova Iorque, São Paulo. Essa “Madureira” também a encontro onde haja esse sub-urbano nos espaços urbanos. Além disso, nem todos que nasceram em Madureira trazem essa “Madureira”, nem todos que nasceram no Pantanal são habitados pelo Pantanal poético. Por outro lado, mesmo quem não nasceu fisicamente no Pantanal ou em Madureira pode, no entanto, os eleger como Terra Natal . Os que têm a mesma terra natal se dizem con-terrâneos: vizinhos na mesma terra. Entre conterrâneos não há hierarquias, há tão somente a afirmação da mesma horizontalidade enquanto espaço do afeto. O Pantanal e Madureira são vizinhos, assim nos ensinou, brincativamente,  a Império Serrano.
Por intermédio de sua educação formal e escolar, centradas em “cartilhas e gramáticas”, os espaços urbanos são o território do qual nascem e são cultivados engenheiros, soldados, policiais, professores, funcionários públicos, pais, filhos , mães...Mas o sub é a terra onde nascem pensadores e poetas, seres que são , antes de tudo, da natureza, da substância. É em contágio com essa substância que eles vivem, produzem, sonham, doam e contradoam o feijão que alimenta o espírito.
Essa Madureira não está totalmente fora e nem totalmente dentro, ela é uma irradiação, um refrão, um ritornelo, enfim,   um mundo próprio  sem o qual  ficam, poetas e pensadores,  sem ar. E é a partir dessa terra que eles cantam e fazem cantar, como na avenida do samba o povo.
Quando me desterritorializo para alcançar essa Madureira politicamente poetizada, este é meu desejo-sonho: ao abrir a porta da minha casa, ver o Paulinho como meu vizinho; ao abrir minha  janela, ver  na janela vizinha Manoel nos horizontando.