terça-feira, 7 de novembro de 2023

Sartre : a consciência e o espelho

 

                                                                                                A consciência não é uma negação do Ser,

ela está em contradição com o Ser.

Pois o Ser é, e a consciência não é: ela tem de ser.

                                                                                Sartre     

 

É comum  um filósofo empregar imagens para exemplificar um conceito . Essas imagens são mais do que meras metáforas, elas cumprem uma função didática importante, pois despertam também a sensibilidade e mesmo a imaginação. É o que faz Platão com sua Alegoria  da Caverna .  Nietzsche, por sua vez, expõe sua filosofia por intermédio de potentes imagens em Assim falou Zaratustra . Ao falar do “burro”, do “leão” e da “criança” nessa obra Nietzsche não está a falar literalmente desses seres. Ele os emprega como imagens de possibilidades da vida.

Somente o que é composto pode ser definido. Por exemplo, quando defino “Homem” como “animal racional” reconheço que “Homem” é a composição de duas coisas: “animal” e “racional”. Assim, de algo simples não pode haver uma definição. Isso significa que o simples é impensável?  Não exatamente. Pois o pensável não é limitado apenas ao que pode ser definido. O simples não pode ser definido, porém ele pode ser “clareado”[1]. A função didática das imagens ou metáforas , quando bem empregadas, é ajudar a clarear a compreensão de realidades singulares. Esta é também  a função do pensamento: clarear realidades que não se podem definir, apenas pensar. Isso se aplica à consciência. A consciência não pode ser definida , ele pode apenas ser clareada. Clarear é pensar o sentido .

A consciência não é o Ser, ela é o Nada. Há uma frase famosa de Heidegger que Sartre  retoma e amplia: “O Nada nadifica”. O que é nadificar? Somente a consciência pode nadificar. Ela nadifica o Ser. A consciência nadifica o Ser de duas maneiras sobretudo: por intermédio   da negação e da interrogação. Por exemplo,  entro na sala e procuro por João. Há várias pessoas na sala, porém João não está. Olho para as  pessoas  e vejo algo impossível de se ver: eu vejo a ausência de João. Ver a ausência de João é, ao mesmo tempo, negar a presença de todos que estão ali. Ou seja, eu nadifico o Ser que a percepção me oferece. Nadificar não é destruir fisicamente. Nadificar é projetar o nada sobre o Ser, o Nada que a consciência é, mas sem nada  alterar o Ser em seu ser. Pois quando nadificamos não é o Ser que se altera, somos nós mesmos que nos mostramos .

Sartre emprega uma imagem muito  rica para falar da consciência: trata-se do espelho. A consciência, diz Sartre, é semelhante a  um espelho.  Um espelho é uma superfície sem profundidade. A consciência, diz Sartre, também não possui profundidades. Um espelho não existe em si, ele existe para refletir realidades diferentes dele. Um espelho reflete a realidade de outras coisas. Um espelho é sempre espelho de outra coisa diferente dele mesmo. Assim é a consciência: ela é sempre consciência de outra coisa. Esta é a lição que Sartre aprendeu da fenomenologia: a consciência não é alguma coisa, ela não é uma substância, como imaginava Descartes. A consciência é sempre consciência de alguma coisa: ela está sempre “voltada para”. Esse “para” tem dois sentidos interconectados. Primeiramente, a consciência é sempre consciência voltada para alguma coisa . Nesse sentido, ela  tem sempre uma direção, como uma seta ( ® ) . E é esse estar voltada para alguma coisa que define a sua “intencionalidade”. Não por acaso, o símbolo da intencionalidade é uma seta  ( ®)  que parte da consciência e se direciona para o mundo. Por outro lado, esse “para” que define a consciência tem um sentido mais sutil, solidário com o primeiro sentido. A consciência nunca é em si, isto é, algo que existe independentemente de todo o resto. Ela é “para si”, ou seja, tudo o que ela percebe existe sob o modo de existência dela. O que seria a realidade independentemente de uma consciência? Essa é uma pergunta que uma consciência não tem como responder. 

A consciência é sempre, e antes de tudo, presença a si. A pedra não é presença a si, ela é apenas presente. Não se deve confundir, portanto, presença e presente.  Por exemplo, quando o professor faz a chamada o aluno responde acusando sua presença. A presença é sempre presença a alguma coisa. A presença é a consciência de se estar presente no mundo. A pedra não tem consciência de si, e por isso não tem presença. A consciência somente é consciência do mundo sendo também presença a si. A presença também é transcendência ao que está dado como presente.

Assim como um espelho, a consciência reflete o mundo. A partir dessa relação consciência-mundo Sartre definirá três modos de a consciência aparecer para si própria. A consciência é uma só, porém pode aparecer de três maneiras diferentes :  consciência irrefletida, consciência reflexiva e consciência pré-reflexiva. Falaremos aqui das duas primeiras modalidades da consciência. Devido à sua riqueza e complexidade, deixaremos para um próximo texto-aula a explicação da consciência pré-reflexiva, também chamada por Sartre de consciência espontânea ou consciência de terceiro grau.

A consciência irrefletida é aquela que se confunde com o próprio objeto do qual tem consciência. Ela seria como um espelho que não se percebe como um espelho, imaginando que é a própria coisa ou ser que se reflete nele. Em A Náusea, Sartre  emprega a imagem do “viscoso” para falar dessa consciência. Sempre que tentamos pegar algo viscoso ele gruda em nós e nos impregna com seu modo de ser. Na consciência irrefletida o mundo gruda na consciência, de tal modo que esta não percebe a si mesma como algo diferente do mundo ou do objeto que nela se reflete. Em O Ser e o Nada , Sartre dá o exemplo do “ciúme”. O ciumento é aquele que se torna o ciúme, como se este o fisgasse e lhe desse uma essência, uma definição. Quando os homens se autodefinem e colocam para si uma essência, mesmo que seja uma essência   que lhes seja desfavorável, assim o fazem porque não descobriram ou fogem do seu “nada”, isto é, de sua consciência enquanto projeto de ser que nunca será um ser como aqueles que vêm se projetar na consciência.

Imaginemos agora um espelho que soubesse separar , dele mesmo, o reflexo das coisas que nele se refletem . Um espelho que se soubesse espelho. Um espelho assim não deixaria de espelhar as coisas que não é, porém ele se saberia “outro” que o mundo. Ele mesmo seria para ele um outro: espelho que reflete o mundo e espelho que reflete a si mesmo enquanto espelho que reflete o mundo. Um espelho assim não seria apenas reflexo do mundo, mas reflexão sobre si mesmo enquanto reflexo do mundo.

“Reflexão” significa: “dobrar-se sobre si mesmo”. Nasce assim o que Sartre chama de “consciência reflexiva”. Como toda consciência é sempre “consciência de alguma coisa”, a consciência reflexiva é a consciência que toma a si mesma como objeto de consciência. É aqui que nasce o ato de julgar a si mesmo. Quando o ciumento toma consciência de que ele não é o ciúme, embora este o tenha dominado, somente assim o ciumento pode, quem sabe, libertar-se do ciúme. A consciência reflexiva torna o homem capaz de rever seus comportamentos e avaliar suas escolhas. Enquanto a consciência irrefletida é refém do presente ( daquilo que Espinosa chamava de “afecções), a consciência reflexiva estabelece uma relação fundamental com o passado: a consciência reflexiva é consciência do “ter sido”. Em geral, é capaz de reflexão quem avalia seu passado . Não como um passado que foi, mas sim como   passado que é.

Para Sartre, o passado constitutivo da consciência reflexiva não se confunde com o passado enquanto objeto da memória. Esse passado imanente à reflexão não é um objeto, ele é a própria consciência que toma consciência de si como um “tendo sido”  que já não mais é. A consciência põe a si mesma, ao mesmo tempo que transcende a si mesma ( ela se nadifica : põe-se como objeto e transcende a esse mesmo pôr-se). Enquanto na consciência irrefletida prepondera um “eu” com “e” minúsculo, um “eu” passional e irrefletido, na consciência reflexiva surge o “Eu” com “E” maiúsculo com capacidade de julgar acerca de si mesmo. Também aqui, a consciência se compreende como VALOR (no sentido ético-moral do termo).



[1] A expressão “clarear” é empregada pela fenomenologia como sinônimo de “pôr algo sob a luz”. No caso, a luz do entendimento. Assim, mesmo realidades que não comportam uma definição lógica-analítica, elas podem ser, no entanto, pensadas-clareadas.     



                                                       

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