A consciência não é uma negação do Ser,
ela está em contradição com
o Ser.
Pois o Ser é, e a consciência não é: ela tem de ser.
Sartre
É
comum um filósofo empregar imagens para
exemplificar um conceito . Essas imagens são mais do que meras metáforas, elas
cumprem uma função didática importante, pois despertam também a sensibilidade e
mesmo a imaginação. É o que faz Platão com sua Alegoria da Caverna . Nietzsche, por sua vez, expõe sua filosofia
por intermédio de potentes imagens em Assim
falou Zaratustra . Ao falar do “burro”, do “leão” e da “criança” nessa obra
Nietzsche não está a falar literalmente desses seres. Ele os emprega como
imagens de possibilidades da vida.
Somente
o que é composto pode ser definido. Por exemplo, quando defino “Homem” como
“animal racional” reconheço que “Homem” é a composição de duas coisas: “animal”
e “racional”. Assim, de algo simples não pode haver uma definição. Isso
significa que o simples é impensável?
Não exatamente. Pois o pensável não é limitado apenas ao que pode ser
definido. O simples não pode ser definido, porém ele pode ser “clareado”[1]. A função didática das
imagens ou metáforas , quando bem empregadas, é ajudar a clarear a compreensão
de realidades singulares. Esta é também a função do pensamento: clarear realidades que
não se podem definir, apenas pensar. Isso se aplica à consciência. A
consciência não pode ser definida , ele pode apenas ser clareada. Clarear é
pensar o sentido .
A
consciência não é o Ser, ela é o Nada. Há uma frase famosa de Heidegger que Sartre
retoma e amplia: “O Nada nadifica”. O
que é nadificar? Somente a consciência pode nadificar. Ela nadifica o Ser. A
consciência nadifica o Ser de duas maneiras sobretudo: por intermédio da negação e da interrogação. Por exemplo, entro na sala e procuro por João. Há várias
pessoas na sala, porém João não está. Olho para as pessoas
e vejo algo impossível de se ver: eu vejo a ausência de João. Ver a
ausência de João é, ao mesmo tempo, negar a presença de todos que estão ali. Ou
seja, eu nadifico o Ser que a percepção me oferece. Nadificar não é destruir
fisicamente. Nadificar é projetar o nada sobre o Ser, o Nada que a consciência
é, mas sem nada alterar o Ser em seu ser.
Pois quando nadificamos não é o Ser que se altera, somos nós mesmos que nos
mostramos .
Sartre
emprega uma imagem muito rica para falar
da consciência: trata-se do espelho.
A consciência, diz Sartre, é semelhante a um espelho.
Um espelho é uma superfície sem profundidade. A consciência, diz Sartre,
também não possui profundidades. Um espelho não existe em si, ele existe para
refletir realidades diferentes dele. Um espelho reflete a realidade de outras
coisas. Um espelho é sempre espelho de outra coisa diferente dele mesmo. Assim é a consciência: ela é sempre
consciência de outra coisa. Esta é a lição que Sartre aprendeu da
fenomenologia: a consciência não é alguma coisa, ela não é uma substância, como
imaginava Descartes. A consciência é sempre consciência de alguma coisa: ela
está sempre “voltada para”. Esse “para” tem dois sentidos interconectados.
Primeiramente, a consciência é sempre consciência voltada para alguma coisa .
Nesse sentido, ela tem sempre uma
direção, como uma seta ( ® ) . E
é esse estar voltada para alguma coisa que define a sua “intencionalidade”. Não
por acaso, o símbolo da intencionalidade é uma seta ( ®) que parte da consciência e se direciona para
o mundo. Por outro lado, esse “para” que define a consciência tem um sentido
mais sutil, solidário com o primeiro sentido. A consciência nunca é em si, isto
é, algo que existe independentemente de todo o resto. Ela é “para si”, ou seja,
tudo o que ela percebe existe sob o modo de existência dela. O que seria a
realidade independentemente de uma consciência? Essa é uma pergunta que uma
consciência não tem como responder.
A
consciência é sempre, e antes de tudo, presença
a si. A pedra não é presença a si, ela é apenas presente. Não se deve
confundir, portanto, presença e presente.
Por exemplo, quando o professor faz a chamada o aluno responde acusando
sua presença. A presença é sempre presença a alguma coisa. A presença é a
consciência de se estar presente no mundo. A pedra não tem consciência de si, e
por isso não tem presença. A consciência somente é consciência do mundo sendo
também presença a si. A presença também é transcendência ao que está dado como
presente.
Assim
como um espelho, a consciência reflete o mundo. A partir dessa relação
consciência-mundo Sartre definirá três modos de a consciência aparecer para si
própria. A consciência é uma só, porém pode aparecer de três maneiras
diferentes : consciência irrefletida, consciência
reflexiva e consciência
pré-reflexiva. Falaremos aqui das duas primeiras modalidades da
consciência. Devido à sua riqueza e complexidade, deixaremos para um próximo
texto-aula a explicação da consciência
pré-reflexiva, também chamada por Sartre de consciência espontânea ou consciência
de terceiro grau.
A
consciência irrefletida é aquela que se confunde com o próprio objeto do qual
tem consciência. Ela seria como um espelho que não se percebe como um espelho,
imaginando que é a própria coisa ou ser que se reflete nele. Em A Náusea, Sartre emprega a imagem do “viscoso” para falar
dessa consciência. Sempre que tentamos pegar algo viscoso ele gruda em nós e
nos impregna com seu modo de ser. Na consciência irrefletida o mundo gruda na
consciência, de tal modo que esta não percebe a si mesma como algo diferente do
mundo ou do objeto que nela se reflete. Em O
Ser e o Nada , Sartre dá o exemplo do “ciúme”. O ciumento é aquele que se
torna o ciúme, como se este o fisgasse e lhe desse uma essência, uma definição.
Quando os homens se autodefinem e colocam para si uma essência, mesmo que seja
uma essência que lhes seja
desfavorável, assim o fazem porque não descobriram ou fogem do seu “nada”, isto
é, de sua consciência enquanto projeto
de ser que nunca será um ser como aqueles que vêm se projetar na
consciência.
Imaginemos
agora um espelho que soubesse separar , dele mesmo, o reflexo das coisas que
nele se refletem . Um espelho que se soubesse espelho. Um espelho assim não
deixaria de espelhar as coisas que não é, porém ele se saberia “outro” que o
mundo. Ele mesmo seria para ele um outro: espelho que reflete o mundo e espelho
que reflete a si mesmo enquanto espelho que reflete o mundo. Um espelho assim
não seria apenas reflexo do mundo, mas reflexão sobre si mesmo enquanto reflexo
do mundo.
“Reflexão”
significa: “dobrar-se sobre si mesmo”. Nasce assim o que Sartre chama de
“consciência reflexiva”. Como toda consciência é sempre “consciência de alguma
coisa”, a consciência reflexiva é a consciência que toma a si mesma como objeto
de consciência. É aqui que nasce o ato
de julgar a si mesmo. Quando o ciumento toma consciência de que ele não é o
ciúme, embora este o tenha dominado, somente assim o ciumento pode, quem sabe,
libertar-se do ciúme. A consciência reflexiva torna o homem capaz de rever seus
comportamentos e avaliar suas escolhas. Enquanto a consciência irrefletida é
refém do presente ( daquilo que Espinosa chamava de “afecções), a consciência
reflexiva estabelece uma relação fundamental com o passado: a consciência
reflexiva é consciência do “ter sido”. Em geral, é capaz de reflexão quem
avalia seu passado . Não como um passado que foi, mas sim como passado que é.
Para
Sartre, o passado constitutivo da consciência reflexiva não se confunde com o
passado enquanto objeto da memória. Esse passado imanente à reflexão não é um
objeto, ele é a própria consciência que toma consciência de si como um “tendo
sido” que já não mais é. A consciência
põe a si mesma, ao mesmo tempo que transcende a si mesma ( ela se nadifica : põe-se como objeto e
transcende a esse mesmo pôr-se). Enquanto na consciência irrefletida prepondera
um “eu” com “e” minúsculo, um “eu” passional e irrefletido, na consciência
reflexiva surge o “Eu” com “E” maiúsculo com capacidade de julgar acerca de si
mesmo. Também aqui, a consciência se compreende como VALOR (no sentido
ético-moral do termo).
[1] A expressão “clarear” é empregada pela fenomenologia como sinônimo de “pôr algo sob a luz”. No caso, a luz do entendimento. Assim, mesmo realidades que não comportam uma definição lógica-analítica, elas podem ser, no entanto, pensadas-clareadas.
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