quinta-feira, 2 de novembro de 2023

crer é criar

 

O filósofo Husserl dizia que o pensar teórico  , sempre formal e abstrato, requer a “suspensão das crenças”.   Não apenas  “crença” no sentido religioso , mas crença até mesmo enquanto impulso intuitivo do coração, enquanto sede viva do Afeto.

O pensar teórico   exige que nos dispamos de tudo , até ficar apenas a nudez  seca da “razão pura” e seu olhar sem corpo.

Já o poeta Coleridge retruca o filósofo e diz: a poesia requer não a suspensão das crenças, mas das descrenças. Sobretudo da descrença que nos derrota antes mesmo de começarmos a luta.

Mas a descrença é tão ardilosa e dissimulada, que ela se disfarça muitas vezes sob a forma de crença teológico-política, chamada por  Espinosa  de “superstição” , e por Nietzsche de “niilismo reativo”. Crenças reativas assim , sobretudo quando se armam de messianismos bélicos, parecem nos querer produzir a descrença no humano...

Por isso,  a crença de que fala o poeta é outra: é a crença na vida. Não por acaso, as palavras “crer” e “criar” têm uma fonte comum: o antigo  verbo “creare”. Assim, só cria quem crê: quem não crê, não cria.

Van Gogh tinha uma crença  assim nas tintas, e dessa crença  ele criou uma arte nova. Paulo Freire nutria uma crença assim na educação, e alimentado por essa crença ele criou um método revolucionário de ensino.

Só cria um laço de amizade quem crê numa pessoa, fazendo dela uma amiga. Só cria um bicho de estimação ou uma plantinha que seja, regando-a todo dia, quem crê na vida e no cuidado que ela requer.

O professor cria suas aulas porquê crê no aluno; e o aluno exercita o aprender, um aprender ativo, quando também crê no professor:  para dessa maneira ambos, professor e aluno, crerem em si mesmos e no processo que ambos criam juntos, potencializando o espaço social da universidade ou escola. E quem crê num criar ativo assim, sabe fazer e receber crítica.

Essa percepção da relação íntima entre crer e criar é o que constitui a poesia no seu sentido originário , e  que não precisa apenas de versos para se expressar, uma vez que é tal poesia  que cria música, pintura , exposições, novos  métodos de ensinar e , sobretudo, novos modos de vida, novas maneiras de ser e estar como antídoto à descrença crente dos niilistas reativos e seu poder destrutivo que nada cria.


 “Mais importante do que o pensamento é o que ‘dá a pensar’, mais importante do que o filósofo é o poeta.” ( Deleuze)

“Quem não tem instrumentos de pensar, inventa.” (Manoel de Barros)

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.” ( Manoel de Barros)







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