quinta-feira, 16 de novembro de 2023

A vespa e a orquídea : um caso de devir

 

                                                                                                  Adoro orquídeas. Já nascem arte.

                                                                                                                          Clarice Lispector

 

                                                         A arte é bem realizada quando com a natureza se parece;

                                                                                     e, por sua vez, a natureza é bem sucedida

                                                                                              quando expressa a arte em seu seio.

                                                                                                                                             Longino

 

A vespa é um inseto, isso nos ensina a ciência. A orquídea é uma planta, também a ciência a isso nos informa. "Informar" é dar uma forma, um limite. A vespa é um indivíduo membro de uma espécie. A espécie fornece a "identidade", ao passo que é graças à semelhança com a espécie que podemos reconhecer um inseto como uma vespa. Porém, apesar das aparências, o princípio de recognição, ou reconhecimento, não vai do indivíduo à espécie: ao contrário, ele vai da espécie ao indivíduo, da Identidade à semelhança. É a Identidade que vem primeiro: é a forma universal da espécie que nos permite reconhecer algo, e determiná-lo,  como isto ou aquilo. Até aqui, parece que Platão, Aristóteles e  Kant, além de Darwin,  têm razão...

O que vale para a vespa vale igualmente para a orquídea: cada orquídea que vemos é um indivíduo que pertence a uma espécie. Cada individuo é uma existência cuja essência é a espécie quem fornece. É a espécie que tem a Identidade mediante a qual os indivíduos se assemelham não apenas a ela, como também entre si .Um indivíduo vespa se assemelha à espécie vespa bem como a outro indivíduo vespa. Mas nenhum indivíduo vespa é idêntico à espécie vespa, assim como nenhum indivíduo vespa é idêntico a outro. Nenhuma vespa é "A" vespa: o artigo definido acompanha apenas a espécie ( aos indivíduos acompanha tão somente o artigo indefinido: uma vespa, uma orquídea). Somente a espécie pode ser definida, já que os indivíduos são sempre habitados por uma indefinição, ou indeterminação,  que nunca se separa totalmente deles. O que faz cada indivíduo diferir de outro é a mesma coisa que o faz não ser idêntico à espécie. Tal realidade diferenciante é a matéria ou potência. A potência é a Diferença sem identidade e semelhança.

Todavia, como mostram Deleuze e Guattari inspirando-se em Proust e na etologia, um devir  pode  acontecer entre uma  orquídea e uma vespa. Uma orquídea é diferente de outra orquídea, isso é certo. Apesar da diferença que as separa, há a semelhança que as une mediante a Identidade da espécie. Mas a diferença que há entre uma orquídea e uma vespa é completamente distinta da diferença que existe  entre os indivíduos de uma mesma espécie. Não obstante essa diferença, uma orquídea é capaz de estabelecer uma relação singularíssima com uma vespa.

Uma orquídea não tem pernas, pois a raiz a fixa ao solo. Uma orquídea não tem ouvidos ou olhos, embora ela tenha formas sutis de percepção do mundo que a rodeia. Entre as orquídeas  há uma distância que pode ser vencida nas asas de uma vespa.

 Sem sair do lugar,  sem ter olhos ou mãos, a orquídea  fabrica em suas pétalas o órgão genital de uma vespa fêmea. Diferentemente de um escultor, a orquídea esculpe sua obra em seu próprio ser, em seu próprio corpo, de tal modo que entre ela e sua arte nasce uma indistinção que suspende as leis e regras lógicas que presidem o mundo das espécies e dos indivíduos.

Ao ver o que pensa ser um outro indivíduo de sua mesma espécie, a vespa macho se une à vespa fêmea que a orquídea-artista  inventou para amar uma outra orquídea dela distante .Ao sair do seu ato de amor e ir pousar em outra  orquídea com seu corpo imantado de pólen, a vespa se torna o instrumento de amor entre as duas orquídeas que não se veem e nem se tocam, mas que se encontram e se amam por intermédio do apetite da vespa.

A orquídea inventou um devir-vespa, ao mesmo tempo em que a vespa entra em um devir-orquídea. A orquídea inventou  uma singularidade vespa. Não um indivíduo vespa, mas uma singularidade[1] vespa. Como dizem os medievais, uma hecceidade[2].

A espécie é como um molde ou fôrma, ao passo que o indivíduo é feito uma matéria que a fôrma informa, dando-lhe um limite. Mas a singularidade é uma modulação : ela é a implicação de uma forma e uma matéria na imanência das quais vive uma potência sempre em deslimite, como diria Manoel de Barros.

A orquídea inventou uma vespa feita de pétalas, assim como Van Gogh criou um girassol feito de tintas. Antes de ser a representação de uma vespa, o que a orquídea produziu foi a expressão de uma potência criativa que é imanente à vida. Enquanto a espécie é uma essência que não muda, posto que forma invariável, o devir-vespa da orquídea é uma essência enquanto "minadouro": dela minam sentidos de uma vida que se auto-inventa. O "minadouro", diz Manoel de Barros, é a fonte de onde a poesia nasce. E é dessa fonte que também nasce a vida que se afirma como processo que nenhuma forma pode reter ou conter.

A arte não é imitação da vida, ela é a vida mesma .A orquídea  inventou uma semelhança a partir de sua diferença, e fez passar uma vida que não se explica pela Identidade da espécie, mas pela potência de invenção.  Essa vida que passa "entre", que está sempre no meio e é meio de devir, nos faz compreender porque Deleuze afirma que "são os organismos que morrem, não a vida". São os organismos também que evoluem segundo um eixo paradigmático que vai do indivíduo à espécie. Porém o devir ocorre segundo um eixo horizontal sintagmático de agenciamento e conexão, uma evolução a-paralela, impensável segundo a concepção que pensa a evolução como progresso do menos perfeito ao mais perfeito. Se pensarmos a orquídea e a vespa como pontos em linhas diferentes, o devir é uma linha que passa entre esses dois pontos, na “vizinhança” de ambos, abrindo-os a um processo que os retira de suas respectivas linearidades, de tal modo que cada um se torna uma singularidade a compor um rizoma, um agenciamento.

A evolução se estabelece na relação de um indivíduo com sua espécie a partir de um meio, porém o devir acontece na relação de agenciamento entre diferenças que se tornam mútuas ( em “núpcias”), afirmando uma desterritorialização de cada uma em relação ao território determinado de suas respectivas espécies, e concomitante reterritorialização em um processo de invenção que vence as distâncias.

Em todo devir,  tanto na natureza quanto na filosofia e nas artes, o agente é o Afeto que inventa agenciamentos que potencializam a vida. Em seu devir, a orquídea produziu uma linha de fuga com as asas da vespa.

 

Referências do texto:

Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico, de Michel Tournier: páginas 106 e 107.

Diálogos, de Deleuze e Claíre Parnet: páginas 2 e 3.



[1] Há uma diferença entre as noções de “indivíduo” e “singularidade”. O indivíduo é parte de uma espécie, porém a singularidade expressa uma relação na qual ocorre um “agenciamento”, um devir. Somente nos singularizamos realmente quando fazemos parte ou entramos num devir.

[2] Hecceidade significa: qualidade que singulariza um ser, fazendo-o ser este ser.




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