Adoro orquídeas. Já nascem arte.
Clarice
Lispector
A arte é bem realizada quando com a natureza se parece;
e, por sua vez, a natureza é bem sucedida
quando expressa a arte em seu seio.
Longino
A vespa é um inseto, isso nos ensina a ciência. A orquídea é uma planta,
também a ciência a isso nos informa. "Informar" é dar uma forma, um
limite. A vespa é um indivíduo membro de uma espécie. A espécie fornece a
"identidade", ao passo que é graças à semelhança com a espécie que
podemos reconhecer um inseto como uma vespa. Porém, apesar das aparências, o
princípio de recognição, ou reconhecimento, não vai do indivíduo à espécie: ao
contrário, ele vai da espécie ao indivíduo, da Identidade à semelhança. É a
Identidade que vem primeiro: é a forma universal da espécie que nos permite
reconhecer algo, e determiná-lo, como
isto ou aquilo. Até aqui, parece que Platão, Aristóteles e Kant, além de Darwin, têm razão...
O que vale para a vespa vale igualmente para a orquídea: cada orquídea
que vemos é um indivíduo que pertence a uma espécie. Cada individuo é uma
existência cuja essência é a espécie quem fornece. É a espécie que tem a
Identidade mediante a qual os indivíduos se assemelham não apenas a ela, como
também entre si .Um indivíduo vespa se assemelha à espécie vespa bem como a
outro indivíduo vespa. Mas nenhum indivíduo vespa é idêntico à espécie vespa,
assim como nenhum indivíduo vespa é idêntico a outro. Nenhuma vespa é
"A" vespa: o artigo definido acompanha apenas a espécie ( aos
indivíduos acompanha tão somente o artigo indefinido: uma vespa, uma
orquídea). Somente a espécie pode ser definida, já que os indivíduos são sempre
habitados por uma indefinição, ou indeterminação, que nunca se separa totalmente deles. O que
faz cada indivíduo diferir de outro é a mesma coisa que o faz não ser idêntico
à espécie. Tal realidade diferenciante é a matéria ou potência. A potência é a
Diferença sem identidade e semelhança.
Todavia, como mostram Deleuze e Guattari inspirando-se em Proust e na
etologia, um devir pode acontecer entre uma orquídea e uma vespa. Uma orquídea é
diferente de outra orquídea, isso é certo. Apesar da diferença que as separa,
há a semelhança que as une mediante a Identidade da espécie. Mas a diferença
que há entre uma orquídea e uma vespa é completamente distinta da diferença que
existe entre os indivíduos de uma mesma
espécie. Não obstante essa diferença, uma orquídea é capaz de estabelecer uma
relação singularíssima com uma vespa.
Uma orquídea não tem pernas, pois a raiz a fixa ao solo. Uma orquídea não
tem ouvidos ou olhos, embora ela tenha formas sutis de percepção do mundo que a
rodeia. Entre as orquídeas há uma
distância que pode ser vencida nas asas de uma vespa.
Sem sair do lugar, sem ter olhos ou mãos, a orquídea fabrica em suas pétalas o órgão genital de
uma vespa fêmea. Diferentemente de um escultor, a orquídea esculpe sua obra em
seu próprio ser, em seu próprio corpo, de tal modo que entre ela e sua arte
nasce uma indistinção que suspende as leis e regras lógicas que presidem o
mundo das espécies e dos indivíduos.
Ao ver o que pensa ser um outro indivíduo de sua mesma espécie, a vespa
macho se une à vespa fêmea que a orquídea-artista inventou para amar uma outra orquídea dela
distante .Ao sair do seu ato de amor e ir pousar em outra orquídea com seu corpo imantado de pólen, a
vespa se torna o instrumento de amor entre as duas orquídeas que não se veem e
nem se tocam, mas que se encontram e se amam por intermédio do apetite da
vespa.
A orquídea inventou um devir-vespa, ao mesmo tempo em que a vespa
entra em um devir-orquídea. A orquídea inventou
uma singularidade vespa. Não um indivíduo vespa, mas uma singularidade[1]
vespa. Como dizem os medievais, uma hecceidade[2].
A espécie é como um molde ou fôrma, ao passo que o indivíduo é feito uma
matéria que a fôrma informa, dando-lhe um limite. Mas a singularidade é uma
modulação : ela é a implicação de uma forma e uma matéria na imanência das
quais vive uma potência sempre em deslimite, como diria Manoel de
Barros.
A orquídea inventou uma vespa feita de pétalas, assim como Van Gogh criou
um girassol feito de tintas. Antes de ser a representação de uma vespa, o que a
orquídea produziu foi a expressão de uma potência criativa que é imanente à
vida. Enquanto a espécie é uma essência que não muda, posto que forma
invariável, o devir-vespa da orquídea é uma essência enquanto
"minadouro": dela minam sentidos de uma vida que se auto-inventa. O
"minadouro", diz Manoel de Barros, é a fonte de onde a poesia nasce. E
é dessa fonte que também nasce a vida que se afirma como processo que nenhuma
forma pode reter ou conter.
A arte não é imitação da vida, ela é a vida mesma .A orquídea inventou uma semelhança a partir de sua
diferença, e fez passar uma vida que não se explica pela Identidade da espécie,
mas pela potência de invenção. Essa vida
que passa "entre", que está sempre no meio e é meio de devir, nos faz
compreender porque Deleuze afirma que "são os organismos que morrem, não a
vida". São os organismos também que evoluem segundo um eixo paradigmático
que vai do indivíduo à espécie. Porém o devir ocorre segundo um eixo horizontal
sintagmático de agenciamento e conexão, uma evolução a-paralela, impensável
segundo a concepção que pensa a evolução como progresso do menos perfeito ao
mais perfeito. Se pensarmos a orquídea e a vespa como pontos em linhas
diferentes, o devir é uma linha que passa entre esses dois pontos, na
“vizinhança” de ambos, abrindo-os a um processo que os retira de suas
respectivas linearidades, de tal modo que cada um se torna uma singularidade a
compor um rizoma, um agenciamento.
A evolução se estabelece na relação de um indivíduo com sua espécie a
partir de um meio, porém o devir acontece na relação de agenciamento entre
diferenças que se tornam mútuas ( em “núpcias”), afirmando uma
desterritorialização de cada uma em relação ao território determinado de suas
respectivas espécies, e concomitante reterritorialização em um processo de
invenção que vence as distâncias.
Em todo devir, tanto na natureza
quanto na filosofia e nas artes, o agente é o Afeto que inventa
agenciamentos que potencializam a vida. Em seu devir, a orquídea produziu uma linha
de fuga com as asas da vespa.
Referências do texto:
Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico, de Michel
Tournier: páginas 106 e 107.
Diálogos, de Deleuze e Claíre Parnet: páginas 2
e 3.
[1]
Há uma diferença entre as noções de “indivíduo” e “singularidade”. O indivíduo
é parte de uma espécie, porém a singularidade expressa uma relação na qual
ocorre um “agenciamento”, um devir. Somente nos singularizamos realmente quando
fazemos parte ou entramos num devir.
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