domingo, 12 de novembro de 2023

O Fio de Ariadne e as linhas de fuga

 

“Ariadne” significa “aranha”. Como a aranha, Ariadne é produtora de um fio: o “fio de Ariadne”. Enquanto as sinistras Moiras tecem prisões   com o férreo fio do Destino, e são elas que também cortam o fio da vida para assim trazer a morte, o fio de Ariadne é meio para    quem  quiser inventar novos caminhos, novas tramas conjugando vida e arte.

O fio de Ariadne tem a cor vermelha : ele se desprende de um novelo tal como o sangue se desprende do coração que o bombeia. O fio de Ariadne não nasce de um ponto e termina em outro, como as linhas traçadas com rígida régua. O fio de Ariadne nasce de um novelo do qual é puxado pela mão de quem, com ele,  se liberta.

“Novelo” significa: “novo elo”. O  novelo é um ventre potencial para novos elos. Quem tem dentro de si um tal novelo nunca fala e age só com o ego,   mas sempre a partir de uma ancestralidade cheia de vozes unida a um berçário de falas novas que  balbuciam inaugurais idiomas.

Não que nesse novelo tudo já esteja dito: ao contrário, é esse novelo que nos faz ter o que  dizer. Esse novelo é fonte para um “afloramento de falas”, diria Manoel de Barros. Riqueza não é ter dinheiro ou propriedades, riqueza é achar dentro de nós esse novelo  para com ele  criarmos  novos elos; e assim vencermos, quem sabe, esse funesto destino no qual as Moiras de hoje propagam violência e morte.

Ariadne tinha um par: Dioniso. Ao contrário do  labirinto  do Minotauro ,  a “besta” que aprisiona , o labirinto de Dioniso era produzido  por seu deambular sempre criador de direções novas. É por isso que de seus caminhos não há mapa ou estradas prévias.  Somente o fio de Ariadne traça e acompanha a liberdade de caminhos de Dioniso-Nômade-Andarilho.

Certa vez, Teseu quis entrar no labirinto para matar o Minotauro. Teseu representa a racionalidade masculina que teme a vida e quer dominar os instintos à força, já Minotauro simboliza as pulsões  que , instrumentalizadas pela ignorância,  sobem à cabeça e se tornam fanatismo, ódio rancoroso e violência bárbara.

 A “sede de sangue”  do Minotauro não vem do herbívoro touro, essa sede de  violência vem da parte humana acéfala, essa sim a verdadeira  “besta”. A  luta de Teseu contra o Minotauro simboliza o confronto entre uma cabeça teórica sem corpo contra um corpo sem cabeça. Nessa luta,  quem  sempre  perde é a vida que está no homem: seja pela neurose , quando a cabeça que nega o corpo  vence; seja pela barbárie , quando quem vence é o acéfalo.

Ariadne simboliza o fio da Vida ; Dioniso, o avançar da arte. O agenciamento de ambos cria linhas de fuga que transmutam as energias pulsionais em impulso para a vida avançar sempre mais, tal como ensina o verso de Manoel de Barros: “O andarilho abastece de pernas as distâncias.”





A palavra latina "occursus" , que aparece  na capa do livro sugerido aqui acima , tem sua origem na "Ética" de Espinosa . “Occursus”  foi traduzida como "encontro". Espinosa dizia que existem os bons e os maus encontros. Os bons encontros nos potencializam, enquanto os maus nos entristecem e despotencializam. Mas a palavra "occursus" também significa "circuito". E esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e tiraniza. “Linha de fuga” não é um caminho que leva à liberdade, linha de fuga é a liberdade fazendo-se caminho e circuito por onde as energias vitais possam avançar.




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