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Um dos meus museus
favoritos é o Museu de Imagens do Inconsciente, projeto realizado por Nise da
Silveira. Esse museu nos permite compreender também a diferença que há entre
informação e comunicação ( termos que são complementares, porém distintos).
Antes de entrarmos nesse
assunto, porém, é preciso fazer uma contextualização. Há três disciplinas que,
embora possuam nomes semelhantes, estudam objetos diferentes. Essas disciplinas
são: a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise.
A psicologia estuda o
comportamento humano do ponto de vista individual e social[1]
, sobretudo a partir da consciência e suas manifestações ( dentre as quais as
emoções). Já a psiquiatria é uma área da medicina, e tem por objeto o cérebro.
Em geral , os psiquiatras buscam explicações para os comportamentos humanos em
elementos químicos ou anatômicos do cérebro. Se um paciente procura um
psicólogo porque está deprimido ou ansioso, por exemplo, o psicólogo procura
entender a relação do paciente com suas emoções, sua interação ou não com
grupos, etc., e prescreverá terapias que
visam mudar o comportamento. Já o psiquiatra prescreverá antidepressivos ao paciente que o procura com
depressão ou ansiedade , sem investigar em detalhes a vida emocional e social do
paciente. O psicólogo considera seu paciente como sujeito, ao passo que o
psiquiatra o trata como objeto. Diferente do psicólogo e do psiquiatra, o
psicanalista estuda a relação do “analisando”[2]
com o seu inconsciente , isto é, com um tipo de realidade que escapa à
consciência e que , também, não pode ser explicado apenas pela química do
cérebro.
E aqui está o ponto
principal que gostaríamos de destacar: o psicanalista “acessa” os conteúdos
inconscientes do seu analisando por meios de relatos verbais que este lhe faz.
O psicanalista busca, no conteúdo manifesto, sentidos latentes e
ocultos que escapam à consciência do analisando, sobretudo porque tais
conteúdos trazem sentidos que contradizem a imagem ( idealizada ou não) que o
sujeito faz de si mesmo, revelando que o sujeito desconhece a si mesmo e aos
seus mais profundos desejos. E aqui está
o paradoxo: a linguagem verbal é o principal meio de acesso ao inconsciente (
porém não é o único) , mas essa mesma linguagem verbal mascara e censura esses
mesmos conteúdos inconscientes. Isso exige que o psicanalista seja como uma
espécie de “detetive” ( Freud amava as aventuras de Sherlock Holmes) que busca
as “pistas” que o inconsciente deixa no
uso que o sujeito faz da linguagem ( os lapsos, os esquecimentos, as
trocas de palavras, os silêncios, as censuras ou autocensuras, etc.).
Freud adota uma
classificação das enfermidades mentais formulada pela psiquiatria positivista do
século XIX, que dividia tais “enfermidades” em dois grupos : as Neuroses e as
Psicoses. Explicado de uma maneira
simples, a neurose nasce de um conflito entre a consciência do sujeito e seus
conteúdos inconscientes, conflito esse que se expressa em determinados sintomas portadores de
sofrimento ( melancolia, tristeza, fobias, ansiedades, manias...). Ou seja, na
neurose o sujeito mantém sua consciência
e sua noção de realidade, não há perda do sentido de realidade. Para Freud,
apenas a neurose pode ser tratada pelo método psicanalítico ( ancorado na
linguagem verbal) . Segundo ele, somente a psiquiatria poderia lidar com a psicose.
Há dois tipos básicos de
psicose[3]:
a paranoia e a esquizofrenia. Em ambas, há perda do sentido da realidade. Para Freud, quando há a perda do sentido de realidade, a própria
realidade do eu também é perdida, como consequência[4].
No neurótico há o sentido da realidade, mesmo que esse sentido o fruste e o
faça sofrer ( não só psiquicamente, mas
também fisicamente por intermédio de somatizações: uma enxaqueca, por
exemplo, pode ser a somatização de uma neurose).
Por perder o sentido da
realidade, o psicótico não consegue elaborar simbolicamente suas vivências por
intermédio da palavra, isto é, por meio do simbólico. É essa perda do sentido
da realidade que leva o psicótico a delirar. Delírio não é mesma coisa que
“fantasia”. Em geral os neuróticos fantasiam bastante[5],
uma vez que as fantasias funcionam como uma espécie de fuga , uma fuga
temporária, da realidade frustrante. Mas o delírio é uma fantasia sem freios, na
qual os produtos da imaginação delirante são tomados como se fossem realidade. De
maneira geral, os delírios dos paranoicos são auditivos ( eles ouvem coisas), enquanto
que dos esquizofrênicos são visuais (
eles veem coisas). Há a possibilidade também de essas enfermidades se juntarem
em uma mesma pessoa, tal como se pode ver no esquizo-paranoide[6]
.
Enfim, os psicóticos são
incapazes de estabelecer relações sociais, segundo Freud. Na visão desse mesmo autor, os psicóticos são fechados
neles mesmos, vivem um mundo à parte e, por essa razão, seriam incapazes de se
comunicarem.
Inicialmente, Jung
trabalhou com Freud. Mas divergências profundas o fizeram se afastar do pai da
psicanálise para assim trilhar um caminho próprio[7].
O principal ponto de divergência era a
ideia que cada um tinha acerca do inconsciente. Freud concebe o inconsciente
como uma instância individual cujos conteúdos são preponderantemente de
natureza sexual[8],
já Jung defendia que o inconsciente é constituído por aquilo que ele designará
como “arquétipos”, indo além da mera natureza sexual. Os arquétipos são
construções originárias do inconsciente coletivo. “Arqué-tipos”: “tipos originários”.
Nise da Silveira, a
idealizadora do Museu de Imagens do Inconsciente, era psiquiatra de formação.
Contudo, logo ela rompeu com a psiquiatria , considerando que essa ciência era
mais uma forma de poder coercitivo sobre
o ser humano do que uma prática que promovia a humanização. Por outro lado, a
psicanálise também não a satisfazia, uma vez que seu interesse clínico era
sobre a condição psicótica ( dos internos das instituições psiquiátricas) ,
condição essa que a psicanálise considerava impossível de receber tratamento. Por
esses e outros motivos, foi em Jung [9]que
Nise encontrou um suporte teórico para empreender sua prática revolucionária na
terapêutica dos psicóticos.
Ao contrário do que
imaginava Freud, os psicóticos ( que o senso comum chama de “loucos”) não são
ilhas incomunicáveis. Na verdade, eles perderam a capacidade de se comunicar
por meio das palavras. Mas as palavras atingem apenas a ponta do iceberg da
alma humana[10],
elas não alcançam as camadas mais profundas , as instâncias inconscientes.
Mas há um tipo de linguagem que consegue
alcançar essas profundezas, já que essa forma de linguagem se origina de lá. Quando sonhamos, por exemplo,
mergulhamos em tal linguagem. Quando acordamos, saímos de tal mundo das imagens
oníricas e vamos viver a realidade ; porém
os psicóticos são tomados por tais imagens enquanto estão acordados, de tal
modo que eles sonham de olhos abertos , mas sem saberem que estão sonhando .
Nise se refere às imagens
como essa linguagem originária que comunica conteúdos profundos . Mais do que
as palavras, são as imagens o tipo de linguagem que mais perto chega do
inconsciente coletivo. As poesias de Homero e Hesíodo, bem como toda a
mitologia, estão repletas dessas
imagens-arquétipos: a imagem do sol como símbolo arquetípico do Bem, a
imagem-arquetípica do navio ( ou barca) como símbolo da alma em sua viagem na
existência, a imagem-arquetípica da caveira como símbolo da morte, etc.
Enquanto as palavras são símbolos pertencentes a determinada língua de um povo
específico, as imagens ultrapassam essas barreiras nacionais e linguísticas,
tornando-se , desse modo, a linguagem
universal da humanidade.
Ao invés de manter os
psicóticos presos e o tempo todo
anestesiados por psicotrópicos pesadíssimos que os faziam parecer coisas inertes, Nise criou um ateliê de arte dentro da instituição
psiquiátrica na qual trabalhava[11]
, espaço no qual eles podiam pintar, esculpir, enfim, se expressarem e comunicar. A prática de Nise comprovou sua
teoria principal: a de que os chamados psicóticos também se comunicam, uma vez que
eles falam, por imagens, a língua universal dos arquétipos. É uma comunicação rica
e profunda, que dificilmente se deixa reduzir à mera informação. Nise descobriu
que mesmo nunca tendo lido Homero,
Hesíodo ou mitologia, os internos pintavam e esculpiam imagens que lembravam as
imagens[12]
narradas por esses poetas originários, o que levou Nise a defender , conforme a
teoria de Jung, que havia um inconsciente comum a Homero, a Hesíodo, aos
internos, enfim, um inconsciente coletivo do qual toda a humanidade faz parte.
Assim, ela recuperou a
humanidade e dignidade dos internos, fazendo-os obter conquistas consideráveis
de saúde mental , muitos parando de tomar remédios psiquiátricos.
O Museu de Imagens do
Inconsciente nos ensina que um museu não apenas documenta, preserva, comunica e
educa, um museu também pode ser um agente auxiliar de cura, ao mesmo tempo nos
mostrando a riqueza , incomensurável em palavras, que pode ter a comunicação humana.
2
Nise da Silveira dizia
que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende mais do que fazemos com nossas mãos do que
daquilo que teorizamos com nossa mente .
Talvez por isso
, depois de filosofar, Espinosa se dedicava a fabricar e polir
cuidadosamente lentes, como um simples artesão empregando suas mãos.
Após abstratos
raciocínios lógicos, Wittgenstein fechava
os livros para ir plantar flores
no jardim de uma escola, feito um jardineiro.
Deleuze costumava
desenhar linhas de fuga entre as aulas, nisso se assemelhando a um cartógrafo.
Plotino deixava seus solitários estudos metafísicos para ir alimentar com as próprias mãos pequenos
órfãos, como se fosse um cozinheiro.
Depois de escrever profundas páginas que , segundo dizem, até
lhe arrancavam lágrimas , Heráclito
construía lúdicos brinquedos de madeira
para as crianças, reinventando-se
carpinteiro.
Mas talvez ninguém tenha
ido mais longe com as mãos do que Arthur Bispo do Rosário. Desfazendo a forma
das roupas e uniformes com os quais o poder excludente o vestia, Bispo do Rosário desconstruiu
essas fôrmas , fôrmas físicas e simbólicas, até (re) descobrir o fio
livre que ali estava preso.
Com sua mão sendo o
instrumento para libertar criativamente sua mente, Bispo do Rosário reinventou um Fio de Ariadne para bordar sua linha de fuga: e por esse fio , Fio do Afeto, nossa mente também se liberta , horizonta[13]
e sara.
Sobretudo para aqueles
cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se
perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da
realidade próxima.
São essas mãos solidárias
que também nos protegem da “mão
invisível” do mercado (que apenas sabe
contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio); e é igualmente de mãos dadas com essas mãos educadoras que
podemos mais do que aqueles que, querendo nos pôr medo, só sabem usar as
mãos para segurar armas.
Enfim, somente mãos que conduzem, cuidam ,alimentam ou
transformam podem ser a afetiva âncora do pensamento no aqui e
agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto
para o qual sempre se desterritorializa e decola .
[1]
Um ramo recente da psicologia é a psicologia social.
[2] Muitos psicanalistas não gostam da
expressão “paciente”, uma vez que tal ideia conota “passividade”, e a psicanálise objetiva tirar
as pessoas da passividade.
[3]
“Psicopata” ou “sociopata” não são o mesmo que “psicótico”. Os psicopatas estão
na fronteira da psicose, mas não são psicóticos. Os psicopatas e sociopatas têm
o sentido da realidade, eles sabem o que fazem, e por isso são , em geral,
manipuladores , dissimulados e carentes de empatia, embora muitas vezes saibam
usar as palavras de forma persuasiva e “sedutora” , obtendo adesão por parte de
pessoas inseguras e carentes afetivamente. Via de regra, líderes de seitas (
religiosas ou políticas) são psicopatas.
[4] “Esquizofrenia”
tem por raiz “esquizo”: “fendido” ou “rachado”. O esquizofrênico tem seu eu
fendido, rachado, como uma porcelana que se quebraria e não recuperaria mais sua unidade.
[5]
Um exemplo disso é o personagem principal do filme “Beleza Americana”.
[6]
No filme Clube da Luta, o personagem principal, interpretado por Brad Pitt, era esquizo-paranoide. Ou melhor, o personagem
encenado por Edward Norton era um esquizo-paranoide com seu eu rachado, e uma
dessas partes rachadas delirava ser o personagem encenado pelo Brad.
[7]
Jung criou a Psicologia Analítica. Na verdade, seu método vai muito além
da psicologia tradicional , uma vez que
suas análises descobrem e investigam uma “psicologia profunda” ,mais coletiva
do que individual. O fundamento dessa psicologia profunda é o que Jung chamou de
“inconsciente coletivo.”
[8]
Não se deve confundir “sexualidade” com “sexo”. A sexualidade é uma energia que
se manifesta desde os primeiros anos de vida, muito antes de os órgãos genitais
estarem desenvolvidos e aptos para o ato sexual. Freud designa essa energia
como “libido”, sendo de natureza inconsciente.
[9]
O encontro com o filósofo Espinosa também foi fundamental para Nise. Ela narra
esse encontro no livro Cartas a Espinosa ( recentemente, participei como
palestrante do evento de lançamento da nova edição desse livro, evento que aconteceu no Museu de Imagens do Inconsciente).
[10]
Nise se refere à palavra cotidiana e prosaica, não à palavra tal como é vivida
sobretudo pelos poetas e artistas, uma vez que, neles, a palavra muitas vezes
se torna um meio para se mergulhar no inconsciente.
[11]
No início, ela encontrou grande resistência dos psiquiatras, que não aceitavam esse novo método terapêutico centrado na
ocupação pela arte ( também chamado de terapia ocupacional).
[12]
A linguagem por palavras igualmente é capaz de construir ricas imagens. Essas
imagens também se apresentam sob a forma de “figuras” : as “figuras de
linguagem”, tais como a metáfora, a metonímia, a alegoria, a hipérbole, etc. A
linguagem poética, por exemplo, é rica de figuras de linguagem. Conforme
texto-aula que escrevi ( “Objetos metafóricos, objetos metonímicos”) , os
objetos também podem ser pensados como expressando , ou “presentando”, tais
figuras de linguagem, pois linguagem é mais do que “língua” ( conforme tento
mostrar no texto-aula “Linguagem X Língua").
[13] A
expressão “horizonta” é tomada de empréstimo do poeta Manoel de Barros, que
dizia ser a poesia a linguagem dos “horizontamentos”, isto é, uma linguagem de
aberturas para o mundo, uma linguagem que vai além do ego e seus interesses limitados.
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