quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Nise e o Museu de Imagens do Inconsciente

 

 

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Um dos meus museus favoritos é o Museu de Imagens do Inconsciente, projeto realizado por Nise da Silveira. Esse museu nos permite compreender também a diferença que há entre informação e comunicação ( termos que são complementares, porém distintos).

Antes de entrarmos nesse assunto, porém, é preciso fazer uma contextualização. Há três disciplinas que, embora possuam nomes semelhantes, estudam objetos diferentes. Essas disciplinas são: a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise.

A psicologia estuda o comportamento humano do ponto de vista individual e social[1] , sobretudo a partir da consciência e suas manifestações ( dentre as quais as emoções). Já a psiquiatria é uma área da medicina, e tem por objeto o cérebro. Em geral , os psiquiatras buscam explicações para os comportamentos humanos em elementos químicos ou anatômicos do cérebro. Se um paciente procura um psicólogo porque está deprimido ou ansioso, por exemplo, o psicólogo procura entender a relação do paciente com suas emoções, sua interação ou não com grupos, etc., e  prescreverá terapias que visam mudar o comportamento. Já o psiquiatra prescreverá  antidepressivos ao paciente que o procura com depressão ou ansiedade , sem investigar  em detalhes a vida emocional e social do paciente. O psicólogo considera seu paciente como sujeito, ao passo que o psiquiatra o trata como objeto. Diferente do psicólogo e do psiquiatra, o psicanalista estuda a relação do “analisando”[2] com o seu inconsciente , isto é, com um tipo de realidade que escapa à consciência e que , também, não pode ser explicado apenas pela química do cérebro.

E aqui está o ponto principal que gostaríamos de destacar: o psicanalista “acessa” os conteúdos inconscientes do seu analisando por meios de relatos verbais que este lhe faz. O psicanalista busca, no conteúdo manifesto, sentidos latentes e ocultos que escapam à consciência do analisando, sobretudo porque tais conteúdos trazem sentidos que contradizem a imagem ( idealizada ou não) que o sujeito faz de si mesmo, revelando que o sujeito desconhece a si mesmo e aos seus mais profundos desejos.  E aqui está o paradoxo: a linguagem verbal é o principal meio de acesso ao inconsciente ( porém não é o único) , mas essa mesma linguagem verbal mascara e censura esses mesmos conteúdos inconscientes. Isso exige que o psicanalista seja como uma espécie de “detetive” ( Freud amava as aventuras de Sherlock Holmes) que busca as “pistas” que o inconsciente deixa no  uso que o sujeito faz da linguagem ( os lapsos, os esquecimentos, as trocas de palavras, os silêncios, as censuras ou autocensuras, etc.).

Freud adota uma classificação das enfermidades mentais formulada pela psiquiatria positivista do século XIX, que dividia tais “enfermidades” em dois grupos : as Neuroses e as Psicoses. Explicado  de uma maneira simples, a neurose nasce de um conflito entre a consciência do sujeito e seus conteúdos inconscientes, conflito esse que se expressa  em determinados sintomas portadores de sofrimento ( melancolia, tristeza, fobias, ansiedades, manias...). Ou seja, na neurose o sujeito  mantém sua consciência e sua noção de realidade, não há perda do sentido de realidade. Para Freud, apenas a neurose pode ser tratada pelo método psicanalítico ( ancorado na linguagem verbal) . Segundo ele, somente  a psiquiatria poderia lidar com a psicose.

Há dois tipos básicos de psicose[3]: a paranoia e a esquizofrenia. Em ambas, há perda do sentido da realidade. Para  Freud, quando  há a perda do sentido de realidade, a própria realidade do eu também é perdida, como consequência[4]. No neurótico há o sentido da realidade, mesmo que esse sentido o fruste e o faça sofrer ( não só psiquicamente, mas  também fisicamente por intermédio de somatizações: uma enxaqueca, por exemplo, pode ser a somatização de uma neurose).

Por perder o sentido da realidade, o psicótico não consegue elaborar simbolicamente suas vivências por intermédio da palavra, isto é, por meio do simbólico. É essa perda do sentido da realidade que leva o psicótico a delirar. Delírio não é mesma coisa que “fantasia”. Em geral os neuróticos fantasiam bastante[5], uma vez que as fantasias funcionam como uma espécie de fuga , uma fuga temporária, da realidade frustrante. Mas o delírio é uma fantasia sem freios, na qual os produtos da imaginação delirante são tomados como se fossem realidade. De maneira geral, os delírios dos paranoicos são auditivos ( eles ouvem coisas), enquanto  que dos esquizofrênicos são visuais ( eles veem coisas). Há a possibilidade também de essas enfermidades se juntarem em uma mesma pessoa, tal como se pode ver no esquizo-paranoide[6] .

Enfim, os psicóticos são incapazes de estabelecer relações sociais, segundo Freud. Na visão  desse mesmo autor, os psicóticos são fechados neles mesmos, vivem um mundo à parte e, por essa razão, seriam incapazes de se comunicarem.

Inicialmente, Jung trabalhou com Freud. Mas divergências profundas o fizeram se afastar do pai da psicanálise para assim trilhar um caminho próprio[7].  O principal ponto de divergência era a ideia que cada um tinha acerca do inconsciente. Freud concebe o inconsciente como uma instância individual cujos conteúdos são preponderantemente de natureza sexual[8], já Jung defendia que o inconsciente é constituído por aquilo que ele designará como “arquétipos”, indo além da mera natureza sexual. Os arquétipos são construções originárias do inconsciente coletivo. “Arqué-tipos”: “tipos originários”.  

Nise da Silveira, a idealizadora do Museu de Imagens do Inconsciente, era psiquiatra de formação. Contudo, logo ela rompeu com a psiquiatria , considerando que essa ciência era mais uma forma de  poder coercitivo sobre o ser humano do que uma prática que promovia a humanização. Por outro lado, a psicanálise também não a satisfazia, uma vez que seu interesse clínico era sobre a condição psicótica ( dos internos das instituições psiquiátricas) , condição essa que a psicanálise considerava impossível de receber tratamento. Por esses e outros motivos, foi em Jung [9]que Nise encontrou um suporte teórico para empreender sua prática revolucionária na terapêutica dos psicóticos.

Ao contrário do que imaginava Freud, os psicóticos ( que o senso comum chama de “loucos”) não são ilhas incomunicáveis. Na verdade, eles perderam a capacidade de se comunicar por meio das palavras. Mas as palavras atingem apenas a ponta do iceberg da alma humana[10], elas não alcançam as camadas mais profundas , as instâncias inconscientes.

 Mas há um tipo de linguagem que consegue alcançar essas profundezas, já que essa forma de linguagem se origina  de lá. Quando sonhamos, por exemplo, mergulhamos em tal linguagem. Quando acordamos, saímos de tal mundo das imagens  oníricas e vamos viver a realidade ; porém os psicóticos são tomados por tais imagens enquanto estão acordados, de tal modo que eles sonham de olhos abertos , mas sem saberem que estão sonhando .

Nise se refere às imagens como essa linguagem originária que comunica conteúdos profundos . Mais do que as palavras, são as imagens o tipo de linguagem que mais perto chega do inconsciente coletivo. As poesias de Homero e Hesíodo, bem como toda a mitologia,  estão repletas dessas imagens-arquétipos: a imagem do sol como símbolo arquetípico do Bem, a imagem-arquetípica do navio ( ou barca) como símbolo da alma em sua viagem na existência, a imagem-arquetípica da caveira como símbolo da morte, etc. Enquanto as palavras são símbolos pertencentes a determinada língua de um povo específico, as imagens ultrapassam essas barreiras nacionais e linguísticas, tornando-se , desse modo,  a linguagem universal da humanidade.

Ao invés de manter os psicóticos presos  e o tempo todo anestesiados por psicotrópicos pesadíssimos que os faziam parecer  coisas inertes, Nise criou  um  ateliê de arte dentro da instituição psiquiátrica na qual trabalhava[11] , espaço no qual eles podiam pintar, esculpir, enfim, se expressarem  e comunicar. A prática de Nise comprovou sua teoria principal: a de que os chamados psicóticos também se comunicam, uma vez que eles falam, por imagens, a língua universal dos arquétipos. É uma comunicação rica e profunda, que dificilmente se deixa reduzir à mera informação. Nise descobriu que  mesmo nunca tendo lido Homero, Hesíodo ou mitologia, os internos pintavam e esculpiam imagens que lembravam as imagens[12] narradas por esses poetas originários, o que levou Nise a defender , conforme a teoria de Jung, que havia um inconsciente comum a Homero, a Hesíodo, aos internos, enfim, um inconsciente coletivo do qual  toda a humanidade faz parte.

Assim, ela recuperou a humanidade e dignidade dos internos, fazendo-os obter conquistas consideráveis de saúde mental , muitos parando de tomar remédios psiquiátricos.

O Museu de Imagens do Inconsciente nos ensina que um museu não apenas documenta, preserva, comunica e educa, um museu também pode ser um agente auxiliar de cura, ao mesmo tempo nos mostrando a riqueza , incomensurável em palavras,  que pode ter a comunicação humana.

 

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Nise da Silveira dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende  mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente .

Talvez  por isso  , depois de filosofar, Espinosa se dedicava a fabricar e  polir  cuidadosamente lentes, como um simples artesão empregando suas mãos.

Após abstratos raciocínios lógicos, Wittgenstein fechava  os livros para ir plantar  flores no jardim de uma escola, feito um jardineiro.

Deleuze costumava desenhar linhas de fuga entre as aulas, nisso se assemelhando a um cartógrafo.

Plotino deixava  seus solitários  estudos metafísicos para  ir alimentar com as próprias mãos pequenos órfãos, como se fosse um cozinheiro.

Depois de escrever  profundas páginas que , segundo dizem, até lhe arrancavam lágrimas ,   Heráclito construía lúdicos   brinquedos de madeira para as crianças,  reinventando-se carpinteiro.

Mas talvez ninguém tenha ido mais longe com as mãos do que Arthur Bispo do Rosário. Desfazendo a forma das roupas e uniformes com os quais o poder excludente o vestia,  Bispo do Rosário  desconstruiu  essas fôrmas , fôrmas físicas e simbólicas, até (re) descobrir o fio livre que ali estava preso.

Com sua mão sendo o instrumento para libertar criativamente sua mente,  Bispo do Rosário reinventou  um Fio de Ariadne para bordar sua  linha de fuga:  e por esse fio , Fio do Afeto,  nossa mente também se liberta , horizonta[13] e sara.

Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima.

São essas mãos solidárias que também nos protegem   da “mão invisível” do mercado (que  apenas sabe contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio); e é igualmente  de mãos dadas com essas mãos educadoras que podemos mais  do que aqueles  que, querendo nos pôr medo, só sabem usar as mãos para segurar armas.

Enfim, somente  mãos que conduzem, cuidam ,alimentam ou transformam  podem ser    a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto  para o qual sempre se desterritorializa e decola .



[1] Um ramo recente da psicologia é a psicologia social.

[2] Muitos psicanalistas não gostam da expressão “paciente”, uma vez que tal ideia conota  “passividade”, e a psicanálise objetiva tirar as pessoas da passividade.

 

[3] “Psicopata” ou “sociopata” não são o mesmo que “psicótico”. Os psicopatas estão na fronteira da psicose, mas não são psicóticos. Os psicopatas e sociopatas têm o sentido da realidade, eles sabem o que fazem, e por isso são , em geral, manipuladores , dissimulados e carentes de empatia, embora muitas vezes saibam usar as palavras de forma persuasiva e “sedutora” , obtendo adesão por parte de pessoas inseguras e carentes afetivamente. Via de regra, líderes de seitas ( religiosas ou políticas) são psicopatas.

[4] “Esquizofrenia” tem por raiz “esquizo”: “fendido” ou “rachado”. O esquizofrênico tem seu eu fendido, rachado, como uma porcelana que se quebraria  e não recuperaria mais sua unidade.

[5] Um exemplo disso é o personagem principal do filme “Beleza Americana”.

[6] No filme Clube da Luta, o personagem principal, interpretado por Brad Pitt,  era esquizo-paranoide. Ou melhor, o personagem encenado por Edward Norton era um esquizo-paranoide com seu eu rachado, e uma dessas partes rachadas delirava ser o personagem encenado pelo Brad.

[7] Jung criou a Psicologia Analítica. Na verdade, seu método vai muito além da  psicologia tradicional , uma vez que suas análises descobrem e investigam uma “psicologia profunda” ,mais coletiva do que individual. O fundamento dessa psicologia profunda é o que Jung chamou de “inconsciente coletivo.”

[8] Não se deve confundir “sexualidade” com “sexo”. A sexualidade é uma energia que se manifesta desde os primeiros anos de vida, muito antes de os órgãos genitais estarem desenvolvidos e aptos para o ato sexual. Freud designa essa energia como “libido”, sendo de natureza inconsciente.

[9] O encontro com o filósofo Espinosa também foi fundamental para Nise. Ela narra esse encontro no livro Cartas a Espinosa ( recentemente, participei como palestrante do evento de lançamento da nova edição desse livro, evento que  aconteceu no Museu de Imagens do Inconsciente).

[10] Nise se refere à palavra cotidiana e prosaica, não à palavra tal como é vivida sobretudo pelos poetas e artistas, uma vez que, neles, a palavra muitas vezes se torna um meio para se mergulhar no inconsciente.

[11] No início, ela encontrou grande resistência dos psiquiatras, que não aceitavam  esse novo método terapêutico centrado na ocupação pela arte ( também chamado de terapia ocupacional).

[12] A linguagem por palavras igualmente é capaz de construir ricas imagens. Essas imagens também se apresentam sob a forma de “figuras” : as “figuras de linguagem”, tais como a metáfora, a metonímia, a alegoria, a hipérbole, etc. A linguagem poética, por exemplo, é rica de figuras de linguagem. Conforme texto-aula que escrevi ( “Objetos metafóricos, objetos metonímicos”) , os objetos também podem ser pensados como expressando , ou “presentando”, tais figuras de linguagem, pois linguagem é mais do que “língua” ( conforme tento mostrar no texto-aula “Linguagem X Língua").

[13] A expressão “horizonta” é tomada de empréstimo do poeta Manoel de Barros, que dizia ser a poesia a linguagem dos “horizontamentos”, isto é, uma linguagem de aberturas para o mundo, uma linguagem que vai além do ego e seus interesses limitados.




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