Há
uma ideia fundamental do existencialismo sartreano: “A existência precede a
essência”. Mas a existência não precede a essência tal como a madeira precede a
cadeira que virará, pois a madeira não escolheu virar uma cadeira de madeira, alguém escolheu por ela. A madeira não
é escolha, ela não possui subjetividade. A existência só faz sentido para um
ser dotado de subjetividade. Este é o sinônimo de existência: subjetividade. O
homem pode escolher uma essência para defini-lo,
e dizer “eu sou um professor”, “eu sou um médico”, “eu sou um policial”, porém
essas “essências” nunca darão a ele um ser definitivo que esgote as
possibilidades de ele ser outra coisa. Até mesmo quando um homem diz : “eu sou
um homem”, mesmo aqui a mera definição de ser um homem não torna alguém de fato
um homem, a não ser em palavras, pois ser um homem não é um título ou uma
etiqueta, mas depende de nossas escolhas: ser um homem é escolher a humanidade,
o conhecimento, a liberdade, a ética e, sobretudo, ser responsável por essas
escolhas.
“A
existência precede a essência” significa: O
ato de escolher sempre precede aquilo que escolhemos. A possibilidade precede toda realidade
que escolhemos ser . Antes de ser uma cadeira de madeira, a madeira poderia se
tornar uma mesa ou uma estátua de madeira. Mas se tornar uma coisa ou outra ela
não pode escolher. Tampouco a madeira escolhe ser madeira: ela simplesmente o é. Virar uma cadeira, uma mesa ou
estátua não é escolha dela. O Ser não escolhe ser ( existir): ele simplesmente
é. O homem não pode ser sem escolher ser
o seu projeto de ser. Escolher não é definir, escolher é afirmar a
possibilidade de ser enquanto processo aberto. A madeira não escolhe ser a mesa
porque ela não age para tal, ela é agida por alguém que escolhe por ela.
Acontece algo análogo com o homem quando toma para si
uma essência que o define excluindo a possibilidade de ser outra coisa. Quem se
define assim está se escolhendo não ter
escolha, está fugindo de sua liberdade, como um barco que ancora no porto e vai
envelhecendo ali. Não há definição do homem, pois mesmo a definição é uma
escolha que se ignora.
A
escolha autêntica é aquela na qual tenho
consciência de minha escolha. Quando escolho de forma autêntica ser um ser
humano, escolho introduzir na essência um campo de possíveis, de tal maneira
que reinvento o que é ser um ser humano, religando a essência à minha
existência. Escolher autenticamente é ligar a essência ao campo de
possibilidades que vai além dos limites lógicos e epistemológicos da essência.
Quando
escolho inautenticamente ser professor, na verdade me comporto como um ator
pouco criativo, nada indagador e ativo, que apenas se adapta ao papel prévio
que escolheu para ele o diretor. Quem é o diretor? Sartre não tem dúvida que
esse diretor é o sistema que nos desumaniza, insensibiliza e rouba de nós os
nossos possíveis, a nossa liberdade. Esse diretor é o sistema, o poder, o
capitalismo. Esse diretor faz de nós figurantes de nossa própria vida, e o pior
é que ele nos ilude fazendo-nos crer ( a “má-fé”) que somos nós que escolhemos
suas escolhas.
Quando
escolho ser professor autenticamente, na verdade vejo que ser professor é uma
possibilidade minha, de minha existência, e não uma essência que esgota todas
as minhas possiblidades. E o que é ser um professor autenticamente? A história
mostra que os professores que melhor foram professores nunca foram apenas
professores, foram também poetas, libertários, artistas, inovadores, enfim,
pessoas, mas sem deixar de serem professores, porém enriquecendo tal atividade,
tornando-a mais próxima da existência.
A
liberdade não é um exercício meramente subjetivo da vontade, a liberdade
envolve nosso ser inteiro, pois em nosso projeto de ser também está implicado o
que pensamos , desejamos e imaginamos. Não existem , separados, a vontade e a
consciência. A vontade é a própria consciência que se tornou ativa; a vontade é
a própria consciência consciente do seu
querer. E é sempre em uma situação concreta que podemos ser livres, uma vez que a liberdade não é um
dado interno à nossa subjetividade. A liberdade é a expressão de nossas
possibilidades querendo se realizar no mundo, apesar da inextirpável
contingência deste mesmo mundo.
Essa
frase de Sartre que intitula nosso texto é uma crítica à filosofia tradicional
que afirmava o inverso, dizendo: “A essência precede a existência”. Vejamos o
exemplo mais representativo dessa postura: Aristóteles.
Resumiremos , de forma bem simples, a visão de
Aristóteles. Uma mesa para existir enquanto indivíduo concreto, para ser “esta
mesa” onde apoio meu caderno, tal ser precisou de outros seres que existiram
antes dele. Se não existissem esses seres antes, esta mesa não poderia estar
aqui à minha frente. Antes de a mesa existir, foi preciso que existissem: a
madeira de que ela é feita ( ou seja, foi preciso que existisse a árvore), foi
preciso também que existissem: o serrote, os pregos, os martelos...Foi preciso
que existisse também o carpinteiro que a fez. Não “O” carpinteiro em geral, mas
este carpinteiro individual. E o mais importante: para esta mesa ter sido
produzida foi necessário que o carpinteiro a fabricasse a partir de uma ideia
que ele tinha em seu intelecto. Por último, e não menos importante, foi
indispensável que o carpinteiro tivesse em mente para qual fim ele resolveu criar tal mesa. Ele não a criou por diversão ou
por puro acaso, pois ninguém produz uma mesa por acaso, argumenta Aristóteles.
O carpinteiro já sabia o que queria produzir. Então, cabe a pergunta: de todas
as coisas que já existiam antes de a mesa concreta ter sido fabricada, qual era
a mais indispensável? Qual desses seres que preexistiam à produção da cadeira
era o mais necessário?
Em
tudo o que é produzido, pelo homem ou pela natureza, é sempre o mais necessário
que vem primeiro. Então, na produção da simples mesa podemos elencar quatro causas necessárias à sua
produção: a causa material ( a
madeira), a causa instrumental (
também chamada de motriz ou eficiente : os instrumentos, inclusive os braços e
a força física do carpinteiro), a causa
formal ( a essência ou forma “cadeira” que existe no interior do intelecto
do carpinteiro) e a causa final (
que é o fim para o qual a cadeira fora feita).Uma cadeira pode ser de madeira
ou ferro. Logo, a causa material pode variar. Pode variar também a causa
eficiente , conforme o carpinteiro empregue este ou aquele instrumento. Mas não
podem variar a causa formal e a causa final. A causa formal não pode variar
porque o carpinteiro não pode ter na mente a forma ou modelo de uma cadeira e
produzir, no entanto, uma mesa. Se ele quiser produzir uma cadeira, ele precisa
primeiro definir o que é uma cadeira de maneira universal. A madeira não se transforma
sozinha em uma cadeira, tampouco os braços do carpinteiro e as ferramentas
produzirão uma cadeira sem que, antes, o carpinteiro saiba o que é uma cadeira. Então, parece que de
todas as causas a mais necessária seria a causa que dá a essência. A causa que
dá a essência, e que diz o que uma coisa é, já sabemos que é a causa formal.
Mas e a causa final, ela estaria subordinada também à causa formal, à essência?
Sabemos
que tanto Aristóteles quanto São Tomás enfatizam a causa final. É esta a mais
determinante. A causa formal determina o que uma coisa é, sua essência.
Todavia, a causa final parece determinar algo mais profundo, mais decisivo, e
que somente a causa formal não pode determinar.
Recapitulemos
alguns pontos do problema. Como vimos, é este carpinteiro enquanto indivíduo
que produz esta cadeira. Sozinha, em seu aspecto puramente formal, a essência,
ou causa formal, não pode produzir esta cadeira, pois ela necessita das outras
causas. Sobretudo, ela necessita da causa instrumental. É preciso não perder de
vista essa diferença entre as ordens causais. Pois bem, somente a causa formal não pode pôr a existência da cadeira.
Uma
coisa é a cadeira enquanto forma na mente do carpinteiro, pois esta forma é
universal, destituída de matéria ou potência. Ela sozinha não é um ente. Porém, e este é o ponto mais importante,
para ela passar à existência, e se tornar um ente dotado de essência e
existência, não bastam apenas a causa material e a instrumental, é
necessária a causa final. A causa final determina o porquê ou a razão de criarmos uma cadeira, e não o que ela é apenas. Enquanto nos
circunscrevemos à questão do que é uma cadeira, é a causa formal que tem
autoridade e responde. Todavia, quando indagamos acerca da razão de existir uma
cadeira, somente a causa formal, a que dá a essência, somente ela não tem como
responder, pois é preciso a causa final. E a causa final não concerne apenas à
essência, ela diz respeito também, e sobretudo, à existência ( como causa
motriz última) . Logo, a causa final determina sobretudo o ente enquanto união
da forma com a matéria, do ato com a potência. Mas ela não é uma causa física,
como o são as causas material e instrumental. Ela, a causa final , é uma causa
metafísica, no caso do homem e dos seres naturais.
Substituamos a cadeira pelo homem. A causa
formal é a essência comum a todos os homens. Todavia, o homem enquanto ente não é apenas essa forma
essencial, pois todo ente existe. E o homem não pode existir a não ser como
Pedro, Carlos, Joana, etc. Suponhamos que Paulo é o pai de Pedro. Paulo é a
causa instrumental ( ou causa motriz próxima) na produção de Pedro. A forma
homem já existe em ato na alma de Paulo. Porém, para Pedro existir é preciso a
causa final. É esta que dirá para quê Pedro existe. E ele não existe apenas
para ser filho de Paulo. A existência de Pedro confere atualidade ao ato de existir da essência. Assim, não são apenas a
causa material , instrumental e formal que explicam o ente que o homem é, é
preciso a causa final: é esta que dá
sentido à sua existência ,
à sua vida. É essa causa final que confere à existência do homem uma finalidade
metafísica.
Em
todos os seres finitos a existência não pode vir da própria essência, já que a
essência é sempre uma forma universal. Por outro lado, a existência do ente
finito não pode vir apenas das causas materiais. Assim, é a causa final que
responde pela existência dos entes finitos dotados de matéria e forma. Em Tomás
de Aquino, por sua vez, nos seres finitos a existência é recebida, participada. Deve existir ,por isso, um ente perfeito que seja a própria
existência. Nesse ente perfeito a
essência necessariamente existe, independentemente das causas materiais. Por
isso, esse ente perfeito é auto-existente: ele é seu próprio existir.
Nesse
modelo aristotélico-tomista, é Deus a razão de ser de toda existência. O
artesão produz este indivíduo cadeira ,
mas ele não produz a essência que determinará a madeira a se tornar cadeira. A
essência precederia a produção da
existência da cadeira. É contra essa ideia que se volta a frase sartreana. E para levar sua crítica às últimas consequências, Sartre traz a
questão da existência para o âmbito do homem, isto é, do humanismo, retirando-a
do âmbito teológico-metafísico. Em Aristóteles, a essência precede a produção
da existência. “Produção” é “poiésis” em grego, o que significa dizer que, no
Realismo aristotélico-tomista, a lógica antecede a poesia, o conhecimento viria
antes do que fazemos com esse conhecimento. Em Sartre, ao contrário, existir é
tomar consciência de que a existência é sempre poética da existência, isto é,
possibilidade que se realiza, agindo.
É
por isso que Existencialismo não é Realismo:
este crê que existem Essências que conferem sentido e inteligibilidade à existência, ao passo que o Existencialismo
defende que o sentido da existência não lhe
é prévio , somos nós que,
existindo, damos sentido à existência.
Embora
Sartre defenda que não existe uma essência que nos defina, ele considera no
entanto que não podemos compreender o que somos sem nos colocarmos dentro da condição
humana . A condição humana não é uma essência universal e abstrata, ela é a
marca de que estamos inseridos num tempo, num espaço e em determinada situação.
Agir livremente é sempre agir para mudar inumanas condições que apequenam e
sujeitam o homem a viver uma existência de renúncia , medo, ignorância, resignação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário