sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Sartre e o existencialismo

 

Há uma ideia fundamental do existencialismo sartreano: “A existência precede a essência”. Mas a existência não precede a essência tal como a madeira precede a cadeira que virará, pois a madeira não escolheu virar uma cadeira de madeira, alguém escolheu por ela. A madeira não é escolha, ela não possui subjetividade. A existência só faz sentido para um ser dotado de subjetividade. Este é o sinônimo de existência: subjetividade. O homem pode escolher  uma essência para defini-lo, e dizer “eu sou um professor”, “eu sou um médico”, “eu sou um policial”, porém essas “essências” nunca darão a ele um ser definitivo que esgote as possibilidades de ele ser outra coisa. Até mesmo quando um homem diz : “eu sou um homem”, mesmo aqui a mera definição de ser um homem não torna alguém de fato um homem, a não ser em palavras, pois ser um homem não é um título ou uma etiqueta, mas depende de nossas escolhas: ser um homem é escolher a humanidade, o conhecimento, a liberdade, a ética e, sobretudo, ser responsável por essas escolhas.

“A existência precede a essência” significa: O ato de escolher sempre precede aquilo que escolhemos. A possibilidade precede toda realidade que escolhemos ser . Antes de ser uma cadeira de madeira, a madeira poderia se tornar uma mesa ou uma estátua de madeira. Mas se tornar uma coisa ou outra ela não pode escolher. Tampouco a madeira escolhe ser madeira: ela simplesmente o é. Virar uma cadeira, uma mesa ou estátua não é escolha dela. O Ser não escolhe ser ( existir): ele simplesmente é. O homem não pode ser sem escolher ser o seu projeto de ser. Escolher não é definir, escolher é afirmar a possibilidade de ser enquanto processo aberto. A madeira não escolhe ser a mesa porque ela não age para tal, ela é agida por alguém que escolhe por ela.

Acontece  algo análogo com o homem quando toma para si uma essência que o define excluindo a possibilidade de ser outra coisa. Quem se define assim está  se escolhendo não ter escolha, está fugindo de sua liberdade, como um barco que ancora no porto e vai envelhecendo ali. Não há definição do homem, pois mesmo a definição é uma escolha que se ignora.

A escolha autêntica é aquela  na qual tenho consciência de minha escolha. Quando escolho de forma autêntica ser um ser humano, escolho introduzir na essência um campo de possíveis, de tal maneira que reinvento o que é ser um ser humano, religando a essência à minha existência. Escolher autenticamente é ligar a essência ao campo de possibilidades que vai além dos limites lógicos e epistemológicos da essência.

Quando escolho inautenticamente ser professor, na verdade me comporto como um ator pouco criativo, nada indagador e ativo, que apenas se adapta ao papel prévio que escolheu para ele o diretor. Quem é o diretor? Sartre não tem dúvida que esse diretor é o sistema que nos desumaniza, insensibiliza e rouba de nós os nossos possíveis, a nossa liberdade. Esse diretor é o sistema, o poder, o capitalismo. Esse diretor faz de nós figurantes de nossa própria vida, e o pior é que ele nos ilude fazendo-nos crer ( a “má-fé”) que somos nós que escolhemos suas escolhas.

Quando escolho ser professor autenticamente, na verdade vejo que ser professor é uma possibilidade minha, de minha existência, e não uma essência que esgota todas as minhas possiblidades. E o que é ser um professor autenticamente? A história mostra que os professores que melhor foram professores nunca foram apenas professores, foram também poetas, libertários, artistas, inovadores, enfim, pessoas, mas sem deixar de serem professores, porém enriquecendo tal atividade, tornando-a mais próxima da existência.

A liberdade não é um exercício meramente subjetivo da vontade, a liberdade envolve nosso ser inteiro, pois em nosso projeto de ser também está implicado o que pensamos , desejamos e imaginamos. Não existem , separados, a vontade e a consciência. A vontade é a própria consciência que se tornou ativa; a vontade é a própria   consciência consciente do seu querer. E é sempre em uma situação concreta que podemos  ser livres, uma vez que a liberdade não é um dado interno à nossa subjetividade. A liberdade é a expressão de nossas possibilidades querendo se realizar no mundo, apesar da inextirpável contingência deste mesmo mundo.

Essa frase de Sartre que intitula nosso texto é uma crítica à filosofia tradicional que afirmava o inverso, dizendo: “A essência precede a existência”. Vejamos o exemplo mais representativo dessa postura: Aristóteles.

Resumiremos  , de forma bem simples, a visão de Aristóteles. Uma mesa para existir enquanto indivíduo concreto, para ser “esta mesa” onde apoio meu caderno, tal ser precisou de outros seres que existiram antes dele. Se não existissem esses seres antes, esta mesa não poderia estar aqui à minha frente. Antes de a mesa existir, foi preciso que existissem: a madeira de que ela é feita ( ou seja, foi preciso que existisse a árvore), foi preciso também que existissem: o serrote, os pregos, os martelos...Foi preciso que existisse também o carpinteiro que a fez. Não “O” carpinteiro em geral, mas este carpinteiro individual. E o mais importante: para esta mesa ter sido produzida foi necessário que o carpinteiro a fabricasse a partir de uma ideia que ele tinha em seu intelecto. Por último, e não menos importante, foi indispensável que o carpinteiro tivesse em mente para qual fim ele resolveu criar tal mesa. Ele não a criou por diversão ou por puro acaso, pois ninguém produz uma mesa por acaso, argumenta Aristóteles. O carpinteiro já sabia o que queria produzir. Então, cabe a pergunta: de todas as coisas que já existiam antes de a mesa concreta ter sido fabricada, qual era a mais indispensável? Qual desses seres que preexistiam à produção da cadeira era o mais necessário?

Em tudo o que é produzido, pelo homem ou pela natureza, é sempre o mais necessário que vem primeiro. Então, na produção da simples mesa podemos elencar quatro causas necessárias à sua produção: a causa material ( a madeira), a causa instrumental ( também chamada de motriz ou eficiente : os instrumentos, inclusive os braços e a força física do carpinteiro), a causa formal ( a essência ou forma “cadeira” que existe no interior do intelecto do carpinteiro) e a causa final ( que é o fim para o qual a cadeira fora feita).Uma cadeira pode ser de madeira ou ferro. Logo, a causa material pode variar. Pode variar também a causa eficiente , conforme o carpinteiro empregue este ou aquele instrumento. Mas não podem variar a causa formal e a causa final. A causa formal não pode variar porque o carpinteiro não pode ter na mente a forma ou modelo de uma cadeira e produzir, no entanto, uma mesa. Se ele quiser produzir uma cadeira, ele precisa primeiro definir o que é uma cadeira de maneira universal. A madeira não se transforma sozinha em uma cadeira, tampouco os braços do carpinteiro e as ferramentas produzirão uma cadeira sem que, antes, o carpinteiro saiba o que é uma cadeira. Então, parece que de todas as causas a mais necessária seria a causa que dá a essência. A causa que dá a essência, e que diz o que uma coisa é, já sabemos que é a causa formal. Mas e a causa final, ela estaria subordinada também à causa formal, à essência?

Sabemos que tanto Aristóteles quanto São Tomás enfatizam a causa final. É esta a mais determinante. A causa formal determina o que uma coisa é, sua essência. Todavia, a causa final parece determinar algo mais profundo, mais decisivo, e que somente a causa formal não pode determinar.

Recapitulemos alguns pontos do problema. Como vimos, é este carpinteiro enquanto indivíduo que produz esta cadeira. Sozinha, em seu aspecto puramente formal, a essência, ou causa formal, não pode produzir esta cadeira, pois ela necessita das outras causas. Sobretudo, ela necessita da causa instrumental. É preciso não perder de vista essa diferença entre as ordens causais. Pois bem, somente a causa formal não pode pôr a existência da cadeira.

Uma coisa é a cadeira enquanto forma na mente do carpinteiro, pois esta forma é universal, destituída de matéria ou potência. Ela sozinha não é um ente. Porém, e este é o ponto mais importante, para ela passar à existência, e se tornar um ente dotado de essência e existência, não bastam apenas a causa material e a instrumental,  é necessária a causa final. A causa final determina o porquê ou a razão de criarmos uma cadeira, e não o que ela é apenas. Enquanto nos circunscrevemos à questão do que é uma cadeira, é a causa formal que tem autoridade e responde. Todavia, quando indagamos acerca da razão de existir uma cadeira, somente a causa formal, a que dá a essência, somente ela não tem como responder, pois é preciso a causa final. E a causa final não concerne apenas à essência, ela diz respeito também, e sobretudo, à existência ( como causa motriz última) . Logo, a causa final determina sobretudo o ente enquanto união da forma com a matéria, do ato com a potência. Mas ela não é uma causa física, como o são as causas material e instrumental. Ela, a causa final , é uma causa metafísica, no caso do homem e dos seres naturais.

 Substituamos a cadeira pelo homem. A causa formal é a essência comum a todos os homens. Todavia,  o homem enquanto ente não é apenas essa forma essencial, pois todo ente existe. E o homem não pode existir a não ser como Pedro, Carlos, Joana, etc. Suponhamos que Paulo é o pai de Pedro. Paulo é a causa instrumental ( ou causa motriz próxima) na produção de Pedro. A forma homem já existe em ato na alma de Paulo. Porém, para Pedro existir é preciso a causa final. É esta que dirá para quê Pedro existe. E ele não existe apenas para ser filho de Paulo. A existência de Pedro confere atualidade ao ato de existir da essência. Assim, não são apenas a causa material , instrumental e formal que explicam o ente que o homem é, é preciso a causa final:  é esta que dá sentido à sua existência~enciae formal que explicam o ente que o homem  homem. do por que uma caidera  formal n, à sua vida. É essa causa final que confere à existência do homem uma finalidade metafísica.

Em todos os seres finitos a existência não pode vir da própria essência, já que a essência é sempre uma forma universal. Por outro lado, a existência do ente finito não pode vir apenas das causas materiais. Assim, é a causa final que responde pela existência dos entes finitos dotados de matéria e forma. Em Tomás de Aquino, por sua vez,    nos seres finitos a existência é recebida, participada. Deve existir ,por isso,  um ente perfeito que seja a própria existência. Nesse ente perfeito  a essência necessariamente existe, independentemente das causas materiais. Por isso, esse ente perfeito é auto-existente: ele é seu próprio existir.

Nesse modelo aristotélico-tomista, é Deus a razão de ser de toda existência. O artesão produz este indivíduo cadeira  , mas ele não produz a essência que determinará a madeira a se tornar cadeira. A essência precederia a produção  da existência da cadeira. É contra essa ideia que se volta a frase sartreana.  E para levar sua crítica  às últimas consequências, Sartre traz a questão da existência para o âmbito do homem, isto é, do humanismo, retirando-a do âmbito teológico-metafísico. Em Aristóteles, a essência precede a produção da existência. “Produção” é “poiésis” em grego, o que significa dizer que, no Realismo aristotélico-tomista, a lógica antecede a poesia, o conhecimento viria antes do que fazemos com esse conhecimento. Em Sartre, ao contrário, existir é tomar consciência de que a existência é sempre poética da existência, isto é, possibilidade que se realiza, agindo.

É por isso que  Existencialismo não é  Realismo: este crê que existem Essências que conferem sentido e inteligibilidade  à existência, ao passo que o Existencialismo defende que o sentido da existência não lhe  é prévio ,  somos nós que, existindo, damos sentido à existência.

Embora Sartre defenda que não existe uma essência que nos defina, ele considera no entanto que não podemos compreender o que somos sem nos colocarmos dentro da condição humana . A condição humana não é uma essência universal e abstrata, ela é a marca de que estamos inseridos num tempo, num espaço e em determinada situação. Agir livremente é sempre agir para mudar inumanas condições que apequenam e sujeitam o homem a viver uma existência de renúncia , medo, ignorância, resignação.




                                                                                            



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