Quem
o mais profundo pensa,
ama o mais vivo.
Hölderlin
É
com Aristóteles que a metafísica é formatada. No entanto, Aristóteles tem o
hábito de sempre refutar os filósofos que o antecederam, para assim
oferecer o que ele acredita ser a melhor
resposta. Quase todas as obras de Aristóteles, portanto, iniciam-se com o
filósofo recapitulando as ideias dos filósofos que o antecederam. Assim procede
Aristóteles quando escreve sobre a Física, a Ética e não seria diferente com a Metafísica.
Contrariamente
aos pré-socráticos, que afirmam que tudo é physis , Aristóteles concorda com Platão quando este diz que
faltou aos pré-socráticos uma compreensão do mundo imaterial onde repousa a
autêntica realidade. Contudo, Aristóteles refuta Platão quando este professa
que o mundo da physis é uma pura ilusão e que o Imaterial reside em outro
mundo, um Mundo Inteligível de Ideias Puras.
Aristóteles
concederá aos pré-socráticos alguma razão, embora também os refute. E o mesmo
procedimento terá com Platão: em parte concordando com o autor de Timeu , em
parte dele discordando. Para Aristóteles, o Imaterial não está afastado da
physis. A realidade é composta tanto do material quanto do imaterial, embora a
realidade primeira seja a realidade Imaterial. Aristóteles chamará de “substância” a união dessas duas
realidades. E é na realidade material que se encontra a principal
característica do mundo sensível: o movimento.
Então, para compreender como Aristóteles chegou às suas formulações
metafísicas, é preciso compreender os pré-socráticos, ainda que brevemente. E é
isso que faremos à frente.
- Os primeiros filósofos e a filosofia
O
nome “pré-socráticos” expressa um conjunto heterogêneo de pensadores. O termo
“pré” não significa que eles vieram exatamente “antes” de Sócrates no tempo. Ao
contrário, alguns lhe foram contemporâneos. Assim, o termo “pré” designa uma
visão da filosofia que toma Sócrates como referência e padrão. Outros ainda
empregam a expressão “pré-platônicos”,
uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.
É
errada a visão que considera inexistir nos
pré-socráticos uma reflexão sobre o ser humano. Entretanto, a maior
dificuldade para a reconstrução
dessa visão que eles possuíam do homem repousa na escassez de fontes.
Poucos escritos dos pré-socráticos chegaram até nós. Sabe-se, por exemplo, que
Demócrito , o atomista, teria escrito bem mais que Platão! Todavia, apenas
fragmentos nos chegaram.
Segundo argumentam Deleuze e Guattari no livro O que é a Filosofia? ( Editora 34), é
com os pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo “filósofo”. Este
termo nasce mais especificamente com
Tales de Mileto[1].
O filósofo veio ao mundo antes da
filosofia. O filósofo surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o Oriente, pois
foi nessa área limítrofe das colônias da Grécia que o filósofo apareceu. Há
algo do Oriente em Tales, isto é, há nele um tipo de sabedoria que não se apoia
apenas em conceitos. Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem simbólica –
acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística. Enfim, o filósofo também
era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo Parmênides,
evocam as Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático, criara uma
doutrina esotérica acerca da transmigração das almas, o que faz dele o primeiro
filósofo a acreditar na imortalidade da alma .
A
filosofia, sustentam Deleuze e Guattari,
nasceu um pouco mais tarde. A filosofia surgiu após já ter nascido o
filósofo. Enquanto este apareceu às
margens da Grécia, a filosofia é fruto genuíno de Atenas, o coração do
Ocidente. Para a filosofia emergir, foi preciso que o filósofo perdesse essa
aura poética e mística,foi necessário que ele deixasse de ser um sábio:foi
preciso que ele desse as costas para o Oriente místico.
A
filosofia aparece somente em Atenas, no
auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu em um determinado meio político
ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era um meio atravessado
por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente
era fundamental a constituição de associações. Nasce então uma ideia muito especial de “amizade” que
será considerada a base da filosofia. A filosofia seria um exercício dialogado
entre aqueles que buscam a sabedoria tendo como elo uma forma muito especial,
não privada, de amizade.Na Grécia Clássica, o filósofo se torna um “amigo da
sabedoria”, um “amigo do conceito”. Enquanto amigo do conceito, o filósofo vai
também defender o conceito dos seus
“falsos amigos”: os meros sofistas. Um amigo,um verdadeiro amigo,nunca faz seu
amigo de meio para obtenção de coisas materiais. Segundo pensava Platão, os
sofistas faziam da sabedoria um meio para obtenção de fama e dinheiro. Na
verdade, então, eles não faziam sabedoria,mas”falsa sabedoria”, uma “aparência
de sabedoria”. Sócrates, Platão e Aristóteles dedicaram boa parte de seus
ensinamentos para refutar esses falsos amigos do conceito.
No
Banquete, porém, Platão demonstra que
o termo “philia” , presente em “philosophia”, não designa apenas “amizade”.
“Philia” também significa , de forma mais profunda, “amor”. De maneira
provocativa e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo não é apenas um
amigo do conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um enamorado do
saber. Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais,como os sofistas.Mas
como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele e a
sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com certo
misticismo pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande importância
a intuição silenciosa do Bem,isto é, daquilo que a mera palavra não alcança ( mais tarde ,
Plotino e Santo Agostinho dedicarão belíssimas páginas a esse tema).
Esse
aspecto de amante da sabedoria dará ao filósofo uma condição de “estrangeiro”, ou
seja, de alguém que não se deixa determinar pelas convenções de uma determinada
pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem importantíssimo nos diálogos de
Platão, talvez o mais relevante.Todavia,
importante também é o personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é,
aquele que porta uma fala que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes
que os homens estabelecem, de forma convencionada , em uma determinada pólis. O
filósofo é atopos: inclassificável segundo um topos, segundo um lugar.
Se
a condição de “amigo” liga o filósofo aos homens, nascendo assim questões
pedagógicas e políticas, a condição de
“amante” o liga ao divino que imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a
união amorosa com o Celeste.
-
Principais pré-socráticos
Apesar
da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de filósofos, uma
questão pode ser apresentada como sendo a característica geral dos
pré-socráticos: a busca pelo Um. Diante da multiplicidade de
aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da sensibilidade, os
pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável e
inteligível. A esta unidade eles deram um
nome: arqué. Este termo grego
possui uma rica carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são:
origem, princípio, comando e causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no
sentido de causa. Perguntar sobre a
arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.
Diante
da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos testemunham, o
pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma exigência: o Um, a
arqué, a causa. A pré-socrática representou o primeiro momento de tematização
de um problema que acompanhará toda a filosofia , de Tales de Mileto a Deleuze: as relações entre o Um e o
Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos
sentidos, alcançar o Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade.
Assim, emerge igualmente nesse período uma visão de que o homem é constituído
por dois princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao múltiplo, sendo
ela própria múltipla, e o Logos,
este igualmente Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que
poria o homem em contato com a arqué, com o Um.
Os
primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há neles uma
visão do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”, palavra
esta cujo sentido se reporta ao processo
de “nascer” ou “brotar”. Mais do que se
pautarem pela abstração dos conceitos, eles ainda se apoiam em imagens, apesar
de já se fazer presente a exigência de racionalização comandada pelo Logos.
Tales
de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual tudo nasceu.
Como ele chegou a essa posição?Após a chuva, ele percebia que a natureza se
renovava ou renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos.
Do mar vêm vários seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço de todo ser
vivo, é um reservatório de água. As fontes trazem vida aos desertos. Assim,
onde está a água se encontra a vida. Por
outro lado, Tales constatou que tudo o
que morre e definha vai perdendo água e secando. A terra sem umidade se torna
estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a
água visível em suas mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto
arqué ou causa de tudo o que existe. Esta água universal não tem um aspecto
particular, e só o logos intuitivo a pode apreender. Ela não é doce ou salgada:
ela é simplesmente água, a pura água que apenas o pensamento pode intuir e
conceber.
Heráclito,
por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o
Um do qual tudo é feito. Este Um, no entanto, reúne nele o múltiplo, de
tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a
imagem do tempo. E é isso que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não
podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Quando saímos do rio e retornarmos
para entrar nele, suas águas já passaram, assim como nós mesmos já somos
“outro”. Muda o rio e mudamos nós. Nada é, tudo devém, pensava Heráclito.
“Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do devir é uma repetição, um re-venir. Cada momento do devir é uma
repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente, pois nunca ele é o mesmo,
assim como as águas do rio do tempo. Segundo dirá Platão, ninguém mais que
Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é regido
pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados por
essa intuição heraclítica do devir.
Mas
por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”( Aristóteles ,
por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam para realizar
um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência” pela qual o
devir constrói e destrói, tal como
crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro,
Heráclito era visto observando crianças
brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com elas do que com
os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos pensadores
trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da imanência.
“Imanência” provém de “i-manare”.
“Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim,
imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo.
Por oposição, temos o vocábulo
“transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos entes” ( no
núcleo da palavra transcendência
existe o termo “ens”, “ente”).
Vale
destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para apenas um
elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as quatro
raízes e os dois princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar e a
terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor é a Vida, ao passo que o
Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes se combinam para gerar
tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da água, da
terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser
organizado e faz as quatro raízes voltarem a existir separadas. O ódio faz as
raízes existirem sós.O ódio é a solidão.O ódio não destrói as quatro raízes,
ele apenas desfaz os seres que nascem de sua união e composição. Além de
realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos (Amor e Ódio) na
gênese do mundo. Estes afetos não estariam apenas no homem, eles não seriam tão
somente subjetivos. Tais afetos seriam
também cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do
universo.
Outro
pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o pensamento atinge
graus de abstração nunca antes alcançados. Para este pensador, a arqué não é a
água, o ar , a terra, o fogo ou a mera combinação deles. Para ele, a arqué não
pode ser nada de determinado, pois tudo o que é determinado possui um limite,
uma identidade. E tudo o que possui limites não é o todo. Assim, para ele a arqué ou causa de tudo será chamada de Apeiron. A-peiron:o que não tem limites.Mas por quê existem as coisas com limites,
as coisas finitas? A resposta de Anaximandro introduz um elemento de julgamento
moral: as coisas finitas existem por uma culpa. Todo ser finito que se separa
do infinito o faz por uma culpa. Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso
mesmo, sofre. O sofrimento é a condição existencial de tudo o que existe
separado. Anaximandro acreditava que a sabedoria seria um processo de
reatamento com o que não tem limites, o que implicava em uma regra de vida que
se libertasse do império das coisas limitadas. Por exemplo, bens materiais, por
maiores que sejam, são coisas com limites.Todo apego ao limitado, seja o
limitado das coisas ou o limitado do “ego” ( embora Anaximandro não empregue
exatamente esta palavra tão moderna),
todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento. Por essa razão, impede a liberdade e o
pensamento.
Por
fim, existiu Parmênides.Para este filósofo , a arqué não é mais nada físico,
tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele, algo
que se assemelhe a afetos humanos. A
arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para
Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de Parmênides é seca,lacônica, e já
anuncia,firmemente, o princípio fundante da
lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém.
Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra
coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um
paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move,
ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram
o Ser, eles nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois
caminhos: o da Verdade, caminho este que apenas a alma pode trilhar, e o da opinião,que é o caminho no qual reinam
as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho
da Verdade é o do Ser,ao passo que o da
opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com Parmênides são
esboçadas as primeiras exigências de um
pensamento lógico, que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em
Parmênides também se dá início à célebre
distinção entre Essência e aparência, tema este que merecerá
especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o vocabulário da
filosofia.
[1]
Outras fontes dizem que o termo nasceu com Pitágoras ( ver Luc Brisson , Introdução à filosofia do
mito, editora Paulus).
Tive a alegria de ter sido aluno de Gerd Bornheim ( cujo livro é uma referência obrigatória sobre o assunto):
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