quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Diferença entre "avaliar" e "julgar"

 

De Aristóteles a Kant, o ato de julgar é considerado o ato mais  fundamental da razão. Julgar é unir um conceito a uma realidade individual que se quer conhecer.

Não apenas um juiz julga, um médico também julga quando elabora um diagnóstico, e assim determina que os sintomas que um indivíduo apresenta são os sinais de determinada doença ( ao julgar, o médico faz com que o conceito que ele aprendeu na faculdade opere concretamente na realidade). Visto sob esse  plano ideal,  médicos e  juízes não emitem opinião ( doxa), eles julgam com a razão.

Porém, o julgamento pode se tornar mera opinião suspeita e tendenciosa quando, dentro do homem, o conceito cede lugar ao pré-conceito.Quando isso acontece, a ignorância substitui o conhecimento, o ódio toma o lugar do esclarecimento, assim turvando a atividade de julgar, que então se torna mera opinião enquanto instrumento do preconceito disfarçado de “razão”.

A história recente revela  que o obscurantismo às vezes se veste com jaleco branco de médico  ou usa toga de juiz.  Assim são  os médicos que, pondo-se a serviço da ignorância negacionista , receitam  ivermectina contra a covid; ou então os   juízes sonsos e oportunistas que “julgam” a partir de suas preferências partidárias e preconceitos de classe contra os pobres, pretos e nordestinos. Sem falar no (pré)julgamento genocida contra o povo palestino...

Por isso, pensadores como Espinosa, Nietzsche, Deleuze e Foucault preferem o termo “avaliar” em vez de “julgar”. Avaliar é construir uma  crítica , crítica inclusive da própria razão quando se arroga em discurso “neutro” e apolítico. Quanto mais a razão se crê “apolítica e neutra”, mais ela escamoteia que tem lado: o lado do poder (potestas).

“A-valiar”  é determinar o valor de determinada prática , incluindo a prática de julgar , discernindo se ela é nobre ou vil, alimento ou veneno. Quando o ato de julgar se torna refém do preconceito, somente o ato de avaliar pode   livrar  a justiça  dos juízes e jurados  parciais  cujas sentenças  são  vis, somente o ato clínico de avaliar pode   defender a medicina da ação criminosa de certos   médicos negacionistas  que receitam veneno.

Avaliar não é apenas partir de conceitos teóricos, pois em toda avaliação também devem estar presentes afetos afirmativos, sensibilidades emancipadoras e pensares criativos que , sem negarem  a razão, alcançam realidades que o mero conceito teórico não alcança.

Julgar é uma técnica, porém avaliar é uma arte. Uma arte que conecta pensamento e sensibilidade, crítica e clínica, ideia e realidade, sempre visando potencializar a nossa ação sobre o mundo, aqui e agora.

O imperdível filme “Doze homens e uma sentença”  mostra que o ato de julgar não é imune aos preconceitos. E que a resistência ao julgar suspeito somente começa quando é despertada e posta em prática a ação de avaliar  enquanto potência singular, e isso não se faz sem coragem e perseverança.

Notas:

[1] No filme, o alvo do preconceito disfarçado de julgamento é um jovem pobre latino acusado de assassinar o pai ( o filme se passa nos Estados Unidos).

[2] Há uma diferença fundamental entre poder (potestas) e potência ( potentia). Essa diferença se encontra , por exemplo, em Espinosa ( mas não apenas nele). No filme, 11 jurados exerceram o poder/potestas para julgar e condenar. Eles agiam em nome da sociedade. O poder-potestas deles implicava , portanto, que eles agiam “no lugar de”: no lugar da sociedade que lhes concedia o poder de julgar. Mas um dos personagens se apoiou na potência de pensar. Essa potência é indelegável: ela pertence a cada por direito natural. Renunciar a esse direito é renunciar a si mesmo ,  submetendo-se  à servidão voluntária.

[3] Durante o filme, percebemos  que os  preconceitos  dos jurados , revelando igualmente preconceitos de classe, estavam por trás daquilo que eles julgavam ser a “leitura objetiva” deles dos fatos. Ou seja, a maneira como eles “interpretavam” os fatos era influenciada por elementos subjetivos passionais  , tais como o ressentimento, o ódio, a ausência de empatia, o desejo de vingança... Tal como no mito de Hermes acerca da “hermenêutica” (interpretação), cada um interpretava a realidade conforme o coração que tinha.

[4] No filme, o nome do personagem principal é “David”: tal como o David de outra história que, com coragem, enfrentou e derrotou o gigante Golias, o personagem do filme  exerceu também  coragem ao enfrentar o Golias  da ignorância , cujo poder   somente se torna vitorioso  se os justos renunciarem à justiça enquanto virtude-potência ética. 


( Só consegui achar na web a versão dublada. Na imagem, as duas versões do filme, ambas excelentes)



 


- Creio ser uma boa opção de filme para este feriado, segue o link:

https://vimeo.com/812257840



- O filme também ganhou uma versão teatral:




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