De Aristóteles a Kant, o
ato de julgar é considerado o ato mais
fundamental da razão. Julgar é unir um conceito a uma realidade
individual que se quer conhecer.
Não apenas um juiz julga,
um médico também julga quando elabora um diagnóstico, e assim determina que os
sintomas que um indivíduo apresenta são os sinais de determinada doença ( ao
julgar, o médico faz com que o conceito que ele aprendeu na faculdade opere
concretamente na realidade). Visto sob esse
plano ideal, médicos e juízes não emitem opinião ( doxa), eles
julgam com a razão.
Porém, o julgamento pode
se tornar mera opinião suspeita e tendenciosa quando, dentro do homem, o
conceito cede lugar ao pré-conceito.Quando isso acontece, a ignorância
substitui o conhecimento, o ódio toma o lugar do esclarecimento, assim turvando
a atividade de julgar, que então se torna mera opinião enquanto instrumento do
preconceito disfarçado de “razão”.
A história recente
revela que o obscurantismo às vezes se
veste com jaleco branco de médico ou usa
toga de juiz. Assim são os médicos que, pondo-se a serviço da
ignorância negacionista , receitam
ivermectina contra a covid; ou então os
juízes sonsos e oportunistas que “julgam” a partir de suas preferências
partidárias e preconceitos de classe contra os pobres, pretos e nordestinos.
Sem falar no (pré)julgamento genocida contra o povo palestino...
Por isso, pensadores como
Espinosa, Nietzsche, Deleuze e Foucault preferem o termo “avaliar” em vez de
“julgar”. Avaliar é construir uma
crítica , crítica inclusive da própria razão quando se arroga em
discurso “neutro” e apolítico. Quanto mais a razão se crê “apolítica e neutra”,
mais ela escamoteia que tem lado: o lado do poder (potestas).
“A-valiar” é determinar o valor de determinada prática ,
incluindo a prática de julgar , discernindo se ela é nobre ou vil, alimento ou
veneno. Quando o ato de julgar se torna refém do preconceito, somente o ato de
avaliar pode livrar a justiça
dos juízes e jurados parciais
cujas sentenças são vis, somente o ato clínico de avaliar pode defender a medicina da ação criminosa de
certos médicos negacionistas que receitam veneno.
Avaliar não é apenas
partir de conceitos teóricos, pois em toda avaliação também devem estar
presentes afetos afirmativos, sensibilidades emancipadoras e pensares criativos
que , sem negarem a razão, alcançam
realidades que o mero conceito teórico não alcança.
Julgar é uma técnica,
porém avaliar é uma arte. Uma arte que conecta pensamento e sensibilidade,
crítica e clínica, ideia e realidade, sempre visando potencializar a nossa ação
sobre o mundo, aqui e agora.
O imperdível filme “Doze homens e uma sentença” mostra que o ato de julgar não é imune aos preconceitos. E que a resistência ao julgar suspeito somente começa quando é despertada e posta em prática a ação de avaliar enquanto potência singular, e isso não se faz sem coragem e perseverança.
Notas:
[1]
No filme, o alvo do preconceito disfarçado de julgamento é um jovem pobre
latino acusado de assassinar o pai ( o filme se passa nos Estados Unidos).
[2]
Há uma diferença fundamental entre poder (potestas) e potência ( potentia). Essa
diferença se encontra , por exemplo, em Espinosa ( mas não apenas nele). No
filme, 11 jurados exerceram o poder/potestas para julgar e condenar. Eles agiam
em nome da sociedade. O poder-potestas deles implicava , portanto, que eles
agiam “no lugar de”: no lugar da sociedade que lhes concedia o poder de julgar.
Mas um dos personagens se apoiou na potência de pensar. Essa potência é
indelegável: ela pertence a cada por direito natural. Renunciar a esse direito
é renunciar a si mesmo , submetendo-se à servidão voluntária.
[3]
Durante o filme, percebemos que os preconceitos dos jurados , revelando igualmente preconceitos
de classe, estavam por trás daquilo que eles julgavam ser a “leitura objetiva” deles
dos fatos. Ou seja, a maneira como eles “interpretavam” os fatos era
influenciada por elementos subjetivos passionais , tais como o ressentimento, o ódio, a
ausência de empatia, o desejo de vingança... Tal como no mito de Hermes acerca
da “hermenêutica” (interpretação), cada um interpretava a realidade conforme o coração
que tinha.
[4]
No filme, o nome do personagem principal é “David”: tal como o David de outra
história que, com coragem, enfrentou e derrotou o gigante Golias, o personagem
do filme exerceu também coragem ao enfrentar o Golias da ignorância , cujo poder somente se torna vitorioso se os justos renunciarem à justiça enquanto
virtude-potência ética.
( Só consegui
achar na web a versão dublada. Na imagem, as
duas versões do filme, ambas excelentes)
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