domingo, 20 de março de 2022

Manoel & Pessoa: o ponto de interrogação

O poeta Manoel de Barros dizia que tudo tem seus “inauguramentos”. Citei essa ideia do poeta a uma amiga atriz quando a gente conversava acerca do acontecimento existencial que nos “inaugurou” a ser o que hoje somos.

Ela me disse que, desde criança, gostava de brincar de teatrinho com suas amigas. Essa “brincatividade” lúdica a inaugurou atriz , ainda menina.

Então, ela me indagou sobre meu “inauguramento”, e respondi mais ou menos o seguinte:

Quando eu tinha cerca de sete anos , à noite eu gostava de me deitar no chão do quintal de casa e ficar “contemplando” o céu. Àquela época, o céu do subúrbio era límpido, dava para ver até a poeira cósmica!

A palavra “contemplar” significa: “entrar no templo”. Templo é onde habita o divino. Heráclito dizia que o divino habita o fogo; Tales afirmava que o divino mora nas águas;  Lucrécio poetizava dizendo  que o divino mora nos átomos e no intervalo  entre os átomos; já Espinosa ensinava que o divino mora nele mesmo, e que nada há fora dele mesmo, pois a casa do divino é a infinita Natureza.

Creio que foi assim que me inaugurei   filósofo: interrogando as estrelas, assim me celestando . “Poesia é celestar as coisas do chão”, ensina o poeta Manoel de Barros.

Segundo Deleuze,  há dois tipos de pergunta/interrogação. O primeiro tipo é o que faz o professor numa prova. O professor interroga, porém ele já sabe a resposta. Se o aluno responder corretamente, a resposta será verdadeira; do contrário, será falsa.

Mas há um tipo de pergunta-interrogação mais originária. Enquanto a pergunta do professor é buscada em livros e teorias, essa interrogação  originária deve ser buscada  diretamente no Livro da Natureza, onde o “aprender vem antes do ensinar”.

Essa interrogação originária lembra um poema de Fernando Pessoa no qual ele diz que não são  pés e pernas que nos  põem  de pé; o que nos  põe de pé é a coluna cervical. Inclusive, é a coluna cervical que liga o cérebro às mãos e pernas, para que as ideias que pensamos se tornem corpo e ação sobre  o mundo.

Segundo Pessoa, originariamente o ser humano  ficou de pé quando seus olhos, até então cativos de restos e rastros no chão, foram atraídos pelo céu aberto e estrelado, “horizontando-se” .

Tanto “cervical” quanto “acervo” vem de “cérvix”: “o que sustenta”. Assim como a coluna cervical sustenta nossa cabeça pensante, os livros de uma biblioteca são acervo que sustentam  em pé as ideias.

Se olharmos a coluna cervical de lado, ela se assemelha a um ponto de interrogação (?).

Enquanto a pergunta  do professor é feita em razão de uma resposta teórica, a interrogação  originária é para nos pôr de pé  diante dos que nos querem prostrados.

Esta é a  resposta verdadeira  à pergunta-interrogação  originária :  pôr-se de pé existencialmente, estendendo  a mão para que os outros também se ponham.









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