O poeta Manoel de Barros dizia que
tudo tem seus “inauguramentos”. Citei essa ideia do poeta a uma amiga atriz
quando a gente conversava acerca do acontecimento existencial que nos
“inaugurou” a ser o que hoje somos.
Ela me disse que, desde criança,
gostava de brincar de teatrinho com suas amigas. Essa “brincatividade” lúdica a
inaugurou atriz , ainda menina.
Então, ela me indagou sobre meu “inauguramento”,
e respondi mais ou menos o seguinte:
Quando eu tinha cerca de sete anos ,
à noite eu gostava de me deitar no chão do quintal de casa e ficar
“contemplando” o céu. Àquela época, o céu do subúrbio era límpido, dava para
ver até a poeira cósmica!
A palavra “contemplar” significa:
“entrar no templo”. Templo é onde habita o divino. Heráclito dizia que o divino
habita o fogo; Tales afirmava que o divino mora nas águas; Lucrécio poetizava dizendo que o divino mora nos átomos e no intervalo entre os átomos; já Espinosa ensinava que o
divino mora nele mesmo, e que nada há fora dele mesmo, pois a casa do divino é
a infinita Natureza.
Creio que foi assim que me inaugurei filósofo: interrogando as estrelas, assim me
celestando . “Poesia é celestar as coisas do chão”, ensina o poeta Manoel de
Barros.
Segundo Deleuze, há dois tipos de pergunta/interrogação. O
primeiro tipo é o que faz o professor numa prova. O professor interroga, porém
ele já sabe a resposta. Se o aluno responder corretamente, a resposta será
verdadeira; do contrário, será falsa.
Mas há um tipo de pergunta-interrogação
mais originária. Enquanto a pergunta do professor é buscada em livros e
teorias, essa interrogação originária deve
ser buscada diretamente no Livro da
Natureza, onde o “aprender vem antes do ensinar”.
Essa interrogação originária lembra
um poema de Fernando Pessoa no qual ele diz que não são pés e pernas que nos põem de
pé; o que nos põe de pé é a coluna
cervical. Inclusive, é a coluna cervical que liga o cérebro às mãos e pernas, para
que as ideias que pensamos se tornem corpo e ação sobre o mundo.
Segundo Pessoa, originariamente o ser
humano ficou de pé quando seus olhos,
até então cativos de restos e rastros no chão, foram atraídos pelo céu aberto e
estrelado, “horizontando-se” .
Tanto “cervical” quanto “acervo” vem
de “cérvix”: “o que sustenta”. Assim como a coluna cervical sustenta nossa
cabeça pensante, os livros de uma biblioteca são acervo que sustentam em pé as ideias.
Se olharmos a coluna cervical de
lado, ela se assemelha a um ponto de interrogação (?).
Enquanto a pergunta do professor é feita em razão de uma resposta
teórica, a interrogação originária é
para nos pôr de pé diante dos que nos
querem prostrados.
Esta é a resposta verdadeira à pergunta-interrogação originária : pôr-se de pé existencialmente, estendendo a mão para que os outros também se ponham.
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