domingo, 6 de março de 2022

HUMANITÁ

 

A palavra “estoico” vem de “stöa”: “porta” ou “portal”. Isso porque os estoicos escolhiam abrir suas escolas de filosofia bem no portal das cidades, perto de sua abertura.

Àquela época, as cidades eram muradas. No centro delas ficavam a praça e o mercado. Platão , fundador da Academia, e Aristóteles, criador do Liceu, estabeleceram suas escolas próximo  ao mercado e guardadas por muros.

Mas os estoicos preferiam dizer que sua filosofia estava a serviço daquilo que não podia ser cercado e murado. Os estoicos queriam  ir além não só dos muros físicos, mas sobretudo dos muros que cercam a alma e a põem prisioneira de si mesma.

A razão em Aristóteles é identificada  ao homem . Mas os estoicos diziam que o pensar é abertura à Terra, aquela que nenhum muro , nem os muros da falocrática razão, separa do cosmos, esse horizonte infinito.

Em vez de glorificar o “Homem”, os estoicos introduzem uma nova ideia: a “humanitá”, palavra feminina. A humanitá não pertence a uma pólis isolada, a humanitá habita a Terra.

Falar no “Homem” como ideia universal é escamotear os seres diferentes dos homens, seres esses que o homem reprime e explora, colocando-se como “Modelo” e “Padrão”. Por isso, a  humanitá não é um Modelo ou Padrão.

O Homem  é definido por Aristóteles como “Animal Racional”, embora tanta irracionalidade vemos na conduta do Homem, na guerra contra outros homens e na predação da natureza. A humanitá não é o “Homem”, ela é comunidade planetária vital.

A humanitá não é uma ideia abstrata , pois ela é também uma prática ética e política de defender a humanidade em nós, protegendo-nos  dos homens que querem destruí-la. A humanidade não é um “Padrão”, ele é uma comunidade aberta e heterogênea.

O Homem tem um rosto: o  do homem hétero,  branco, proprietário, conservador . Esse rosto muitas vezes se coloca  atrás da religião para esconder sua desumanidade contra as mulheres, contra os que não têm a cor de sua pele , contra os que vivem outras formas de amor, contra   os explorados pelo Capital, enfim, contra os que são e pensam diferente.

Mas qual o rosto da humanidade? Em quem podemos ver sua face? O rosto da humanidade somente se expressa em quem se faz singularidade. Singularidade não é a mesma coisa que indivíduo. Uma singularidade é sempre parte de uma multiplicidade. E nenhuma multiplicidade pode ser contida pelos muros excludentes de um Padrão.

 Toda singularidade se torna mais potente quanto mais sua  diferença se amplia em múltiplas e variadas conexões e agenciamentos. Singularidade não é apenas razão, singularidade  também é desejo, criatividade, sensibilidade, corpo  e ação.

Sobretudo, singularidade não é o eu ou o ego, ela é o que em nós se coloca à porta de nós mesmos, abertos à natureza, ao mundo, ao outro, à diferença, no seio aberto da Terra.

A “humanitá”  estoico-latina corresponde  à “paideia” grega, ambas expressando a prática de uma educação não apenas teórica, mas  libertária.

( imagem: “Árvore da vida”/ Klimt)



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