quarta-feira, 2 de março de 2022

as sementes de Lucrécio

 

1- Segundo o poeta-filósofo Lucrécio, os átomos são sementes. Lucrécio não faz aqui uma metáfora, pois os átomos são, de fato, sementes. Essa é a grande diferença entre o atomismo antigo ( do qual Epicuro  e Lucrécio são os maiores nomes) e o atomismo moderno mecanicista, que imagina os átomos como pequenas pedras inertes, mecânicas. A pedra é inerte, porém a semente é vida. Mas por que Lucrécio afirma isso?

Da semente do abacate nasce um abacate, nunca uma maçã;  da semente da maçã nasce uma maçã, jamais um abacate. Tudo o que existe  veio  de uma semente: há sementes das quais brotaram mares, nuvens, plantas, animais e até mesmo as pedras vieram de sementes.

Mas da semente da qual brotaram nuvens não brotam pedras; da semente da qual brotaram  flores não nascem feras.

Com isso, Lucrécio quer afirmar  que a natureza é criativa, tudo ela cria a partir de sementes, sendo as próprias sementes criações dela. A natureza é criativa-produtiva, porém ela não é delirante. O delírio é supor que da semente da maçã possa nascer um abacate, ou que da semente de um pássaro possa nascer um homem, ou que da semente do vinho possa brotar a água, ou que da semente do divino possa nascer ira ou vingança.

O delírio imagina que as coisas podem vir de qualquer coisa ou do nada, e não de sementes.

Da semente de um Cartola nasce sempre Cartola, isto é, música rica de  vida e poesia. Cartola que é, antes de tudo, semente da música. Da semente de Manoel de Barros nasce poesia manoelina, isto é, poesia plural e semente para outras poesias diversas.

Para conhecermos a realidade de algo, é necessário, primeiro, sabermos de quais sementes essa realidade brotou e permanece ainda ligada.

 

2. Lucrécio afirma que as sementes são diversas entre si. Elas são diversamente plurais e infinitas.

“Diverso” não é a mesma coisa que “diferente”. O contrário de diferente é “semelhante”, mas o oposto de diverso é “uniforme” ou “homogêneo”. Além disso, o diferente o é em relação a alguma coisa, ao passo que o diverso o é em relação a si mesmo: só o diverso é semelhante ao diverso, só o diverso produz diversidade, isto é, pluralidade que nunca veste uniformes.

Por isso, é um erro supor que o “clinamen”, o desvio, é segundo em relação à linha reta . Na verdade, o desvio é que  primeiro: o desvio é a origem de todo diverso. A própria natura é diversa de si mesma, por isso ela produz o diverso como semelhança de si mesma.

Não apenas as  sementes são diversas entre si,  também tudo o que nasce delas é diverso, singular. De fato, da semente de uma maçã não nasce um abacate. Mas cada maçã que nasce da semente de uma maçã é sempre uma maçã diversa, composta igualmente de partes diversas entre si.

Como ensina  Deleuze, “com Epicuro e  Lucrécio começam os verdadeiros atos de nobreza do pluralismo em filosofia.” (Lógica do sentido, p. 274)




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