quarta-feira, 26 de agosto de 2020

sherazade e as linhas de fuga...

 

Havia uma aldeia onde um Sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor.  Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, o Sultão  resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele juntou as mulheres em uma ampla sala . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade. Quando o Sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida: a morte te espera...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o Sultão . No dia seguinte, Sherazade  prosseguiu com a história e logo a emendou com outra, com várias outras. O Sultão não conseguia ficar imune a esse poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos (o Sultão imaginava, ao contrário, que poderosa é a palavra que ameaça de morte) .  Naqueles momentos ao menos , o Sultão curava-se de si próprio,  desabrindo nele  um outro . Quando o dia amanhecia e Sherazade precisava interromper a narrativa, o Sultão agora lamentava  e até pedia:"Não vá se atrasar amanhã!".  Como Ariadne ,   Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, e a este estendia  como linha de fuga . A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia o poeta Manoel de Barros.  Sherazade simboliza a vida que se expressa    múltipla  nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros,  apesar dos Sultões de hoje que ameaçam calá-la:   “poesia é afloramento de falas” (Manoel de Barros).

 

(imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam em um mesmo fluxo, como um  rio inaprisionável :"Sou água que corre entre pedras, liberdade caça jeito”, Manoel de Barros )




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