- Oficina de Transfazer
A literatura é uma
saúde.
Gilles Deleuze
Manoel
de Barros define sua poesia como “Uma Oficina de
Transfazer Natureza”[1]. Toda oficina é um lugar de “fazimentos”, de
“inventar comportamento”[2].
Nessa Oficina
há várias ferramentas, ferramentas simbólicas, semióticas, lúdicas. Queremos
falar de uma ferramenta em especial. Manoel constrói e reconstrói inúmeras
coisas com ela. Trata-se não de uma palavra, mas de uma “pré-palavra”: o
prefixo “trans”. O pré-fixo é o que vem antes de algo fixo, pronto, fechado.
“Fixo”, “acostumado”, é o significado que o uso enrijece: “significar reduz
novos sonhos para as palavras”[3] . Mais do que uma lógica, uma Oficina do Sentido: “Na ponta do meu
lápis / Há apenas nascimento”.[4]
O
“trans” é uma ferramenta da oficina poético-filosófica do artesão Manoel. Não é
a gramática que pode explicar o emprego em Manoel de tal prefixo, apenas uma agramática o pode:
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que
empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos,
um inauguramento
de falas.[5]
No poema
acima, Manoel nos ensina, brincativamente
[6], a
principal lição de sua Oficina: o empoemar
como atividade que aqui chamaremos de empoética.
Esta é a hipótese que sustenta tudo o que queremos aqui dizer: toda a poesia de
Manoel é uma empoética, e dessa empoética também fazem parte as entrevistas e
mesmo sua correspondência.
Essa empoética também é expressa por outros meios sem ser a
palavra, tal como se vê nos desenhos muito originais e singulares que o próprio
poeta engenha. E mais: os livros nascem em cadernos artesanais que o poeta
confecciona à mão. Também é parte de sua empoética essa sua artesania.
Quando
Manoel afirma que “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo"[7] , a ênfase deve ser
colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa
pronta, etiquetável, pertencente a um
dono. Talvez seja esta a inocência empoética: sempre haverá mundo para a poesia
fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos
políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por
fazer, sempre em “afloramentos”. É da invenção fazedora de mundos que o poeta
deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa,
quem descreve não é dono daquilo que descreve".[8]
Não se
lê Manoel sem se empoemar. Todavia, o que significa empoemar-se? É possível
definir esse afeto-metamorfose? Mas se pode definir o tempo, o infinito, o
desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido? ... Alguém é capaz de fornecer uma
resposta que encerre algo que é necessariamente da ordem de um horizontamento? Esse horizonte empoético não nos está apenas fora, ele
começa a ser experimentado por dentro, desabrindo-nos:
“O que desabre o ser é ver e ver-se”.[9]
Empoemar-se é transfazer-se como se transfez o poeta: “Eu tentei me horizontar
às andorinhas”.[10]
Nem todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e
rima atinge essa condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do
que rima e verso. Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto
que faz Manoel de Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, para nos empoemar. Transfeitas, as coisas e seres se tornam
“forma em rascunho”[11]. Aquele que se transfaz,
empoemando-se, “não cabe mais dentro dele. Outra pessoa desabre”[12].
Esse
pré-fixo antecede a toda coisa fixa. Ele acompanha tanto o fazer quanto o ver, que
assim se agenciam como transfazer e transver. Acreditamos que o transfazer e
o transver empoéticos manoelinos se aproximam de uma originalíssima experiência
de transmutação, na qual o sofrimento
pode ser transfeito e transvisto:
A arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação
transvê.
É preciso transver o mundo.[13]
[1] O guardador de águas, p. 20.
[2] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.
[3] Escritos em verbal de ave.
[4] Encontros: Manoel de Barros. Rio de
Janeiro, Azougue, 2010(Org. Adalberto Müller), p. 135.
[5] “Retrato quase apagado em que se
pode ver perfeitamente nada”, Guardador
de águas, p. 62.
[6] Escritos em verbal de ave. São Paulo:
Leya, 2011.
[7] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de
Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.
[8] Entrevista concedida ao jornalista
José Castello e publicada no site Jornal
de Poesia, em 30/05/2005.
[9] O guardador de águas.
[10] Memórias Inventadas - A Terceira Infância; Planeta, 2010.
[11] “Agroval”, Livro de pré-coisas, p. 22.
[12] Concerto a céu aberto para
solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 39.
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