terça-feira, 11 de agosto de 2020

oficina manoelina

 

-  Oficina de Transfazer

A literatura é uma saúde.

Gilles Deleuze

 

Manoel de Barros define sua poesia como “Uma Oficina de Transfazer Natureza”[1].  Toda oficina é um lugar de “fazimentos”, de “inventar comportamento”[2]. Nessa Oficina há várias ferramentas, ferramentas simbólicas, semióticas, lúdicas. Queremos falar de uma ferramenta em especial. Manoel constrói e reconstrói inúmeras coisas com ela. Trata-se não de uma palavra, mas de uma “pré-palavra”: o prefixo “trans”. O pré-fixo é o que vem antes de algo fixo, pronto, fechado. “Fixo”, “acostumado”, é o significado que o uso enrijece: “significar reduz novos sonhos para as palavras”[3] .  Mais do que uma lógica, uma Oficina do Sentido: “Na ponta do meu lápis / Há apenas nascimento”.[4]

O “trans” é uma ferramenta da oficina poético-filosófica do artesão Manoel. Não é a gramática que pode explicar o emprego em Manoel de tal prefixo, apenas uma agramática o pode:

 

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana,

que  empoema  o sentido das palavras.

Aflora uma linguagem de defloramentos,

um  inauguramento  de falas.[5]

 

 No poema acima, Manoel nos ensina, brincativamente [6], a principal lição de sua Oficina:  o empoemar como atividade que aqui chamaremos de empoética. Esta é a hipótese que sustenta tudo o que queremos aqui dizer: toda a poesia de Manoel é uma empoética, e dessa empoética também fazem parte as entrevistas e mesmo sua correspondência.

Essa empoética também é expressa por outros meios sem ser a palavra, tal como se vê nos desenhos muito originais e singulares que o próprio poeta engenha. E mais: os livros nascem em cadernos artesanais que o poeta confecciona à mão. Também é parte de sua empoética essa sua artesania.          

Quando Manoel afirma que “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo"[7] , a ênfase deve ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta,  etiquetável, pertencente a um dono. Talvez seja esta a inocência empoética: sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre em “afloramentos”. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve".[8]

   Não se lê Manoel sem se empoemar. Todavia, o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? Mas se pode definir o tempo, o infinito, o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido? ... Alguém é capaz de fornecer uma resposta que encerre algo que é necessariamente da ordem de um horizontamento? Esse horizonte empoético não nos está apenas fora, ele começa a ser experimentado por dentro, desabrindo-nos: “O que desabre o ser é ver e ver-se”.[9] Empoemar-se é transfazer-se como se transfez o poeta: “Eu tentei me horizontar às andorinhas”.[10]

Nem todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e rima atinge essa condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do que rima e verso. Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto que faz Manoel de Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, para nos empoemar.  Transfeitas, as coisas e seres se tornam “forma em rascunho”[11]. Aquele que se transfaz, empoemando-se, “não cabe mais dentro dele. Outra pessoa desabre”[12].

Esse pré-fixo antecede a toda coisa fixa. Ele acompanha tanto o fazer quanto o ver, que assim se agenciam como transfazer e transver. Acreditamos que o transfazer e o transver empoéticos manoelinos se aproximam de uma originalíssima experiência de transmutação, na qual o sofrimento pode ser transfeito e transvisto:

 

A arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.[13]



[1] O guardador de águas, p. 20.

[2] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.

[3] Escritos em verbal de ave.

[4] Encontros: Manoel de Barros. Rio de Janeiro, Azougue, 2010(Org. Adalberto Müller), p. 135.

[5] “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, Guardador de águas, p. 62.

[6] Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2011.

[7] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.

 

[8] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.

[9] O guardador de águas.

[10] Memórias Inventadas - A Terceira Infância; Planeta, 2010.

[11] “Agroval”, Livro de pré-coisas, p. 22.

[12] Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 39.

[13] Livro Sobre Nada, p. 75.








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