Anos atrás, após o fim de uma aula
encerrando o semestre, uma aluna veio até mim e me entregou um papel com algo
escrito, e disse: “Professor, tudo o que
você disse no curso de Introdução à Filosofia acho que tem a ver com essa
história.” A história era anônima; seu
autor , um agente coletivo de enunciação
. Interpreto aqui a história e
acrescento perspectivas, mas a essência
dela é o que segue.
Cinco doentes graves estavam numa
enfermaria. A única comunicação da
enfermaria com o mundo exterior era uma
pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual ficava um dos pacientes a narrar o mundo lá de fora, mundo este que
os outros pacientes não podiam ver. “Daqui vejo o mar , até sinto sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”,
perguntava aos outros doentes. Apenas um
dizia não conseguir sentir. Os
que sentiam, recriavam um mar na alma e
“horizontavam-se” . No dia seguinte,
prosseguia o paciente-narrador: “Daqui
posso ver e ouvir crianças brincando numa pracinha . Vocês também
conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente que não conseguia sentir a brisa também
não conseguia ouvir as crianças . Os outros conseguiam, e algo dentro deles brincava também e regenerava.
Enfim, o paciente da janela passava o
dia a transpor em palavras a vida , de tal modo
que suas palavras viravam remédio
para quem as ouvia: elas eram cura
também.
Certo dia, porém , o paciente da
janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele
havia morrido. Só então os outros souberam que
o homem da janela era o mais doente entre eles. Agora, cada um queria que a própria maca
fosse colocada perto da janela, aquele lugar de abertura por onde entrava um ar
, mas concordaram que para lá fosse o doente de
sensibilidade embotada. Só lhe fizeram uma exigência: continuar as narrativas. “ Farei melhor que o poeta que aqui estava
!”, gabou-se. Então, perto da janela ele foi instalado.
Quando ele olhou pela janela, porém, ficou
mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Resignado, disse: “em frente à janela não
há mar, paisagem ou praça. Há apenas um
muro cinza... Um espesso muro
cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais sem vida que existe : aquela que apenas repete o que
está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro.
O muro cinza simboliza tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes,
horizontes que nos estão fora e dentro, mesmo que ainda em esboço, virtualmente
( como o pássaro que Magritte libertou do ovo...). Há muros que a gente somente
transpassa criando palavras cujo sentido abra linhas de fuga para a vida
com força libertária mais potente
do que as marretas.
“É preciso transver o mundo.” (Manoel
de Barros).
( imagem: “ A clarividência”, de
Magritte)
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