sábado, 29 de agosto de 2020

a nova raça

 

Tempos atrás ganhei de presente um jovem canário. A pessoa que me deu já o tinha batizado de “Príncipe”. E assim ele era: um “Príncipe”, no porte e no canto. Não gosto de gaiolas, sou contra prender os seres, ainda mais os que têm asas. Mas não queria fazer desfeita. Aceitei o canário. Com o tempo, adquiri afeto por ele, e ele por mim. Bastava eu chegar em casa que ele já começava a cantar. Ele passou a confiar em mim a tal ponto que comia alpiste em minha mão. O tempo passou, ele envelheceu. Decidi então que o Príncipe não podia morrer na gaiola sem conhecer o que é voar livre. Levei-o ao Parque do Flamengo, lugar amplo e arborizado. Quando abri a gaiola e o apanhei, pela primeira vez ele bicou minha mão. Parecia que ele adivinhava o que eu queria fazer: libertá-lo de mim. Ele não compreendia que aquele ato também me era doído ,porém nascia do meu amor por ele. Quando o soltei, ele mal conseguiu voar. Creio que ele compreendeu que suas asas estavam atrofiadas. Ele pousou na grama, olhou ao redor, parecendo admirado com o horizonte tão perto. Virei as costas e fui embora... Após dar alguns passos,  não resisti e virei para a “última olhada”. Ele não estava mais lá... Passados mais de 10 anos do fato, sempre que passo por ali inadvertidamente o procuro nos galhos, mesmo com a “objetiva razão” sempre a me dizer que eu nunca mais o verei...

Num domingo recente , porém, sai bem cedo para deambular . Andei muito, até que me vi no Parque do Flamengo. Sentei ao pé de uma amendoeira para apreciar aquela manhã linda. De repente, ouvi um canto estranho vindo dos galhos. Levantei a cabeça e vi um tipo de canário que nunca vi antes: parecia um pardal! Tinha a cor e o jeito de um pardal, mas cantava como um Príncipe. Seria um mestiço?... Só então me dei conta que havia sentado exatamente a poucos metros de onde havia libertado o Príncipe . Tentei segurar a imaginação, mas não consegui: rebelde, ela voou de mim e foi até ao passado, mais para recriar poeticamente os fatos do que para resignadamente aceitá-los . Assim, retornei mentalmente àquela manhã do passado e vi o que aconteceu quando fui embora: de um galho, uma pardal observava toda a cena. Vendo o Príncipe em perigo e perdido no meio da liberdade, ela desceu e pousou ao lado dele , levando-o consigo para ele aprender a ser livre . Juntos construíram ninho e engendraram uma nova raça.

 

“Poesia é voar fora da asa” (Manoel de Barros)

( imagem:  “Mulher e  pássaro sob o clarão da lua ”, de Miró)



                   ( "O belo pássaro decifrando o desconhecido a um casal apaixonado", de Miró )

                                                            ( flautim: Antônio Rocha)

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