Eu ainda cursava o antigo segundo grau, vivíamos o fim
da ditadura. Para não dar trabalho à minha mãe, certo dia resolvi lavar uma
calça jeans minha que eu sempre usava
.Na época, existia apenas calça jeans escura, padrão. Minha calça jeans era bem simples, muito usada
pelos trabalhadores-operários ( por ser muito resistente) . Lavei a calça à mão
, não tínhamos máquina de lavar. Para
secá-la, usei o varal. Horas depois, devido ao vento, encontrei a calça caída
com uma das pernas numa bacia . Recoloquei a calça no varal. Na manhã seguinte,
vi que não era apenas água e sabão o líquido da bacia, havia também água
sanitária, pois a perna que imergiu estava completamente desbotada! Ao ver o
acontecido, “desabriu” em mim um olhar novo. Comandado por esse olhar
subversivo, mergulhei a calça
inteira na bacia com água sanitária...
No dia seguinte, ficou
pronta a obra: nunca antes vi uma calça parecida. Era mais do que uma calça agora : era arte
nascida da vida. A calça dizia o que não poderiam dizer palavras. O desbotado deixou
o azul mais claro, parecendo um céu; e
as manchas brancas , nuvens . Um verso de Maiakovski diz: “Não serei homem, mas
uma nuvem de calças!” Minha calça, ao contrário , parecia que se vestia de nuvens...Ao pôr a calça, senti que vestia
mais do que meu corpo , vestia também minha diferença , agora já não mais reprimida.
Na minha inocência, porém, imaginei que
todos amariam minha re-invenção, e aprovariam me ver vestindo criatividade. Mas quando saí à rua
fui fuzilado pela ditadura do olhar dos fiscais do “mesmal”, sempre vestidos com o uniforme
de um viver homogeneizado. Esse uniforme os veste sobretudo por dentro. Tive
que tomar ali a decisão mais importante da minha vida : ou
voltar para casa e vestir calça e alma
“mesmal e acostumada”, ou afirmar minha
diferença enfim vestida e conquistada. Tomei coragem, reuni forças e segui em
frente.
Chegando ao colégio, um amigo do
peito gostou daquele poema que inventei sob a forma de calça. Ele quis saber como fiz aquela subversão , para ele fazer também a sua, à sua maneira. E assim eu já não estava mais
sozinho : diferenças agenciadas sempre podem mais do que sozinhas. Hoje sei que
aquele meu seguir em frente também me
trouxe até Espinosa, Manoel, Deleuze...enfim, me trouxe até a mim mesmo, para com eles continuar a
seguir em frente.
Como eu também pintava, as tintas coloridas
que respingavam na calça não a sujavam:
acrescentavam cores, múltiplas cores. Anos depois, vi algo que me fez lembrar
essa calça: um quadro de Pollock.
“ Se pudesse dizê-lo em palavras, não
teria razão para pintar.” (Hopper)
( imagem: “Polos de azul” , de
Pollock)
Segundo Deleuze,
a tela nunca está totalmente branca
antes de o pintor começar a pintar, pois clichês ocupam virtualmente a tela, e
querem que o pintor os reproduza. Quando o clichê deixa de ser apenas virtual e se torna atualidade na
tela, isso pode agradar a opinião domesticada e acostumada , porém à arte é uma
traição. Não é fácil vencer os clichês, pois eles também colonizam a cabeça sem
que o colonizado saiba. Então, é preciso romper com toda forma de representação
para chegar novamente ao caos inicial da sensação, pois todo mundo novo, já
nos ensinava Hesíodo, nasce de um caos inaugural.
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