domingo, 3 de abril de 2022

devir-amendoeira

 

Espinosa dizia que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, a pluralidade e potência  da  vida. Ele ensina  que a vida nunca termina, ela se metamorfoseia.

Certa vez , conversando  isso com uma amiga, partilhei com   ela como eu gostaria que fosse a metamorfose que me fizesse permanecer na vida.

Não ambiciono outra vida no “Além”. Queria continuar numa vida que vicejasse aqui no seio da Mãe-Terra, como a vida verdejante de uma árvore.

Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: pois o  papel que um dia foi árvore , no livro ele ganha as asas da palavra.

Contudo, para quem escreve um livro a continuidade conquistada é apenas “letral”, ao passo que  metamorfosear-se  numa árvore é fazer parte do  livro da Vida.

Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é um verbo criado por Manoel de Barros ). Mas quando ele vier, não desejo  ir para debaixo do chão. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da Vida Imortal.

Assim, não é ao nada das cinzas  que serei reduzido, e sim ao que houver  em  mim de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira e ser sorvido por ela. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto.

A amendoeira é prima das oliveiras, e dizem que veio clandestina do Oriente  como semente  incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou os oceanos. Nas terras sábias do Oriente, onde  Sherazade  derrotou o poder ameaçador do Sultão, a amendoeira era conhecida como “a árvore mais resistente”.  

Porém, não quero ser lançado nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos e apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira inalcançável e isolada.

Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo sem cercados.

Não queria que fosse     uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam descobrir caminhos novos: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .

Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles e pôr para correr os Carcarás...

E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

 

 

“O céu da teoria é cinza;

mas sempre verdejante é a árvore da vida.” (Goethe)

 

(imagem: “Amendoeira em flor”/ Van Gogh)







Um comentário:

cauepizindim disse...

Arvorar-se em arvoredo

Como que por acaso, aqui encontro uma coincidência no querer se arvorar. Tornar-me, a mim mesmo e depois de mim, em árvore, frondosa. Em cor alegria para algum olhar cinzento, em sabor frutuoso para um paladar displicente, em perfume atraente ao olfato distraído (que enfia o nariz por aí), em poleiro de passarinho e de criança e aprender a passarinhar gente velha acriançada que nunca foi adulterada.
Quero hospedar insetos, fungos e musgos.
Quero ser sombra e abrigo em qualquer trilha ou caminho para confortar outro viajante.
Quem sabe? Talvez, um dia saber ensinar que basta um tronco para se fazer canoa, atravessar oceanos e tempestades sem afundar. Ou simplesmente, me fazer mastro a içar velas ao vento.