sexta-feira, 1 de abril de 2022

Manoel & Bernardo

 

Na rica  fala do povo do Pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas.

O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do Pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si.

Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno Pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do Pantanal possa habitar e perseverar  , vivo.

Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo.

Migram  para debaixo das asas da arraia não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse Pantanal em rascunho  tudo o que vive devém embrião da arraia-útero.

 Sob a proteção de tal Gaia-Pachamama, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Perseverante,  a  arraia é a Vida salvando a vida.

Pois quando as águas do Pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros e oportunistas  lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca .

Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia antiga, “Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”.

Pneuma é o sopro que dá  vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em latim,  “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.

Apesar dos perigos em torno, nunca a arraia  se entrega ou desabraça . Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.

Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?

 

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.”(Manoel de Barros)

 

“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas.”(Manoel de Barros)

 

“Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade.” (Cláudio Ulpiano)

 

“Toda multiplicidade é composta não por coisas prontas, mas por realidades intensivas, pré-individuais, como o embrião de uma realidade nova.” (Deleuze)

 

(o poema que interpreto   faz parte do “Livro de pré-coisas”, cuja capa é de Martha Barros, filha do poeta)




Foi com Bernardo que o poeta Manoel de Barros mais aprendeu as falas populares do Pantanal . Segundo Manoel, Bernardo era tão bom que “os passarinhos faziam ninho na palha de seu chapéu”. Bernardo trabalhava na fazenda do poeta. Manoel herdou a fazenda dos pais, ela estava quase falida. Ele e Stella, sua companheira, colocaram novamente a fazenda de pé. Porém Manoel nunca foi um “fazendeiro”, ele sempre foi um eco-poeta cuja fazenda era um meio de ele sobreviver materialmente e cuidar do Pantanal. A fazenda também foi o lugar para o poeta fazer aprendizados poéticos com a fala popular, e Bernardo foi seu “mestre”. Na visão desumana da psiquiatria positivista , que voltou a ter poder sob o fascismo instalado em Brasília, “Bernardo” talvez fosse classificado como um “louco” . Contudo, segundo Manoel, Bernardo tinha na verdade uma inocência que incomodava a loucura cheia de si dos “poderes normalizadores”. Manoel inseriu Bernardo na vida da fazenda com dignidade, sem exclusão ( como ensinava Nise da Silveira). Manoel dizia que nas falas de Bernardo “há lírios”, basta saber colhê-los. E foi colhendo esses lírios, esses “delírios ônticos”, que Manoel eternizou seu amigo Bernardo em sua poesia.





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