Durante a
ditadura militar os milicos ordenaram que se retirasse a filosofia e a
sociologia no ensino dos jovens. Os inimigos do pensamento sabem muito bem que
nada há de “inútil” nessas disciplinas. Mas eles interferiram também na outra
ponta do ensino, retirando Nietzsche e Marx como tema para ingresso nas Pós-Graduações
de filosofia.
O caráter “subversivo” da filosofia é trabalhado
muito bem no curta “Meu amigo Nietzsche”.
O filme mostra a amizade que nasce entre uma criança e o filósofo, entre a
criança e a descoberta do que há de mais potente nela mesma.
Não por acaso, a
“criança” é uma das personagens mais importantes no pensamento de Nietzsche,
que dizia poder o homem passar por três metamorfoses : a do burro ( ou
“camelo”), a do leão e a da criança.
O burro é aquele
que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores
estabelecidos. Sua forma de aceitação é “dar as costas” para carregar. É assim
que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram.
Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os
valores de um mundo que já achamos pronto, dado. Quando o poder diz que só se deve ensinar às crianças
tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter
submissos seus carregadores também no futuro.
O leão pode
nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “Não”.
Ninguém sobe no dorso de um leão: ele vê
em tudo uma jaula onde querem prendê-lo. O leão
é ferozmente crítico e cético,
imaginando que ser potente é negar . O
leão pode mais do que o burro,
porém é incapaz de criar , pois
para criar é preciso crer. E o leão em nada crê. O leão imagina que crer é ser como o burro que ele já foi. Do
leão pode surgir nova metamorfose: a
criança, aquela que redescobre a força do “Sim”.
Pois o Sim da criança não é como o sim
alienado do burro. O Sim da criança
sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele,
tornando-se afirmação de uma potência
criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão.
Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa
que a dos dentes e garras.
O burro é refém
dos valores do presente que o esmaga e
aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer
mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e
libertação do passado em razão de uma
crença ativa no futuro , uma
“linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito
das forças obscurantistas que ameaçam retê-la. Não se trata de otimismo ou
esperança: “Só podemos destruir sendo
criadores.”(Nietzsche)
O filme tem vários detalhes muito
sutis compondo sua narrativa. Um deles é o nome da autoescola que está no
cartaz que o menino lê :
"Freud" , o nome da autoescola. De certo modo, aprender a ler o inconsciente
ensina a "dirigir" a vida, e Nietzsche é uma das influências de
Freud. Quando o menino potencializa sua escrita e pensamento a partir da leitura de Nietzsche, ele se
encontra na sala de aula com a professora, e no quadro está o desenho a giz (
feito por ele?) de dois corações, cada um com o seguinte nome dentro : Rée e
Lou. O primeiro nome é uma referência ao poeta Paul Rée, amigo de Nietzsche, e
o outro é o primeiro nome de Lou Salomé,
grande filósofa e pensadora que namorou
Rée. Há uma cena do filme onde também aparece o nome "Salomé" escrito em um muro, e perto desse muro há uma carroça que
lembra uma famosa foto onde aparecem os três: Nietzsche, Rée e Lou Salomé. Na foto, Lou Salomé está com um
chicote na mão. Isso explica certa passagem na obra do filósofo muito mal interpretada por leitores
apressados, passagem esta na qual Nietzsche diz: "vai estar com as
mulheres? Não se esqueça do chicote...". Mas o chicote não é para a mão do
homem , como erradamente se interpreta , e sim para a mão da
Mulher-Lou-Ariadne : o chicote como
crítica ativa e necessária ao falocratismo
da moral do homem.
“Super-homem” é uma tradução
inadequada para o que Nietzsche chama de “übermensch”, uma vez que diz o oposto do que
Nietzsche quis dizer. “Übermensch” não é o homem ainda mais forte e com poder.
Pois “über” tem o sentido daquilo que está “acima” ou “além”. Mas não acima
como o teto está acima ou além do chão ,
ou o céu acima e além da terra. O “acima-além” que “über” expressa é
como a borboleta que está acima da lagarta, indo além dela em potência : como realidade nova que está além-acima
enquanto metamorfose ou superação nascida.
Assim, a melhor tradução é “Além-do-homem”.
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