Ali onde cresce o perigo,
brota também o que salva.
Hördelin
Entrarei pelas raízes e atravessarei
o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos até alcançar
a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de
bem-te-vis e pardais, para quem sabe me
tornar um deles.E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas:
que a lápide seja apenas a amendoeira florescendo em maio, mês
em que nasci.
"Por coisas singulares entendo
coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos
concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito,
considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular."(Espinosa)
-Crônica de Drummond:
FALA, AMENDOEIRA
(Carlos Drummond de Andrade )
Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que
prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em
nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria
de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre
o céu e o chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista,
depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se
lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam
todas verdes, menos uma.Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à
porta,companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal
proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais,
alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a
luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais
nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer,
cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe
afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo
de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que
têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos
transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas
amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que
chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas
caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam
para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar
sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como
o cronista lhe perguntasse – fala, amendoeira – por que fugia ao rito de
suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as
folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore,
embora minhas irmãs não respeitem as estações.
- E vais outoneando sozinha?
- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e,
como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de
primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada,
uma suspeita de inverno.
- Somos todos assim.
- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e
exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o
que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que
já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais
estação da alma que da natureza.
- Não me entristeças.
- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu
outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo
de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é
certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso:
parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.
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