domingo, 19 de janeiro de 2020

a lápide

Ali onde cresce o perigo,
brota também o que salva.
   Hördelin

Espinosa dizia que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, a pluralidade e potência  da  vida. Então, me esforçando para seguir o que prescreve Espinosa, penso sempre na continuidade da vida, mesmo quando  ela parece ter tido um fim. A minha vida, por exemplo, gostaria que ela continuasse, mas não em outra vida no “Além”, e sim numa vida que vicejasse aqui, como a vida verdejante de uma árvore. Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: pois o  papel que um dia foi árvore no livro ele ganha as asas da palavra  .Nos livros , porém, para quem escreve um , a continuidade conquistada é apenas “letral”, ao passo que  devir uma árvore é fazer parte do  livro da Vida. Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é um verbo criado por Manoel de Barros ). Mas quando ele vier, não desejo  ir para debaixo da terra. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da própria Vida . Assim, não é ao nada das cinzas  que serei reduzido, e sim ao que houver  em  mim de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira e ser sorvido por ela. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto. A amendoeira é prima das oliveiras, e dizem que veio clandestina do oriente , com uma semente sua incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou os oceanos. Lá no oriente a amendoeira era conhecida como a “árvore mais resistente”.    Não quero ser lançado , porém,  nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos e apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira inalcançável e isolada. Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo sem cercados. Não queria que fosse  , contudo,   uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam explorar: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .
Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles.E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

"Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular."(Espinosa)



-Crônica de Drummond:

FALA, AMENDOEIRA

(Carlos Drummond de Andrade )

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma.Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta,companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse – fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
- E vais outoneando sozinha?
- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
- Somos todos assim.
- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
- Não me entristeças.
- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.











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