O filósofo Hume distinguia dois tipos
de crença: a “legítima” e a “ilegítima”. Segundo ele, não é a razão o alicerce
do conhecimento, o alicerce é a crença. Em palavras simples, assim Hume explica
seu argumento : temos a memória do que aconteceu ontem e a percepção do que acontece hoje, agora. Por exemplo,
ontem o sol se levantou: esse fato vive em nossa memória. Hoje, vemos o sol se
levantar, conforme atesta nossa percepção. Porém, não podemos ter experiência
do que vai acontecer amanhã: o futuro não pode ser experimentado. O que nos
leva então a ter a expectativa de que o
sol nascerá amanhã e tratar essa expectativa como se ela fosse uma certeza
inquestionável? Segundo Hume, não são apenas
a memória do passado e a
percepção do presente que sustentam essa
nossa expectativa, pois tal expectativa
é determinada por um mecanismo psicológico profundo : a crença. A crença
é o fundamento de todo conhecimento, e não a “Razão” ou a “Verdade”. Existe a
crença porque a mente está sempre voltada para o futuro , para o que vai
acontecer, gerando nela expectativas. A crença deixa de ser uma expectativa de
nossa mente e se torna um fato quando a natureza comprova nossas expectativas:
vem um novo dia, e o sol nasce. Não é nossa mente que faz o sol nascer, quem o
faz nascer é a natureza: pela ação da natureza, a expectativa se torna então
realidade. Para Hume, mesmo a ciência está apoiada na crença. Porém a ciência é
uma crença legítima: a autoridade a qual ela obedece é a natureza e nada mais. Ou
seja, a crença legítima pode ser refutada. E quem a comprova ou refuta é a
mesma autoridade: a natureza. Pois toda lei científica nasceu de uma hipótese
que a natureza confirmou ( e inúmeras hipóteses não viraram leis porque a
natureza as refutou).Já a crença ilegítima é aquela que se apoia em “verdades”
que prescindem da comprovação da natureza. São verdades, portanto, que ninguém
pode refutar: nem a natureza, tampouco a ciência. Tais “Verdades” não se
sustentam na argumentação ou na experiência: elas se impõem exigindo obediência . Como toda crença, a ilegítima
também se explica pela mente humana , quando a mente humana ignora seus
limites , imaginações e fantasias. Ela se torna ilegítima não por ser uma crença, mas por usurpar o limite que lhe é próprio, querendo tomar o lugar da filosofia e da ciência. Segundo
Hume, não há problema em si na crença ilegítima, desde que ela se limite a um
espaço privado de culto e pratique como sua verdade o amor
ao próximo . O problema é quando as autoridades cujo poder vem da crença
ilegítima querem também ser autoridade política. Nesse caso, correrá risco não
apenas a democracia, cuja essência é o debate público e livre, também correrá
perigo a própria ciência. Quando a crença ilegítima se apodera do poder do
Estado e sua polícia, as consequências disso serão a censura, as perseguições,
a intolerância e a estigmatização de quem pensa diferente .
(imagem da capa: “A primavera”,
de Botticelli )
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