terça-feira, 21 de janeiro de 2020

os fluxos do poeta


Virou uma opinião comum hoje falar em “amores líquidos”, “amizades líquidas” e até mesmo em “ensino líquido”... Nostálgicos de "valores sólidos", os conservadores de toda espécie atacam a "volubilidade" desses nossos dias, e bradam por uma ordem rígida a qualquer custo. Porém, esse “líquido volúvel” nada tem a ver com a água poetizada por Manoel de Barros: “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”. Tal fluxo poético-existencial é fluido, mas não é sem força ou volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade, andarilho, mas sabe aonde ir, “horizontando-se”. Ele é o fluxo da liberdade criativa que os obstáculos, físicos ou simbólicos, não conseguem reprimir ou deter, por mais que tentem. Nem todo líquido é fluxo. Os líquidos se amoldam à forma de seus recipientes, e assim são “capturados”; já os fluxos ou inventam seus caminhos ou secam e morrem.
Em “O guardador de águas”, Manoel diz que “guarda águas”. Guardar também é cuidar. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é o oposto de construir represas, muros, gramáticas, ordens rígidas. Não se pode "passar régua" nos fluxos. Só se pode guardar fluxos sendo também um. O rio amazonas nasceu da geleira no alto dos Andes, mas da geleira devindo fluxo, correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos, "horizontados"; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente , o coração ou a pólis democrática.
O sólido talvez nada mais seja do que um líquido que enrijeceu dogmaticamente até virar uma identidade que não aceita a diferença; o líquido talvez seja um fluxo que perdeu sua consistência, sua crença em si mesmo, e vai tanto para lá como para cá,  como as águas de um lago sob a ação do vento.

( imagem da capa: “Passeio no Azul”, de Martha Barros) 

                       






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