quarta-feira, 27 de novembro de 2019

o virtual


Gilles Deleuze faz uma distinção entre o  estar “cansado” ou “fatigado” e o estar “esgotado”. A diferença entre esses termos implica a noção de “possível”. Por exemplo, Pedro está em casa. É possível que ele vá ao trabalho; mas é possível que ele vá ao médico ( pois Pedro não se sente bem); e ainda é possível que ele vá deambular para espairecer, dado que está tenso. Aqui, as possibilidades parecem anteceder o que ele pode realizar: ir trabalhar , ou ir ao médico, ou ir deambular. O “ou” indica que ele não pode escolher dois ou três possíveis a realizar  , ele pode escolher apenas um. Ele também pode nada escolher realizar de possível, porém isso não apaga as possibilidades que ele poderia realizar.
Com a ideia de “esgotado” acontece algo diferente. Nasce o esgotado  quando os possíveis se esgotam: já não se  tem o que realizar ou possibilizar. O esgotado esgota, antes de tudo, o campo dos possíveis a  realizar .  Pedro não quer mais o possível, ele deseja o necessário: e nada é mais necessário do que criar um modo de vida diferente quando o próprio existir se torna sinônimo de cansaço...O necessário não é o que se mostra como escolha entre um "ou" e outro "ou". O necessário é o que somente pode ser afirmado. 
Dizem que antes de nascermos nós fomos possíveis: fomos um possível que coube a nossos pais realizar. O estar esgotado nos põe em um lugar que antecede o ter nascido, porém este lugar não é o da morte, o ter morrido ( pois o morrer é um possível que se pode realizar...). O estar esgotado esgota o possível...Com isso, é o próprio realizar que parece ter morrido, não nós mesmos. O real se foi junto com o possível....Mas é aqui que se descobre outra realidade distinta daquela que se pode realizar a partir de possíveis que se escolhe ou não realizar. Deleuze chama de “virtual” a esta realidade que, aos olhos do possível e do real, parece impossível de realizar antes que ela seja criada.
É a partir da vontade que fazemos nossas escolhas a realizar. É sempre a vontade que se cansa ou se fatiga ,cansando ou fatigando igualmente os músculos do nosso corpo que a obedecem. Não é a vontade a potência capaz de esgotar o possível. É o desejo a força que esgota os possíveis antes mesmo de realizá-los, para assim engendrar nascimentos que nós tornem enfim nascidos. Não porque outros escolheram que nascêssemos, e sim porque criamos isso a partir de uma virtualidade que olhos costumeiros imaginam ser impossível.
O fatigado imagina que existe um campo de possibilidades que antecede o que ele pode ou não realizar com sua vontade e músculos. O esgotado esgota o possível  para libertar realidades diferentes daquelas que a vontade e músculos realizam.  O esgotado não é quem chega ao fim, o esgotado é aquele que cria (re)começos que pareciam impossíveis: “Quem se aproxima da origem se renova”(Manoel de Barros).
Quando um artista cria um estilo novo, esse criar não é um realizar de possibilidades contidas na realidade do estilo antigo. Esse criar é , ao mesmo tempo, um esgotar das possibilidades antigas e um afirmar a arte como  virtualidade cujo esgotar é impossível, assim como é inesgotável a Vida em sua Potência Absoluta (Espinosa).Em um estilo novo, não é só o estilo que nasce ou começa: recomeça também a própria Arte.




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