sábado, 2 de novembro de 2019

artigo: os dois manoeis


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(trecho)

                                             MANOEL E O MENINO                                                    
                                                              
( por Elton Luiz Leite de Souza[1])



O homem seria metafisicamente grande
se a criança fosse seu mestre.
Kierkegaard [2]


O fundo da arte, com efeito, é uma espécie de alegria,
sendo mesmo este o propósito da arte.  Não, não há criação triste.
Gilles Deleuze




Os dois manoeis
                      
Eu sou dois seres.
O primeiro fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral.
                                                     (...)
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.[3]


O poeta se diz “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza “brincativa”[4], ele é “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, não é menos vivo que o Manoel que há pouco nos deixou, o filho de Seo João e Dona Alice. Talvez   a saudade que sentimos deste último possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive sem distância com seus versos, e nestes vive cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”[5].
O “letral” não é apenas letra morta, sintática: “nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe”[6]O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”[7].  
O primeiro Manoel faria 100 anos em 2016, se vivo estivesse. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Quantos anos faz? Talvez não se possa medir sua existência em anos. O Manoel-letral é só nascimento, invenção, como possibilidade poética de renascimento através de nós, que nos reinventamos também através dele. Sempre múltiplo, já descoberto e ainda por descobrir: como “afloramento de falas”[8].
Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”[9]. O autêntico devir-letral nunca é solitário ou sozinho. Manoel se torna letral para nos tornar também. Ser letral é ler, na letra, mais do que a letra. É se deixar ler também por ela, buscando outras relações na existência que não sejam apenas aquelas governadas pela sintaxe econômica, utilitária, academicista.
A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático, cuja vida findou aos 97 anos. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral, pura virtualidade que vive no sentido que o poeta inventou. De minha parte, o Manoel-letral é um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”[10]. Esse menino, afirma o poeta, é  “a criança que me escreve”.  O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.
 É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros. “Não, não há criação triste”[11].“Tristeza”, aqui, deve ser entendida no sentido de Espinosa. As paixões tristes diminuem nossa potência de existir, já as paixões alegres aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir tristeza e alegria. O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto daquelas tristezas, e mesmo estas são transfiguradas pela criação poética, e se tornam poesia, isto é, canto da palavra: “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”[12]. Pela alegria que a criação é, o Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.[13]




[1] Filósofo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite ( Rio de Janeiro, Faperj/7letras, 2010).
[2] Epígrafe escolhida por Manoel de Barros na Primeira Parte do livro Menino do mato.                                 
[3]Poemas rupestres, p. 45.
[4] “Nossa linguagem não tinha função explicativa, mas só brincativa” (versos do livro/poema Escritos em verbal de ave).
[5] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.
[6] Menino do mato, p. 11.
[7] Livro sobre nada, p. 70
[8] “Uma didática da invenção”, Livro das ignorãças, p., 7.
[9] “Biografia do orvalho”, Retrato do artista quando coisa, p. 81.
[10] Poema “Invenção”, Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[11] Gilles Deleuze, A ilha deserta , p. 174.
[12] Poema “Línguas”, Ensaios fotográficos.
[13] Poema "O menino que carregava água na peneira”, Exercícios de ser criança.

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