KANT: OS JUÍZOS SINTÉTICOS A PRIORI[1]
A
antiga metafísica nutria uma pretensão: conhecer “o que” são os objetos tais como eles
existiriam em si mesmos, independentemente de nossa mente. Kant faz uma
“revolução” ao dizer que não podemos conhecer os objetos tais como eles são. A
única tarefa que está ao nosso alcance, no âmbito do conhecimento, é conhecer
“como” é possível o conhecimento de todo objeto. Não mais “o quê”, e sim o “como”. Esse “como” se explica pelo sujeito
do conhecimento. Não é mais o sujeito que gravita em torno do objeto, é o
objeto que se explica a partir do sujeito. A antiga metafísica queria conhecer
“o quê” é o mundo, “o quê” é a substância, etc.
Kant muda o paradigma e afirma
que não podemos conhecer “o quê” as coisas são necessariamente. Podemos
explicar, isto sim, “como” necessariamente conhecemos os fenômenos ( que é a
realidade tal como nos aparece). Em Kant, o sujeito do conhecimento não é
passivo à experiência, ele a constrói, ele a organiza. Esta é a função do
transcendental: ser o “como” que explica o conhecimento universal e necessário
dos objetos da ciência.
Em
Kant, o conhecimento tem duas fontes: o entendimento e a intuição ( ou
sensibilidade). O entendimento é a faculdade dos conceitos, a intuição é a
faculdade do espaço e do tempo, enquanto formas da sensibilidade. Quando Kant
trata do conhecimento, ele se refere ao conhecimento tal como era realizado
pela ciência de sua época. Para ele, ciência tinha como sinônimo a física-matemática,
isto é, Newton. Hoje, aplicamos o termo “ciência” a atividades humanas que
surgiram bem depois de Kant, como as “Ciências Humanas”. Então, é preciso que
tenhamos cuidado nesse ponto para não projetar sobre Kant uma concepção de
conhecimento científico que sua época ainda desconhecia.
Para
Kant, conhecer é um ato de julgar.
Todo conhecimento se faz pela emissão de juízos. Até aí, nenhuma novidade, pois
já estava em Aristóteles essa identificação do ato de conhecer com o de julgar.
Mas o que é julgar, o que é um juízo? Um juízo é a reunião de dois conceitos
com duas funções bem distintas: um conceito desempenhando o papel de sujeito, enquanto
o outro funcionando como predicado ou
atributo. Até a época de Kant, eram conhecidos dois tipos de juízo: o analítico e o sintético. No juízo analítico o predicado é extraído da compreensão
do próprio sujeito, não lhe acrescentando propriedade nova. Exemplo: “Todo
triângulo possui três lados”. Basta analisar ou decompor o conceito de triângulo para acharmos, em sua definição, o
atributo “três lados”, pois não existe triângulo que não possua três lados.
Assim, os juízos analíticos não produzem conhecimentos novos, eles apenas
elucidam ou clareiam determinado conceito já dado. Eles também revelam uma relação necessária e universal
entre o sujeito e o predicado, na medida em que todo triângulo necessariamente
possui três lados. Todo juízo analítico é “puro” ou “a priori”, isto é,
antecede a experiência e não precisa dela para ser comprovado
Os
juízos sintéticos são aqueles que
acrescentam ou ampliam um conhecimento do sujeito. “A casa é azul” é um juízo
sintético. Os juízos sintéticos são chamados também de “a posteriori”,
dado que eles vêm da experiência, são posteriores à experiência. Quando
analisamos o conceito de casa não encontramos em sua compreensão o conceito de
“azul”. Porém, a experiência nos mostra casas azuis e de outras cores. O juízo
sintético sintetiza, une, o conceito de casa ao conceito de azul. Porém, não
podemos dizer: “Toda casa é azul”, pois a mesma experiência que nos mostra uma
casa azul também pode nos mostrar casas de outras cores. E mesmo a casa que
agora é azul pode ser pintada de outra cor sem que deixe de ser uma casa. Desse
modo, os juízos sintéticos não podem ser universais e necessários, eles são
sempre contingentes. “Contingente” é
tudo aquilo que existe de certo modo ,
mas que poderia existir de forma diferente. Por essa razão, do contingente, diz Kant, não pode haver
ciência, uma vez que toda ciência se
apoia em duas exigências: o universal e o necessário.
Os juízos analíticos não fornecem ganho de
conhecimento, eles apenas clareiam certos conceitos que já possuímos. Por outro
lado, o que caracteriza a ciência é
aumentar o conhecimento, isto é, fazer ser nosso o que ainda não possuímos.
Conhecimento é avanço do conhecimento, ou seja, progresso .
Porém,
Kant não é empirista, ele crê que apenas os juízos a posteriori não fornecem a
base universal e necessária que caracteriza a ciência. É aqui que Kant
revoluciona, propondo então uma terceira espécie de juízo: o sintético a priori. Lembrando sempre
que Kant quer fundamentar o conhecimento tal como este se processava na ciência
de sua época, que era profundamente matemática.
O
julgar é um ato de conhecimento que pode ser expresso em números ou equações, e
não apenas em palavras ( tal como fazia Aristóteles). As palavras são apenas
uma roupa com a qual vestimos os juízos. E aqui reside o perigo : as
palavras são uma roupa que acaba nos habituando a ver
apenas a elas mesmas , não nos deixando
ver o corpo. E o corpo do juízo é um ato de conhecimento que pode ser melhor expresso
com outras roupas : os números. Pois estes não têm a ambiguidade semântica das
palavras, e podem ser pensados sem uma relação direta com coisas fora da mente.
Quando escrevemos a palavra “casa”, por exemplo, é difícil não imaginarmos imediatamente
um objeto no mundo correspondente a tal palavra, ou seja, procuramos um
conteúdo na experiência. Ao contrário, quando escrevemos o número “2” compreendemos
imediatamente o que tal símbolo
significa, sem precisarmos imaginar tratar-se de duas cadeiras ou duas laranjas
existindo empiricamente no mundo.
Assim,
é na matemática, linguagem por excelência da ciência, que Kant vai buscar
exemplos de juízos sintéticos a priori. Tal como os juízos analíticos, os
juízos sintéticos a priori são necessários
e universais, porém não são um mero desdobar um conhecimento que se tem. Como acontece
com os juízos sintéticos a posteriori, os predicados dos juízos sintéticos a
priori acrescentam um conhecimento novo
ao sujeito , embora não derive tal conhecimento da experiência empírica. Enfim,
os juízos sintéticos a priori têm algo em comum com os analíticos e com os
meramente sintéticos a posteriori, não obstante divergirem também profundamente
em relação a eles.
Exemplo
de juízo sintético a priori: 12 = 7 + 5. Por que tal juízo é sintético? Se
analisarmos o conceito de 12 não acharemos nele o conceito de 7+ 5. Definimos o
conceito de 12 da seguinte maneira: “O número 12 é a reunião de doze unidades”. Ninguém, ao
pensar no número 12, pensa em 7 + 5, do mesmo modo que não pensa em 6 + 6 , ou
10 + 2...Ou ainda em 20 -8, ou 52-40,
pois todos esses conceitos , e infinitos outros, são 12, porém não estão
incluídos analiticamente no conceito de 12, isto é, em sua identidade. No
entanto, não há como negar que 52 –
40 é 12, assim como 9 + 3. Mas tais
“predicados” ou propriedades são unidos
ao conceito de 12, aumentando o conhecimento do que é 12. Contudo, não precisamos ir à experiência empírica para
comprovar a cientificidade de tais juízos, pois eles são “puros”, apesar de construídos. Eles são sintéticos, embora não
sejam empíricos. Eles são sintéticos a priori.
E
como sei que eles são verdadeiros? Nós “vemos” essa evidência , intuindo. Há
uma intuição pura que nos faz ver a verdade do juízo 12 = 5 + 7. Ver que 5 + 7
é igual a 12 não é como ver que a casa é azul, pois a casa pode deixar de ser
azul, mas nunca 7 + 5 pode deixar de ser 12, embora 7 + 5 não seja um conceito
analiticamente contido no conceito de 12. E aqui está a diferença entre a dedução e a intuição em Kant: a dedução é um método analítico, ela apenas extrai um conceito já contido em outro,
ao passo que a intuição pura “vê” porque
um conceito está unido a outro de forma
necessária e universal. A dedução é a uma decomposição, a intuição é um ver
junto, uma composição. A dedução desdobra uma identidade nos elementos que a compõem, a intuição relaciona diferenças. A dedução extrai de dentro,
a intuição vê e une diferenças que estão fora uma da outra, mas que formam,
juntas, uma unidade necessária.
Qual
a validade dos juízos sintéticos a priori para a ciência? É que embora eles não
derivem da experiência, toda experiência os comprova. Toda verdade científica
precisa da experiência para ser comprovada, muito embora tais verdades não
derivem da experiência, elas derivam do sujeito, mas apenas enquanto condição
formal, transcendental, do conhecimento. A metafísica imaginou que podia conhecer
verdades universais e necessárias, porém isso é uma ilusão. Apenas a ciência pode
conhecer universal e necessariamente, é
nela que está tal exigência, não nas próprias coisas.
Retomando
aquele exemplo que demos em outra aula: como seria um conhecimento meramente
analítico de Londres? Seria um conhecimento obtido em palavras apenas :
“Londres é a capital da Inglaterra”. Como seria um conhecimento sintético a
posteriori de Londres? Seria preciso que fôssemos empiricamente a Londres e
conhecêssemos as partes de Londres. Como prova de tal conhecimento, poderíamos
tirar fotografias das ruas e praças de
Londres . Porém, é impossível tirar uma foto de Londres tal como a definimos em
palavras. Não se pode tirar uma foto do “todo”, apenas de suas partes. Como seria
um conhecimento sintético a priori de Londres? É exatamente isso que o mapa
faz. Um mapa não é um retrato. Um mapa acrescenta ao conceito determinadas
imagens que intuímos de forma a priori. Um mapa é uma construção a priori que
aumenta o conhecimento do que é Londres. Nenhum mapa é definitivo , assim como
não é o conhecimento que sempre progride. O mapa de Londres pode ser
aperfeiçoado, assim como pode ser aperfeiçoado o conhecimento da natureza .
Há
dois tipos de necessidade e universalidade em Kant: a necessidade e universalidade
meramente analíticas, presentes na
definição que diz que “Londres é a capital da Inglaterra”, e a universalidade e
necessidades do sintético a priori , que é uma universalidade e necessidade
enquanto regra de construção ( da qual a
própria imaginação também participa).
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