segunda-feira, 18 de novembro de 2019

aula: kant


                                        KANT: OS JUÍZOS SINTÉTICOS A PRIORI[1]


A antiga metafísica nutria uma pretensão:  conhecer “o que” são os objetos tais como eles existiriam em si mesmos, independentemente de nossa mente. Kant faz uma “revolução” ao dizer que não podemos conhecer os objetos tais como eles são. A única tarefa que está ao nosso alcance, no âmbito do conhecimento,  é  conhecer “como” é possível o conhecimento de todo objeto. Não mais “o quê”, e sim  o “como”. Esse “como” se explica pelo sujeito do conhecimento. Não é mais o sujeito que gravita em torno do objeto, é o objeto que se explica a partir do sujeito. A antiga metafísica queria conhecer “o quê” é o mundo, “o quê” é a substância, etc.  Kant muda o paradigma  e afirma que não podemos conhecer “o quê” as coisas são necessariamente. Podemos explicar, isto sim, “como” necessariamente conhecemos os fenômenos ( que é a realidade tal como nos aparece). Em Kant, o sujeito do conhecimento não é passivo à experiência, ele a constrói, ele a organiza. Esta é a função do transcendental: ser o “como” que explica  o conhecimento universal e necessário dos objetos da ciência.
Em Kant, o conhecimento tem duas fontes: o entendimento e a intuição ( ou sensibilidade). O entendimento é a faculdade dos conceitos, a intuição é a faculdade do espaço e do tempo, enquanto formas da sensibilidade. Quando Kant trata do conhecimento, ele se refere ao conhecimento tal como era realizado pela ciência de sua época. Para ele,  ciência tinha como sinônimo a física-matemática, isto é, Newton. Hoje, aplicamos o termo “ciência” a atividades humanas que surgiram bem depois de Kant, como as “Ciências Humanas”. Então, é preciso que tenhamos cuidado nesse ponto para não projetar sobre Kant uma concepção de conhecimento científico que sua época ainda desconhecia.
Para Kant, conhecer é um ato de julgar. Todo conhecimento se faz pela emissão de juízos. Até aí, nenhuma novidade, pois já estava em Aristóteles essa identificação do ato de conhecer com o de julgar. Mas o que é julgar, o que é um juízo? Um juízo é a reunião de dois conceitos com duas funções bem distintas: um conceito desempenhando o papel de sujeito, enquanto o outro funcionando como  predicado ou atributo. Até a época de Kant, eram conhecidos dois tipos de juízo: o analítico e o sintético. No juízo analítico o predicado é extraído da compreensão do próprio sujeito, não lhe acrescentando propriedade nova. Exemplo: “Todo triângulo possui três lados”. Basta analisar ou decompor o conceito de triângulo para acharmos, em sua definição, o atributo “três lados”, pois não existe triângulo que não possua três lados. Assim, os juízos analíticos não produzem conhecimentos novos, eles apenas elucidam ou clareiam determinado conceito já dado. Eles também  revelam uma relação necessária e universal entre o sujeito e o predicado, na medida em que todo triângulo necessariamente possui três lados. Todo juízo analítico é “puro” ou “a priori”, isto é, antecede a experiência e não precisa dela para ser comprovado
Os juízos sintéticos são aqueles que acrescentam ou ampliam um conhecimento do sujeito. “A casa é azul” é um juízo sintético.  Os  juízos sintéticos são chamados também de “a posteriori”, dado que eles vêm da experiência, são posteriores à experiência. Quando analisamos o conceito de casa não encontramos em sua compreensão o conceito de “azul”. Porém, a experiência nos mostra casas azuis e de outras cores. O juízo sintético sintetiza, une, o conceito de casa ao conceito de azul. Porém, não podemos dizer: “Toda casa é azul”, pois a mesma experiência que nos mostra uma casa azul também pode nos mostrar casas de outras cores. E mesmo a casa que agora é azul pode ser pintada de outra cor sem que deixe de ser uma casa. Desse modo, os juízos sintéticos não podem ser universais e necessários, eles são sempre contingentes. “Contingente” é tudo  aquilo que existe de certo modo , mas que poderia existir de forma diferente. Por essa razão,  do contingente, diz Kant, não pode haver ciência, uma vez que  toda ciência se apoia em duas exigências: o universal e o necessário.
 Os juízos analíticos não fornecem ganho de conhecimento, eles apenas clareiam certos conceitos que já possuímos. Por outro lado,  o que caracteriza a ciência é aumentar o conhecimento, isto é, fazer ser nosso o que ainda não possuímos. Conhecimento é avanço do conhecimento, ou seja, progresso .
Porém, Kant não é empirista, ele crê que apenas os juízos a posteriori não fornecem a base universal e necessária que caracteriza a ciência. É aqui que Kant revoluciona, propondo então uma terceira espécie de juízo: o sintético a priori. Lembrando sempre que Kant quer fundamentar o conhecimento tal como este se processava na ciência de sua época, que era profundamente matemática.
O julgar é um ato de conhecimento que pode ser expresso em números ou equações, e não apenas em palavras ( tal como fazia Aristóteles). As palavras são apenas uma roupa com a qual vestimos os juízos. E aqui reside o perigo : as palavras   são uma roupa que acaba nos habituando a ver apenas a elas mesmas ,  não nos deixando ver o corpo. E o corpo do juízo é um ato de conhecimento que pode ser melhor expresso com outras roupas : os números. Pois estes não têm a ambiguidade semântica das palavras, e podem ser pensados sem uma relação direta com coisas fora da mente. Quando escrevemos a palavra “casa”, por exemplo, é difícil não imaginarmos imediatamente um objeto no mundo correspondente a tal palavra, ou seja, procuramos um conteúdo na experiência. Ao contrário, quando escrevemos o número “2” compreendemos imediatamente  o que tal símbolo significa,  sem precisarmos  imaginar  tratar-se de duas cadeiras ou duas laranjas existindo empiricamente no mundo.
Assim, é na matemática, linguagem por excelência da ciência, que Kant vai buscar exemplos de juízos sintéticos a priori. Tal como os juízos analíticos, os juízos sintéticos a priori  são necessários e universais, porém não são um mero desdobar um conhecimento que se tem. Como acontece com os juízos sintéticos a posteriori, os predicados dos juízos sintéticos a priori  acrescentam um conhecimento novo ao sujeito , embora não derive tal conhecimento da experiência empírica. Enfim, os juízos sintéticos a priori têm algo em comum com os analíticos e com os meramente sintéticos a posteriori, não obstante divergirem também profundamente em relação a eles.
Exemplo de juízo sintético a priori: 12 = 7 + 5. Por que tal juízo é sintético? Se analisarmos o conceito de 12 não acharemos nele o conceito de 7+ 5. Definimos o conceito de 12 da seguinte maneira: “O número 12  é a reunião de doze unidades”. Ninguém, ao pensar no número 12, pensa em 7 + 5, do mesmo modo que não pensa em 6 + 6 , ou 10 + 2...Ou ainda  em 20 -8, ou 52-40, pois todos esses conceitos , e infinitos outros, são 12, porém não estão incluídos analiticamente no conceito de 12, isto é, em sua identidade. No entanto, não há  como negar que 52 – 40  é 12, assim como 9 + 3. Mas tais “predicados” ou propriedades são unidos ao conceito de 12, aumentando o conhecimento do que é 12. Contudo,  não precisamos ir à experiência empírica para comprovar a cientificidade de tais juízos, pois eles são “puros”, apesar de  construídos. Eles são sintéticos, embora não sejam empíricos. Eles são sintéticos a priori.
E como sei que eles são verdadeiros? Nós “vemos” essa evidência , intuindo. Há uma intuição pura que nos faz ver a verdade do juízo 12 = 5 + 7. Ver que 5 + 7 é igual a 12 não é como ver que a casa é azul, pois a casa pode deixar de ser azul, mas nunca 7 + 5 pode deixar de ser 12, embora 7 + 5 não seja um conceito analiticamente contido no conceito de 12.  E aqui está a diferença entre a dedução e a intuição em Kant: a dedução é um método analítico, ela apenas extrai um conceito já contido em outro, ao passo que a intuição pura  “vê” porque um conceito  está unido a outro de forma necessária e universal. A dedução é a uma decomposição, a intuição é um ver junto, uma composição. A dedução desdobra uma identidade nos elementos que a compõem, a intuição relaciona diferenças. A dedução extrai de dentro, a intuição vê e une diferenças que estão fora uma da outra, mas que formam, juntas, uma unidade necessária.
Qual a validade dos juízos sintéticos a priori para a ciência? É que embora eles não derivem da experiência, toda experiência os comprova. Toda verdade científica precisa da experiência para ser comprovada, muito embora tais verdades não derivem da experiência, elas derivam do sujeito, mas apenas enquanto condição formal, transcendental, do conhecimento. A metafísica imaginou que podia conhecer verdades universais e necessárias, porém  isso é uma ilusão. Apenas a ciência pode conhecer universal e necessariamente,  é nela que está tal exigência, não nas próprias coisas.
Retomando aquele exemplo que demos em outra aula: como seria um conhecimento meramente analítico de Londres? Seria um conhecimento obtido em palavras apenas : “Londres é a capital da Inglaterra”. Como seria um conhecimento sintético a posteriori de Londres? Seria preciso que fôssemos empiricamente a Londres e conhecêssemos as partes de Londres. Como prova de tal conhecimento, poderíamos tirar fotografias das ruas e praças  de Londres . Porém, é impossível tirar uma foto de Londres tal como a definimos em palavras. Não se pode tirar uma foto do “todo”, apenas de suas partes. Como seria um conhecimento sintético a priori de Londres? É exatamente isso que o mapa faz. Um mapa não é um retrato. Um mapa acrescenta ao conceito determinadas imagens que intuímos de forma a priori. Um mapa é uma construção a priori que aumenta o conhecimento do que é Londres. Nenhum mapa é definitivo , assim como não é o conhecimento que sempre progride. O mapa de Londres pode ser aperfeiçoado, assim como pode ser aperfeiçoado o  conhecimento da natureza .
Há dois tipos de necessidade e universalidade em Kant: a necessidade e universalidade meramente analíticas, presentes  na definição que diz que “Londres é a capital da Inglaterra”, e a universalidade e necessidades do sintético a priori , que é uma universalidade e necessidade enquanto regra de construção  ( da qual a própria imaginação também participa).







[1] Texto-aula elaborado pelo prof.

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